O Estado de São Paulo registrou 195 vítimas de feminicídio em 2022, a maior quantidade anual desde 2015, quando o País passou a tipificar crimes dessa natureza. Desde o início da implementação da lei, as cidades paulistas já registraram mais de mil mulheres assassinadas, marca ultrapassada em outubro do ano passado. O número está hoje em 1.060 vítimas nos últimos oito anos. Entre os fatores ligados à alta, estão a crise socioeconômica do cenário pós-pandemia, as limitações de políticas públicas de enfrentamento ao problema e a maior capacidade para categorizar o crime nas delegacias, dizem os especialistas.
Os dados foram levantados pelo Estadão a partir do painel da transparência da Secretaria de Segurança Pública do Estado (SSP), atualizado pela última vez nesta quinta-feira, 26, e refletem uma escalada de violências contra mulheres no Estado. As estatísticas consideram a tipificação dos crimes atribuídos no preenchimento de Boletins de Ocorrência (BO). A natureza do primeiro registro pode ser alterada ao longo da investigação, segundo a SSP.
Antes do recorde deste ano, a maior marca havia sido contabilizada antes da pandemia, em 2019, quando 184 vítimas foram registradas no Estado. Os números de 2022 apontam uma escalada de 40% em relação ao acumulado no ano anterior: em 2021, durante a crise sanitária da covid-19, São Paulo contabilizou 140 casos de feminicídio.
Coordenadora das Delegacias de Defesa da Mulher (DDM), a delegada Jamila Jorge Ferrari aponta dois denominadores comuns aos casos de feminicídio. O agressor, na maioria dos casos, é companheiro da vítima e a violência doméstica antecede a fatalidade. “Dificilmente o feminicídio vai acontecer como primeira agressão”, afirma. “São mulheres que dependem financeiramente do companheiro, ou que, se trabalham, não precisam sair de casa”, diz.
Questionada sobre a escalada de crimes, a delegada diz que a polícia avalia os fatores envolvidos. “É preocupante e estamos acompanhando como instituição”. Segundo ela, a sensação de impunidade pode contribuir para a alta. Outra demanda importante, acrescenta, é conscientizar agentes públicos e as próprias vítimas ainda mais sobre as necessidades de encaminhar ou buscar as redes de proteção.
Mulheres são mortas dentro de casa
As estatísticas reforçam o percebido nas delegacias. Os dados da SSP apontam as donas de casa como as mais vitimadas desde 2015, correspondendo a 107 das 588 ocorrências onde foi possível identificar a profissão – aproximadamente 18% dos casos.
O local com maior volume de crimes também está ligado ao lar. Das 1.060 mulheres assassinadas no Estado, 703 perderam a vida em sua residência, o equivalente a dois terços dos casos acontecidos no Estado.
Foi o que aconteceu com a professora Ellida Tuane. Em novembro, o companheiro, o ex-lutador de artes marciais mistas (MMA) Luis Paulo Lima dos Santos, assassinou a docente no apartamento do casal, na Vila Matilde, zona leste de São Paulo. O crime aconteceu diante do filho do casal.
Homicídios contra homens, por outro lado, se concentram nas vias públicas – para comparação, ao longo do ano passado, 392 assassinatos de homens aconteceram em casa, o que corresponde a 20% dos 1.899 casos registrados pela Polícia Civil.
A alta paulista é um desdobramento local da elevação nacional de feminicídios. Na contagem do Fórum de Segurança Pública (FSB), no 1º semestre de 2022, 699 mulheres perderam a vida por razões de gênero, uma média de quatro mulheres por dia.
É um aumento significativo em relação ao mesmo período de 2021, quando 677 mulheres foram assassinadas. Os números, ilustrativos de uma escalada preocupante, deixam evidente um cenário de vulnerabilidade Brasil afora. Esse contexto influencia a capacidade de prevenção do crime, por exemplo: se a mulher não tem uma estrutura de acolhimento para ela própria e os filhos, deixa de denunciar o companheiro agressor, de quem depende financeiramente, e fica sob maior risco de ser vítima do crime.
Para Beatriz Accioly Lins, antropóloga especializada em políticas públicas de mulheres, as altas – sejam a paulista ou a nacional – são consequência de três fatores: maior sensibilidade do Judiciário para registrar feminicídio nas estatísticas; o aumento de discursos misóginos que cerceiam a liberdades das mulheres; e um período de falta de políticas direcionadas para o público feminino. “Falamos para uma mulher denunciar, para procurar ajuda, mas quando ela busca, não encontra equipamento, não encontra um servidor público capacitado”, afirma Lins.
Tatiana Bias Fortes, do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Defensoria Pública, diz que também há um cenário de aumento de denúncias. “Estamos deixando de lado aquele ditado do ‘em briga de marido e mulher ninguém mete a colher’”, diz.
A defensora pública ressalta os impactos da covid nos indicadores. “Mesmo tendo acabado o isolamento social, vai demorar para normalizar, até porque os efeitos de crise econômica são potencializadores”, afirma.
Mesmo tendo acabado o isolamento social, vai demorar para normalizar, até porque os efeitos de crise econômica são potencializadores
Tatiana Bias Fortes, defensora pública
Há necessidade, diz Beatriz Lins, de um pacto coletivo entre as esferas municipais, regionais e federais para coibir casos de agressão, que podem escalar para fatalidade. “Lugar de prioridade é no orçamento, não é somente tipificação, campanha de conscientização. Onde fica a atribuição de recurso?”, diz.
Em 2022, o orçamento federal para políticas de enfrentamento da violência contra mulheres atingiu o menor repasse de recursos dos últimos quatro anos. Segundo levantamento do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), apenas R$5,1 milhões foram destinados para esta frente. Em 2021, foram direcionados R$ 8,9 milhões, também inferior aos valores dos primeiros anos da gestão (R$ 28,3 milhões em 2020 e R$ 13,2 milhões em 2019).
Ainda de acordo com a pesquisa, no ano passado, R$ 8,6 milhões foram destinados à Casa da Mulher Brasileira, que atende vítimas de violência doméstica.
Secretaria diz contar com estrutura para combater violência
A SSP informou, em nota, que o Estado conta com uma rede de suporte para atender o público feminino, “a maior estrutura do País para combater a violência contra mulheres”. Além das 140 delegacias de Defesa da Mulher (DDM), é possível solicitar atendimento pelo aplicativo SOS Mulher. Por lá, as paulistas conseguem solicitar medidas protetivas junto ao Tribunal de Justiça. Ainda na contagem da pasta, até novembro de 2022, 69 autores de feminicídio foram presos em flagrante.
O governo informou que desenvolve, por meio da Secretaria de Políticas para Mulher, ações para reduzir a violência contra mulher. “Direito das mulheres são prioridades”, informaram, em nota.
Uma das frentes a serem desenvolvidas é a integração dos dados sobre violência contra mulher em todo o Estado de São Paulo. “Essa iniciativa será fundamental para a construção de outras políticas públicas para as mulheres como construção de abrigos regionais protegidos para a mulher vítima da violência e a criação de um programa de prevenção e monitoramento por tornozeleiras eletrônica dos agressores”, afirma.
Questionada pela reportagem sobre a redução de repasses federais, a assessoria de Damares Alves, que chefiou o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos entre 2019 e 2022. “O governo passado entendeu que o enfrentamento à violência contra a mulher deve ser realizado por praticamente todas as pastas ministeriais. Tanto que formalizou um Plano Nacional de Enfrentamento ao Feminicídio prevendo a atuação de seis ministérios, com investimento superior a R$ 500 milhões”, afirmou a assessoria de Damares, agora eleita senadora do Distrito Federal pelo Republicanos.
Entenda o que é feminicídio
Na terminologia legal, o feminicídio é um agravante do homicídio contra a mulher – mas nem toda ocorrência fatal contra pessoas do sexo feminino são interpretadas desta maneira. É preciso que o gênero seja apontado como principal motivador dos ataques.
O Direito Penal específica: são considerados dessas formas os crimes que tem como causa o menosprezo ou discriminação à condição de mulher, incluindo nesta visão os casos de violência doméstica e familiar. A lei também se estende a mulheres transexuais. Em São Paulo, segundo os dados da SSP, três mulheres trans perderam a vida em atos de feminicídio, todas assassinadas por companheiros.
É assim desde março de 2015 quando entrou em vigor a Lei do Feminicídio. A legislação alterou o artigo 121 do Código Penal, incluindo a fatalidade como qualificadora do homicídio “comum”. “Quando você qualifica este homicídio, você enxerga que ele, perante a lei, é considerado mais grave”, explica a delegada. Há um aumento na pena e os indiciados por feminicídio podem pegar até 10 anos a mais do que aqueles julgados somente por homicídio doloso (quando há intenção de matar).
Pedidos de medidas protetivas aumentam em 2022
A escalada também é sentida no judiciário. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) monitora as medidas protetivas concedidas judicialmente a mulheres através do Rompa, painel em que é possível acompanhar os pedidos de proteção. Por lá, o aumento também é evidente. Até novembro de 2022, foram 67.738 proteções deferidas, uma contabilidade que supera as 66.389 concessões ao longo de todo 2021.
Embora seja um recurso importante, a medida protetiva não garante que os casos não escalem para uma fatalidade, diz Maria Tereza Novaes, advogada criminalista. Isso porque não há fiscalização ativa de quem está ou não cumprindo o distanciamento. “Em descumprimento, é a mulher que tem que avisar à polícia. Mesmo com a medida protetiva, a mulher fica ainda vulnerável.”, relembra a advogada.
Em setembro, a cartomante Michelli Nicolich foi morta pelo ex-companheiro, o estudante de Medicina Ezequiel Lemos Ramos, na zona leste de São Paulo. Recém-chegada à capital paulista, a mulher veio de Ponta Porã, em Mato Grosso do Sul, após encerrar o relacionamento com o acusado e tinha medidas protetivas contra Ezequiel. De acordo com investigações preliminares indicam que ele armou uma emboscada na saída da escola dos filhos, no Parque São Rafael, zona leste de São Paulo.
Correções
Uma versão anterior desta reportagem informou incorretamente os anos em escalas de dois gráficos usados. O material foi corrigido.
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