Feminicídios em SP batem recorde no semestre; ‘Não tinha paz’, diz irmã de vítima

Alta foi de 36% nos primeiros seis meses do ano na comparação com o ano passado. Com 113 casos, Estado chega ao maior número desde 2018. Secretaria diz adotar medidas

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Por Adele Robichez
Atualização:

Os casos de feminicídio subiram 36% no primeiro semestre no Estado de São Paulo na comparação com os seis primeiros meses do ano passado, chegando a 113 ocorrências nas cidades paulistas. O número é o maior para o período desde que o governo passou a divulgar dados de crimes dessa natureza, em 2018. A alta segue uma tendência de aumento que já se apresentava em 2022. Nesta terça-feira, 1, uma mulher de 46 anos foi assassinada a tiros pelo ex-marido na Vila Leopoldina, na zona oeste da capital.

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O dado divulgado pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) aponta ainda outros 119 homicídios dolosos cometidos contra mulheres no período. Estes registros, por sua vez, tiveram uma variação menor, mas ainda representam um aumento de 11% em comparação ao intervalo de janeiro a junho do ano passado.

Uma maior circulação de armas de fogo entre civis e a necessidade de mais investimento em estruturas de proteção e políticas voltadas às mulheres são fatores citados pelos especialistas para explicar o crescimento dos casos de violência.

No dia 13 de junho, Isnaia Araújo deixou a filha de 4 anos na escola e se despediu. No trajeto de volta para casa, o ato rotineiro tornou-se a última memória da criança com a mãe de 34 anos. Isnaia foi alvejada. Ferida, caiu no meio da Rua Guarapiranga, em Diadema, na Grande São Paulo. O ex-marido aproximou-se, com a arma na mão. Chutou o corpo da mulher para se certificar do que tinha feito. Disparou mais uma vez. Agora, na cabeça de Isnaia. Então, virou as costas, entrou no seu carro e suicidou-se.

Isnaia Araújo foi assassinada em Diadema em junho deste ano Foto: Acervo pessoal

Com o ato brutal, a vítima deixou cinco órfãos, com idades entre 2 a 20 anos. Dois eram filhos de Isnaia com o agressor. “Era uma mãezona, protetora, guerreira... Os filhos maiores estão arrasados. Para os menores, a ficha ainda não caiu”, conta a irmã da vítima, Manoela Araújo, de 50 anos.

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Ao Estadão, ela diz que a família toda está “sem chão” desde o assassinato. “Éramos eu e ela, com outros cinco irmãos. Agora sou só eu e eles. Meu pai está destruído. Se estivesse viva, minha mãe tinha morrido junto”, lamenta.

Mais armas, mais mortes

A advogada e diretora da ONG Tamo Juntas, que presta assessoria multidisciplinar gratuita para mulheres em situação de violência, Letícia Ferreira, vê o aumento dos feminicídios como consequência da flexibilização do acesso a armas de fogo. A quantidade de armas em acervos particulares no Brasil mais do que dobrou desde 2018: foi de 1,3 milhões para quase 3 milhões.

Armas à venda em loja no Rio. Registros dispararam sob Bolsonaro. Lula baixou novos decretos para reduzir limite a civis neste ano Foto: Wilton Junior/Estadão - 15/01/2019

O acesso a armas de fogo foi uma das principais bandeiras do governo do presidente Jair Bolsonaro, que via a liberação como forma de incrementar a segurança pessoal, o que foi alvo de ações judiciais por entidades e de críticas por parte de especialistas. Para eles, a maior circulação de armas potencializa os desfechos letais em casos de violência doméstica, por exemplo.

Com a mudança de governo, houve uma redução de 52,8% nos novos registros: passaram de mais de 98,4 mil nos primeiros cinco meses de 2022 para 46,3 mil em 2023. No mês passado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva baixou novos decretos restringindo o acesso a armas a civis e atiradores esportivos (CACs).

Além das armas, especialistas citam a importância de melhoria da estrutura de atenção e apoio. “A proteção não chega para as mulheres que estão longe”, critica Letícia ao comentar a necessidade de funcionamento 24 horas das estruturas de atendimento às vítimas. A líder feminista e ativista de direitos humanos Amelinha Teles observa que “tem espancamento ou assassinato a qualquer hora do dia”. “O agressor não respeita o horário comercial.”

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Em abril, o governo federal sancionou uma lei que prevê funcionamento 24 horas obrigatório em delegacias da mulher. Na oportunidade, a Secretaria da Segurança de São Paulo informou que 11 das 140 delegacias dessa natureza operavam nesse formato. A pasta acrescentou que 77 salas 24 horas foram instaladas nos plantões policiais para atendimento por videoconferência em casos de violência contra a mulher.

Um outro fator que pode estar envolvido no aumento é a melhoria no reconhecimento judicial dos casos como feminicídio. “Aos poucos, se rompe o desconhecimento e a resistência de classificá-los como feminicídio, por ser um qualificador que aumenta a pena do acusado”, explica Letícia.

A Lei do Feminicídio (13.104/205) tornou assassinatos envolvendo violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à condição de mulher da vítima como homicídio qualificado e crime hediondo. A pena varia de 12 a 30 anos de prisão.

Dados divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública no mês passado mostraram que, no País, a proporção de feminicídios em relação ao total de homicídios de mulheres ficou em 35,6% em 2022. Em São Paulo, a proporção foi de 46,1% no período, enquanto que no Ceará, por exemplo, a porcentagem ficou em 10,6%.

A delegada Jamila Jorge Ferrari, coordenadora das Delegacias de Defesa da Mulher (DDMs) em São Paulo, reconhece que os dados de 2023 fazem jus à realidade. “Houve efetivamente um aumento do número de feminicídios. Na verdade, isso está acontecendo desde o segundo semestre do ano passado”, admite.

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Diante de casos de violência, as vítimas precisam registrar a ocorrência para que a polícia aja antes do desfecho fatal, pontua a delegada. “A mulher precisa fazer o B.O. ao menor sinal de violência porque nós temos ferramentas de proteção, nós conseguimos protegê-las”, diz.

Entre as ferramentas, Jamila cita o botão do pânico, um aplicativo que as mulheres com medida protetiva podem acionar para alertar a Polícia Militar em caso de aproximação do agressor. Ela ressalta que o registro pode ser feito em qualquer delegacia e também de maneira online, pela Delegacia Eletrônica da Polícia Civil.

“As medidas são eficientes, estamos dando todas elas para a mulher pedir ajuda. Mas é necessária uma conversa mais profunda sobre os motivos da violência contra a mulher, pois não é um problema apenas de segurança pública, precisa haver políticas no sentido educacional”, defende.

Entre as medidas adotadas pela secretaria para mitigar o crescimento da violência contra a mulher, a delegada falou sobre as tornozeleiras eletrônicas para agressores. No momento, está sendo construído o edital para publicar a licitação que permitirá a compra dos equipamentos.

No ano passado, esta fase chegou a ser realizada, mas teve que ser refeita por “questões administrativas”. A SSP-SP informou ainda que trabalha em conjunto com a Defensoria Pública e o Ministério Público do Estado, além de “procurar convênios com os municípios, responsáveis pela maioria dos serviços de rede assistencial e social”.

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Feminicídio é pico de escalada de violência

O feminicídio é o fim letal de uma escalada de violência que tende a aprisionar a mulher em um ciclo difícil de romper, apontam especialistas. Normalmente, o agressor a isola do resto do mundo; a faz se sentir culpada; a ameaça. E isso se estende aos filhos das vítimas.

Por isso, a pesquisadora Giane Silvestre frisa que a falta de políticas públicas eficazes para combater a violência desde o início são mais um estorvo em um caminho muitas vezes solitário e inconsistente. “Esse aumento é grave porque o feminicídio é evitável, não acontece do nada, de repente. É o pico de uma escalada de violência”, diz.

Além da Lei do Feminicídio, existe no Brasil a Lei Maria da Penha (11.340/2006), reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) como uma das mais avançadas do mundo. Ambas visam garantir os direitos e a proteção à vida das mulheres.

Em Rio Claro, no interior de São Paulo, guardas civis desenvolvem programa de Patrulha Maria da Penha, em que prestam assistência a vítimas Foto: Epitácio Pessoa/Estadão - 04/01/2019

“São leis boas, aplicadas de maneira inadequada”, considera Amelinha. De acordo com a ativista, a falha no acolhimento das mulheres as revitimiza e incentiva a renúncia pela busca da sua proteção. “O Estado deixa que elas sejam assassinadas”, lamenta.

Isnaia, por exemplo, tinha medida protetiva para tentar se resguardar do risco da aproximação do seu agressor. A irmã conta que ele já havia a ameaçado de morte e clonado o seu celular. “No início ele era bonzinho, depois foi começando a aparecer o lado ciumento, ele tinha ciúmes até da sombra dela. Ela não tinha paz. Quando conseguiu sair, já foi tarde”, relembra Manoela.

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Como procurar ajuda?

Criada em 2020 pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), a Plataforma Mulher Segura reúne os principais serviços e canais de apoio para mulheres em situação de violência. As informações são divididas por estados e por formato de atendimento (online e presencial). Acesse o site aqui.

Em caso de emergência, a polícia deve ser acionada pelo disque 190. Para registrar um boletim de ocorrência, a mulher pode procurar uma Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM) ou qualquer delegacia comum. O registro também pode ser feito online. A delegacia deve enviar o caso ao juiz em 24 horas. Ele, por sua vez, tem 48 horas para avaliar a concessão de medida protetiva.

Denúncias anônimas ou identificadas podem ser feitas pela Central de Atendimento à Mulher, pelo Ligue 180. O serviço é gratuito e funciona 24 horas por dia, todos os dias da semana. As queixas são encaminhadas aos órgãos competentes, mas não substituem a ida da vítima à delegacia, pois não abrem um boletim de ocorrência.

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