"Jamais esta capital e quiçá muitas outras cidades do nosso País viram mais imponente e espontânea manifestação de dor e profunda saudade de uma população inteira para com um cidadão que tanto mais merecimento tivera", noticiava o Estadão (então Província de S. Paulo) sobre a morte de Luiz Gama, em 1882, descrito como um dos “nossos homens ilustres”, de "inquebrantável honestidade, lutas e sacrifícios".
O advogado, escritor, jornalista, intelectual, figura política influente e abolicionista voltou a ganhar destaque nos últimos anos, por gerações que o conheciam apenas por nome (ou nem isso). Agora, 139 anos depois de sua morte, está em um processo de resgate e revalorização por meio de pesquisas acadêmicas, livros, obras artísticas e homenagens. Para além do nome, a proposta é mostrar a história, as realizações, a obra e as ideias de uma figura fundamental da história brasileira.
Para pesquisadores, o abolicionista negro que libertou mais de 500 pessoas escravizadas está em um momento de “reparação histórica”. Em seis anos, foi oficialmente reconhecido como advogado (pela OAB, em 2015), herói da pátria (2018, no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria, após publicação de lei federal), como jornalista (pelo Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, em 2018) e como intelectual, ao ser o primeiro brasileiro negro a receber o título de doutor honoris causa da USP —concedido há pouca mais de uma semana.
Gama terá a obra completa publicada em uma coleção pela primeira vez, até dezembro de 2022 e em 10 volumes, segundo a editora Hedra. Com organização do pesquisador Bruno R. de Lima, serão cerca de 750 textos, dos quais a editora diz que mais de 80% são inéditos, entre poesia, sátira, crônica, escritos de intervenção política, literatura jurídica e, principalmente, artigos abolicionistas. Além disso, é retratado em um filme com estreia marcada para o mês que vem.
O novo título de doutor honoris causa tem ainda a simbologia de ser entregue pela universidade que hoje é integrada pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, na qual o advogado nunca foi admitido como estudante, embora tenha frequentado de outras formas. É o que diz o professor de Jornalismo da USP, Dennis de Oliveira, um dos idealizadores da proposta e pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre o Negro Brasileiro na mesma instituição.
“Ele era um intelectual que circulou por diversas áreas, um intelectual autodidata e que atuava publicamente em prol de mudanças”, comenta o docente, que está com um projeto de criar uma cátedra acadêmica com o nome de Gama. “A ideia é fazer com que suas obras sejam mais conhecidas.”
Para ele, um dos motivos pelos quais o advogado passa por uma revalorização é o fortalecimento do movimento negro e o crescimento do número de estudantes e pesquisadores negros no ensino superior. Além disso, destaca, essa nova geração não só busca evidenciar a presença negra brasileira no campo intelectual, como expor que a abolição da escravatura envolveu a atuação efetiva dessa população (por meio de figuras como o próprio Gama, José do Patrocínio, André Rebouças e outras).
Parte desse resgate está ligado ao trabalho de Ligia Fonseca Ferreira, professora da Unifesp, pesquisadora da obra de Gama desde os anos 1990 e responsável por “Lições de Resistência - Artigos de Luiz Gama na Imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro” (de 2020) e “Com a Palavra Luiz Gama. Poemas, Artigos, Cartas, Máximas” (2011), dentre outros livros relacionados ao escritor.
“Ele nunca foi totalmente desconhecido. Falava-se do abolicionista Luiz Gama, mas conhecia-se pouquíssimo dos seus textos. Houve não só um silenciamento, mas um apagamento”, descreve. “Eu queria encontrar a voz de Luiz Gama. Ele era um homem que tinha coisas a dizer, e usou todas as mídias do seu tempo”, completa. “Na época (que começou a estudar o tema), era quase impossível achar (textos escritos pelo autor)”, recorda-se.
Ligia diz que o trabalho de Gama é ao mesmo tempo complexo e atual. “Era um observador mais do que atento ao modo de funcionar do Brasil. Desde o primeiro livro, denunciava a corrupção, as questões da educação, critica os maus jornalistas…”, resume.
Luiz Gama também ganhou espaço nas artes
Um garoto vendido ilegalmente pelo próprio pai, e que conseguiu retomar a própria liberdade anos depois. Um advogado autodidata que se tornou referência no País e utilizou das leis para garantir a libertação de escravizados. Um intelectual e formador de opinião que publicou nos principais jornais, enquanto também escrevia trovas e fazia charges. Um homem negro que se tornou uma das principais figuras públicas do século 19, em meio à presença ainda da escravidão.
Um breve resumo como este da vida de Gama mostra o porquê do cineasta Jeferson De ter se questionado em 2014: “Depois de mais de 100 anos de cinema no Brasil, como ninguém filmou a história desse cara?”
"Como a maior parte dos brasileiros, o diretor desconhecia totalmente a existência do Luiz Gama. Quando li as primeiras páginas do roteiro, fiquei admirado com a trajetória”, conta. O resultado é o filme Doutor Gama, com estreia prevista nos cinemas em agosto.
A produção teve preocupação em manter-se fiel ao legado da figura histórica, aproximando-se de informações levantadas por pesquisadores, mas com algumas “liberdades artísticas”. “O cinema de ficção brasileiro raramente viu a contribuição intelectual negra. A gente traz a figura do Luiz Gama como sujeito dessa luta”, comenta o cineasta.
À equipe, Jeferson costumava lembrar que todos tinham a responsabilidade de estar retratando a vida de um “súper herói”. “Gostaria muito que Doutor Gama fosse essa porta de entrada, para mergulhar na própria obra do Luiz Gama, que tenha essa provocação, que desperte curiosidade.”
No teatro, a trajetória da figura histórica chegou um pouco antes. A peça Luiz Gama: Uma Voz Pela Liberdade está no quinto ano de apresentações, majoritariamente no Rio. Na pandemia, é encenada pela internet. Na TV, por sua vez, o especial Falas Negras, da Globo, colocou Flavio Bauraqui na pele de Gama em novembro passado.
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