Artéria que vai do Vale do Anhangabaú aos bairros de Santa Cecília, Barra Funda e Campos Elíseos, a Avenida São João reúne atividades comerciais, culturais e de lazer icônicas na cidade, como a Galeria do Rock.
Abertas para todas as tribos da cultura underground, mas historicamente conhecida como a meca dos roqueiros, as mais de 450 lojas (taxa de 94% de ocupação hoje) representam mais que um centro comercial. “É um lugar que tem alma”, define Antonio de Souza Neto, o Toninho, de 75 anos, síndico do local desde 1993.
O carisma do ponto de encontro, porém, contrasta com a decadência da região central, que sofre com a alta de moradores de rua e o espalhamento da Cracolândia nos últimos dois anos. Somado a isso, está a explosão de roubos, saques e até ataques a pedradas, como ocorreu com o Bar Brahma em dezembro.
A Galeria do Rock quer renovar seu público e tem planos para 2024. Os primeiros acordes desse movimento começam neste domingo, 21. Literalmente. Com o teste de fechamento da Avenida São João para veículos, cinco bandas parceiras da Galeria se apresentam em um palco no largo do Paissandu, numa parceria com a Secretaria Municipal de Cultura.
O modelo é semelhante ao da Avenida Paulista. A tentativa de atrair mais pedestres e ciclistas para lazer na São João é levada à frente pela Prefeitura após pedidos de empresários da região, que têm cobrado do poder público soluções para revitalizar o entorno.
Toninho levanta os braços, com pulseiras e braceletes, e diz que está entusiasmado com o projeto. Se o projeto continuar, a galeria terá uma mudança importante em sua própria rotina. O centro comercial costuma abrir suas lojas aos domingos apenas no mês de dezembro (quatro datas por ano, portanto). Com isso, o local icônico poderá abrir sempre aos domingos.
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O próximo passo da galeria será a inauguração do bar Galeria do Rock, em fevereiro. O novo espaço, no subsolo, terá decoração temática, com estilo industrial e rústico. O local, que já funciona apenas para lojistas, por enquanto, vai oferecer 60 lugares ao público com o tradicional prato do dia, lanches e porções.
“É um bar para atender quem quiser relembrar a sua história com a galeria. Como ela é muito eclética, é um bar em que você vai se sentir bem”, diz Marcone Moraes, presidente do Pro Centro, associação de empreendedores da região, e conselheiro na Galeria do Rock.
Nesse contexto, a ideia é deixar a galeria mais aberta e diversificada. Prova disso foram os seis concertos Candelight realizados no ano passado, no quinto andar. As apresentações musicais à luz de velas e ao ar livre, com instrumentos de música erudita, tentam aproximar o pop do erudito. Na agenda, um dos destaques foi a interpretação das canções da banda Charlie Brown Jr e Rita Lee por um quarteto de cordas. Os concertos vão continuar em 2024.
“Buscamos democratizar o acesso à música clássica. Muitas vezes confinadas a salas tradicionais e a um público limitado, obras dos maiores compositores e artistas renomados agora ressoam em lugares emblemáticos, como a Galeria do Rock, que faz parte do patrimônio cultural da cidade”, afirma Dênnys Araújo Santos, gerente de Projetos da Fever no Brasil.
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Toninho conversa com a reportagem numa tarde de quinta-feira no terraço, que tem um palco para pequenas e médias apresentações. O próprio fotógrafo do Estadão, Tiago Queiroz, se emociona ao lembrar que ele próprio havia tocado no local, com sua banda Os Ervas Daninhas, em 2017.
O Centro Comercial de Grandes Galerias foi inaugurado em 1963 para atender à alta demanda por comércio na região central. Era sinônimo de elegância, com o estilo modernista inspirado nas curvas de Oscar Niemeyer. “Novas artérias ligando a rua 24 de Maio à Avenida São João”. Assim foi apresentado o centro comercial na edição do Estadão de 10 de junho de 1960.
No início dos anos 1970, a galeria perdeu lojistas para empreendimentos das zonas sul e oeste, rumo aos shopping centers, novidade à época. Foi na década de 1980 que o local ganhou atenção com a popularização das lojas de discos. Mas o contexto era difícil. Regime militar e cultura alternativa não cabiam nos mesmos versos.
Jornalista e psicólogo de formação, o síndico largou, há 30 anos, sua loja de fotografia que tinha no próprio local desde 1974 para administrar o número 439 da São João. Era um pepino à época, principalmente por causa da criminalidade.
Segundo Toninho, antes a galeria tinha “baderna” e foi feito um esforço de recuperação. “Era local de assaltos, as pessoas se drogavam nos corredores”, diz. “Hoje, a galeria é segura e você não vê drogas aqui dentro”, afirma.
Impulsionada pela alta do mercado de discos, a galeria contava com 450 lojas abertas, das quais 140 eram voltadas às vendas de vinil no início dos 1990. A década seguinte trouxe novas tendências e frequentadores, impulsionadas pela Internet.
Em um clima mais ameno, famílias e turistas se misturavam à essência underground. Lojas especializadas em piercings, tatuagens, skate e até surfshops ganharam espaço.
Toninho já até palestrou em seminários no exterior para falar sobre a galeria e inspirou o personagem Ramon Pinón, da novela Tempos Modernos, da TV Globo, em 2011.
Com orgulho, ele conta que a galeria está entre os cinco melhores shopping centers de São Paulo, de acordo com o site TripAdvisor. “Foi um dos melhores presentes de Natal que recebi em anos.”
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