Empreendedores e ativistas organizam passeios turísticos em São Paulo para mostrar como a presença negra foi apagada ou minimizada em vários locais históricos. Os roteiros incluem lugares de resistência, venda, tortura ou execuções de escravizados que possuem sinalizações discretas ou nem isso. É o registro de uma história (quase) apagada. Estátuas negras também estão em posição de inferioridade: além de raras, elas são menores que as outras.
Esse primeiro parágrafo ganha outra dimensão quando pegamos a garrafa de água, conferimos a bateria do celular e seguimos as indicações dos pontos pretos do mapa. Sob a curadoria da plataforma de afroturismo Guia Negro, o Estadão fez uma caminhada pelo centro no dia 15.
O ponto de encontro é a Praça da Liberdade. Conhecida pelas tradições japonesas, a região guarda vestígios de raízes culturais diferentes. Nos séculos 18 e 19, o local era o Largo da Forca, onde negros e indígenas eram castigados. Isso está sinalizado com uma placa de 35 cm de diâmetro na saída lateral do metrô. O marco cita as execuções, entre elas a de Francisco José das Chagas, o Chaguinhas, cabo negro condenado por liderar um motim pela falta de soldo. Depois que a corda arrebentou duas vezes, as pessoas começaram a gritar “Liberdade”.
Descendo a Rua dos Estudantes, está a Capela de Nossa Senhora dos Aflitos. O prédio cinza fica escondido atrás de quatro sequências das lanternas japonesas. A capela é o que restou do cemitério, primeira necrópole de São Paulo, que recebeu indigentes e condenados à forca, a maioria escravizados fugitivos entre 1775 a 1858. É ali que está enterrado Chaguinhas, que se tornou um santo popular que ainda atrai visitantes.
Em dezembro de 2018, um trabalho arqueológico encontrou nove ossadas humanas. Embora o então prefeito Bruno Covas, falecido em maio, tenha sancionado o projeto de lei que cria o Memorial dos Aflitos, a capela não tem placa ou sinalização. “Uma das reivindicações do movimento negro é a retirada do símbolo da cultura oriental para dar maior visibilidade para a capela”, afirma o jornalista Guilherme Soares Dias, um dos guias da caminhada.
Da Liberdade para o centro histórico. Até 1865, a Praça Sete de Setembro possuía uma coluna onde os escravizados fugitivos eram açoitados. É o Largo do Pelourinho. Aqui a identificação é uma placa azul em um edifício administrativo do Metrô, no mesmo padrão daquela do metrô Liberdade.
Essas identificações foram instaladas pela Prefeitura de São Paulo no inventário “Memória Paulistana” para nomear lugares referenciais para vários grupos sociais da cidade. Esses marcos foram identificados em 2019, ou seja, até dois anos atrás, não havia nenhuma sinalização.
Aqui, vale abrir parênteses. Uma das regras de ouro do jornalismo é ser objetivo. Evitar que as emoções e visão de mundo do repórter interfiram no que ele vê. Mas vale abrir uma exceção e dizer como eu entrei de um jeito na caminhada e saí de outro. Como negro e periférico, percebi detalhes de uma história não contada.
Existem outros passeios na cidade. Identificado como “pesquisadores pretxs em busca da memória negra apagada do centro de São Paulo”, o coletivo Cartografia Negra criou há quatro anos a “Volta Negra”. Com foco nas escolas, o grupo já realizou caminhadas abertas, com contribuição voluntária dos participantes. Agora, o foco são grupos fechados, escolas e empresas. “Importante é estar na rua passando essa informação sobre um patrimônio que não é celebrado pela narrativa oficial”, afirma a cientista social Raíssa Oliveira.
O início da caminhada de nove pontos é o Largo da Memória, no Anhangabaú. Ali, no Obelisco de Piques, funcionavam feiras e leilões para vender pessoas escravizadas até o final do século XIX. Existe uma placa de identificação, mas sem alusão ao leilão.
Outro lugar do roteiro é o Largo da Misericórdia. Construído pelo arquiteto e engenheiro negro Joaquim Pinto de Oliveira, o Tebas, em 1792, o largo era um lugar de movimento, onde homens e mulheres negras se reuniam entre encher um balde e outro de água para conversar e organizar maneiras de resistir à escravidão.
Estátuas reduzidas
As estátuas recebem atenção especial nos roteiros. De acordo com a pesquisa “A presença negra nos espaços públicos de São Paulo”, do Instituto Pólis, a cidade tem 367 monumentos. Desse total, apenas 6 são de figuras negras. Isso representa menos de 3% do total. Além de minúscula representatividade, elas recebem críticas dos ativistas.
A estátua de Zumbi dos Palmares tem 1,67m (2,20m, considerando o punho erguido). Ela divide o espaço com o coreto da praça Antonio Prado e, atualmente, está ao lado das mesas do bar e restaurante Salve Jorge. A estátua de Borba Gato, em Santo Amaro, tem 10 metros (13m com o pedestal). A de Duque de Caxias, nos Campos Elíseos, é o maior monumento equestre do mundo com a altura de um prédio de dez andares (48 metros).
"Ao analisarmos os monumentos da cidade de São Paulo, conseguimos notar a sub-representação de pessoas negras. Homenageadas em menor número, muitas vezes retratadas em posições subalternizadas e em proporções reduzidas quando comparadas a obras como o Monumento às Bandeiras, pessoas negras precisam se defrontar diariamente com a invisibilização de sua contribuição para a construção da cidade", afirma Cássia Caneco, pesquisadora do Instituto Pólis.
Em outros casos, as estátuas são controversas, como uma “mãe preta” do Largo do Paiçandu, referência às amas de leite. É a única estátua de uma mulher negra em São Paulo. “Essa representação reforça a ideia de subalternidade das mulheres negras”, explica o produtor cultural e guia turístico Heitor Salatiel, do Guia Negro.
O racismo estrutural impõe uma presença negra que não é relevante, omitindo a sua presença como construtora da sociedade
Solange Barbosa, CEO da Rota da Liberdade
Para os pesquisadores, a subrepresentação de negros e indígenas evidencia o racismo estrutural. “O racismo estrutural impõe uma presença negra que não é relevante, omitindo a sua presença como construtora da sociedade”, diz Solange Barbosa, especialista em afroturismo e CEO da Rota da Liberdade. “Nesse contexto, as novas narrativas e roteiros afrocentrados são uma forma de resistência e um resgate histórico”, completa.
No Brasil todo
Iniciativas semelhantes se multiplicam no País. Nos passeios que conduz em Salvador (BA), a guia de turismo Sayuri Koshima mostra a escultura de Tomé de Sousa, o Elevador Lacerda, mas é obrigada a emendar. “Nada aqui conta a história negra”.
Com quatro mil pessoas cadastradas e presença de 145 cidades, a plataforma Diáspora Black oferece opções com experiências afrocentradas, como vivências em quilombos no Brasil. Uma das opções mais buscadas no Rio é a Pequena África. Berço do samba e da resistência negra, a região também é sede da Casa da Tia Ciata, “capital” da Pequena África desde os tempos coloniais. Mesmo com foco no turismo da cultura negra, Carlos Humberto Silva, um dos fundadores, diz que a plataforma é aberta para todos e que 20% dos cadastrados são não negros.
"A obrigatoriedade ao ensino da história afro-brasileira e indígena é uma forma de combater esse apagamento, mas há muito a ser feito", afirma a turismóloga Thaís Rosa Pinheiro, especialista em História da África e Afro-brasileira e que está à frente da agência Conectando Territórios. "O turismo tem esse papel que pode aliar com a educação e aproximar mais as pessoas da história afro- brasileira visitando lugares de memórias e experienciando a cultura", completa.
Em Santa Catarina, a agência Ubuntu combina roteiros tradicionais e afrocentrados. Uma das iniciativas é preparar as comunidades quilombolas do Largo da Conceição, em Florianópolis, para explorar o potencial turístico da região. "Um dos nossos objetivos é intensificar o afroturismo em Santa Catarina", explica Luciano Machado, proprietário da agência.
Especialistas também identificam o apagamento negro também nos registros historiográficos. O historiador Elton Soares de Oliveira, autor do livro Origens da presença negra em Guarulhos - a África em nós, mostra a importância dos negros na formação do povo de Guarulhos, na grande São Paulo. Na obra, ele destaca a primeira lavra de ouro do Brasil, de 1589, onde foi encontrada uma cerâmica de origem africana, com traço incísico, ou seja, com uma ponta de madeira para fazer o desenho.
"A mineração em Guarulhos antecede Minas Gerais em mais de 100 anos. Os indígenas não tinha hábito de escavar o ouro. Essa tradição está presente na África. Quem descobre o ouro em Minas são aqueles que já haviam feito a descoberta em São Paulo, com contribuição direta dos escravizados", argumenta o historiador.
A procura pelos passeios históricos vem aumentando, principalmente no mercado corporativo. O Guia Negro contabilizava dois passeios por mês antes da pandemia. Agora, eles são feitos todos os finais de semana. O número de empresas atendidas passou de duas para dez por mês.
O Diáspora Black anuncia um crescimento de 234% em clientes desde 2020, número influenciado diretamente pelo crescimento de eventos on-line, como oficinas e palestras sobre diversidade e cultura negra. Na Bahia, Sayuri conta que o roteiro negro é o mais vendido entre os turistas. Ela recomenda que cada viajante procure conhecer a história negra e indígena de todo lugar que visitar, além dos relatos oficiais.
Prefeitura aguarda desapropriação do terreno para criar Memorial
Sobre a criação do Memorial dos Aflitos, na Liberdade, a Secretaria Municipal de Cultura informa que "aguarda a conclusão do processo de desapropriação do terreno, ao lado da Capela dos Aflitos, e a imissão de posse para o lançamento do edital de concurso para selecionar e premiar um projeto de arquitetura para a construção do Memorial".
Para diminuir a diferença entre o número de estátuas de figuras brancas e negras na cidade, a pasta informa que "foram contratados cinco escultores negros que estão desenvolvendo cinco esculturas em homenagem a personalidades negras, que ficarão dispostas em diferentes locais nos espaços públicos, de acordo com a referência, história e vivência de cada uma delas. Uma produtora negra produzirá seis web documentários sobre o processo de concepção das esculturas.
As estátuas são do cantor e compositor Geraldo Filme, referência do samba e do carnaval de São Paulo; a escritora Carolina Maria de Jesus, uma das mais lidas no Brasil; Adhemar Ferreira da Silva, primeiro bicampeão olímpico do país; Deolinda Madre, Madrinha Eunice, referência por sua militância e precursora do samba paulistano; o cantor e compositor Itamar Assumpção.
Para dar mais visibilidade às histórias e culturas negras, a pasta informa que investe em projetos artísticos e de formação cultural por meio de editais com pontuação específica para candidatos negros. Além disso, a pasta afirma que possui equipamentos temáticos, como a Casa de Cultura Hip Hop Leste, na Cidade Tiradentes; a Casa de Cultura Hip Hop Sul, na Vila São Pedro, e a Casa do Sítio da Ressaca (Jabaquara), entre outros.
Serviço
Caminhada São Paulo Negra
Guia Negro
Caminhadas: São Paulo Negra, Bixiga, Barra Funda e ações corporativas (empresas e escolas)
Duração: 3h
Valor: R$ 60
Como se inscrever: guianegro.com.br/
Volta Negra
Coletivo Cartografia Negra
Caminhadas: Volta Negra (9 pontos da cidade) para grupos fechados, empresas e escolas*
Mais informações: www.instagram.com/cartografianegra/
*Por conta da pandemia, atividades são remotas e presenciais
Diáspora Black
Experiências afrocentradas e serviços de afroturismo
www.diaspora.black
Rota da Liberdade
Passeios por quilombos no litoral e roteiros afrocentrados no interior de São Paulo
Valores: R$ 270 a R$ 450
www.rotadaliberdade.site/
Conectando Territórios
Turismo com foco nas comunidades tradicionais (quilombolas, indígenas e caiçaras) no Rio
conectandoterritorios.com.br/
Reservas: contato@conectandoterritorios.com.br
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