SÃO PAULO - O som caloroso da música caribenha que saía de um aparelho de som barato nas mãos do haitiano Ricardo Assainth, de 18 anos, contrastava com a situação do grupo de oito pessoas que ouvia a música na manhã fria de São Paulo desta quinta-feira, 24. Fazendo só uma refeição por dia, dormindo em cima de cobertores sobre o chão duro, e sem fazer ideia de qual seria seu futuro, eles cantavam a música, imediatamente associada ao sol das praias tropicais.
O grupo está, há duas semanas, no Centro da Pastoral do Migrante, no Glicério, no centro da cidade. “Gastei US$ 3 mil para chegar até aqui. Economizei. Na minha terra, vivia uma vida melhor do que a que estou vivendo”, explicou Assainth. “Vim porque havia promessa de oportunidades aqui. O Brasil tem muito emprego. Mas não consegui nenhum porque não tenho carteira de trabalho”, diz o haitiano, que pretende trabalhar para pagar uma formação universitária por aqui. Agora, enquanto aguarda o documento, passa os dias sem ter o que fazer.
O pleno emprego brasileiro, que enche a boca de líderes governamentais, foi o que atraiu os imigrantes, nascidos em um dos países mais pobres do mundo e que foi destruído em 2010 por um terremoto. “Meu governo tem muita culpa pelo que está acontecendo. Eles não trabalham. Receberam ajuda do mundo todo depois do terremoto, mas roubam todo o dinheiro”, acusa Thomas Evenson, de 25 anos, que já está há dois anos no Estado de São Paulo. Mas ele também critica o governo brasileiro. “Se quiseram abrir as fronteiras para a gente, como fizeram, deveriam ter se preocupado em arrumar documentos, dar estrutura, para as pessoas trabalharem. O que falta são só papéis, é a burocracia. Se não nos quisessem, que fechassem a fronteira”, afirma.
Cerca de 100 pessoas passam a noite no centro. Quando acordam, circulam pelas redondezas – não há dinheiro nem para o ônibus. Evenson, que está aqui há dois anos, foi ao centro nesta quarta para ver se havia alguém que ele conhecesse entre os imigrantes. No bolso, um cartão de débito. “Se tiver algum conhecido, vou ao menos pagar um almoço, dar R$ 50. Eles não têm xampu, tem alguns sem escovas de dentes. Haitiano também é gente, ninguém deveria estar nessa situação”, afirma. “Isso me entristece muito”, completou o trabalhador – ele trabalha em uma tecelagem em Santa Bárbara D’Oeste, depois de seu primeiro emprego paulista, em uma rede de restaurantes de estrada.
Carências. Depois do começo da vida no país arrasado, juntar toda a renda para a viagem ao Brasil e passar fome no Acre, segundo relatam, os haitianos vieram de ônibus até São Paulo. Alguns, com parentes já aqui, tinham promessa de emprego. Mas a falta da documentação atrapalhou os planos.
A dureza dos últimos meses, com privações de sono e de comida, os tornou arredios. Os olhos fitam com raiva os repórteres que se aproximam, especialmente os fotógrafos. A desconfiança é geral. Mas, depois de pouca conversa – atrapalhada pelo fato de eles não falarem nem português, nem inglês nem espanhol, apenas o idioma creole de sua terra e francês – eles se mostram calorosos. E desesperados.
“Eles não gostam de fotos porque não querem que as imagens deles nessa situação chegue até o Haiti”, explica o padre Paolo Parise, que tem acolhido como pode os imigrantes. “Tivemos um grande fluxo no começo de 2012, mas não chamou a atenção da imprensa. Mas esse é o maior fluxo desde que estou aqui (há três anos)”, diz o padre.
Segundo Parise, há duas necessidades mais urgentes. Primeiro, um abrigo adequado aos haitianos. Em segundo lugar, documentação adequada para que eles possam trabalhar. “O abrigo é uma responsabilidade da Prefeitura. Já estiveram aqui na semana passada, mas a ajuda não veio”, diz o padre.“Vamos ver as carteiras de trabalho nesta tarde, com a vista da secretária de Justiça (e da Defesa da Cidadania Eloisa de Souza Arruda)”.
A secretária fez duras críticas na quarta-feira a seu equivalente no Acre, o secretário de Justiça e Direitos Humanos Nilson Mourão. O chamou de “desleal” ao enviar os haitianos a São Paulo sem avisá-la. Ele rebateu, afirmando que ela “deveria se informar melhor” sobre a situação e dizendo que os haitianos não queriam ficar no Acre, uma vez que as melhores oportunidades estão no sul do País – São Paulo incluso. “Nós ajudamos. É o digno”, afirmou.
Os haitianos relatam que essa ajuda é relativa. Alguns, que tinham como destino final Santa Catarina, onde um frigorífico tem empregado imigrantes, não receberam ajuda até destino final. Só até o Terminal Rodoviário do Tietê, na zona norte de São Paulo.
Padre Paolo diz não querer entrar na discussão política. Mas confirma a versão. “Ele (Mourão) me ligou pedindo ajuda. Queria que enviássemos uma assistente social ao Tietê e intérprete para ajudá-los a continuar a viagem. Mas muitos não tinham o dinheiro para continuar”, afirma.
Assim, os haitianos acabaram na pastoral. Nos últimos 15 dias, foram 400 que chegaram em São Paulo. A maior parte deles, no entanto, já conseguiu lugar para ficar. Mas a questão trabalhista persiste. “O documento está demorando um mês e meio para sair”, diz o padre. Enquanto não sai, os haitianos continuam ali. Enquanto cantam, se dizem arrependidos da viagem, mas sonham com um futuro melhor.
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