A polêmica fonte de Serra Negra
Chegou-me aqui a Fontana Di Trevi de Serra Negra! Os amigos sabem que sou arquiteto e me mandam todo tipo de coisa. Para eles, eu tenho tudo a ver com isso, pela mera designação profissional.
Hoje em dia todo mundo tem um lado turma-do-fundão-da-quinta-série aflorado em algum grupo de mensagens. Naturalmente, também participo de um grupo desses, de bagunça escrita, naquele aplicativo de conversas que atrapalha a democracia e a produtividade no trabalho. Por lá os amigos vivem mandando coisas mal acabadas e atentados cometidos pela construção civil, parabenizando-me por "mais uma belíssima obra realizada". Se estou inspirado, devolvo a brincadeira com textos bem humorados, explicando a obra como se a autoria fosse minha e dando ar de seriedade à crítica que se desenrola, bem ao modo dos memoriais escritos pelos arquitetos na defesa de seus projetos.
Dessa vez, me encaminharam a Fontana Di Trevi de Serra Negra, interior de São Paulo. Gosto muito da cidade, onde já estive por diversas vezes para desfrutar de gostosas pousadas em seus charmosos e calmos arredores, em meio às montanhas do interior paulista. São lembranças muito ternas, de estadias costuradas por passeios de mãos dadas, com minha esposa, nessas paisagens que ela ama.
Tendo elogiado a querida estância turística, e os elogios são sinceros, voltemos ao nosso objeto.
Trata-se da Fontana di Trevi de Serra Negra, e não em Serra Negra. A diferença é simples. Se fosse a grande fonte em Serra Negra, ela seria a própria, ou gêmea siamesa da Fontana primeira. E não é. Trata-se de uma reprodução local com diversas variações e adaptações ao gosto do autor e do financiado, obviamente - não sejamos pueris a essa hora, já estamos no sexto parágrafo. Logo, nossa pauta trata de um fenômeno localizado, específico e único: a Fontana di Trevi de Serra Negra, uma exclusividade local, cuja notoriedade empresta da matriz italiana para afirmar sua importância.
A Fontana Di Trevi original fica em Roma, num ponto onde chegavam um aqueduto romano e três estradas - três vias, por isso Tre vi. Não faz muito tempo, passou por longo restauro e foi reinaugurada. Estive lá durante as obras e visitei-a bem de perto, andando por andaimes e aprendendo sobre os trabalhos realizados na obra barroca de Nicola Salvi, viabilizada pelo papa Clemente XII, em 1730, cem anos após sua primeira idealização, em 1629, por encomenda do papa Urbano VIII a Bernini. Cento e um, na verdade, mas fiquemos com o cem redondo e consideremos o ano adicional como culpa da burocracia italiana que, mesmo numa data redonda como essa, teimou em emperrar o processo por mais um ano, puro capriccio barocco.
Três estradas convergem para o centro da estância turística serrana, que localizarei entre a Rua Paulínia e o Café Boteco. A um quarteirão dali encontra-se, junto ao vasto arvoredo do Conjunto Aquático Municipal, a Fontana di Trevi de Serra Negra. Diferentemente da matriz romana, implantada em vasta, bela e pavimentada praça, a nossa fonte implanta-se defronte majestosas copas tropicais.
Da rua vemos apenas o paredão de pedras-de-rio locais cobrindo as costas do monumento. Alude, miniaturizadamente, às muralhas e aquedutos romanos. É como se a colônia italiana da cidade recapitulasse diversos aspectos de sua trajetória e história, de dura labuta e grande nostalgia. E apesar do aparente embrutecimento, encontra-se ali uma linda fonte, fruto do mesmo trabalho de quebrar e empilhar pedras, reunindo estátuas que jorram água fresca. Nas cidades romanas, a disponibilidade de água era sinal de prosperidade.
A fácil denúncia purista diria tratar-se de um típico simulacro, nome dado àquela imitação que se sabe imitação, mas finge conter os mesmos atributos do original. Todo mundo conhece alguém assim, que se afirma ostentando peças falsificadas de algumas marcas, como se ninguém soubesse - e todo mundo sabe. Prefiro, no caso, ficar com o fenômeno, ou seja, basta sabermos que existe, sem julgamento.
Similarmente, comparo a obra paulista a outras duas Fontanas di Trevi implantadas mundo afora. Uma delas fica em Las Vegas, cidade autoexplicativa, capital estadunidense dos cassinos e da cenografia feita de referências a tudo o que não está ali. Lá reproduzem-se canais de Veneza, praças italianas, Torre Eiffel, pirâmides do Egito e até Elvis Presley, em carne e ossos, chacoalhando, tudo batido na coqueteleira dos significados e servido em taça reta, com gin e azeitona no palito, em meio a fumaça com cheiro de morango e luz neon cor de uva. A outra Fontana repousa mais tranquila, na província chinesa de Shadong, em meio a um centro de compras semelhante ao entorno da fonte de Serra Negra, nomeado Fontana di Trevi and Bora Square - assim, em inglês mesmo, e penso que possa ser uma cópia fiel da Fontana de Las Vegas antes de sê-la da outra, a matriarca italiana. Quem sabe? Já imaginaram, a cópia fiel de uma versão adulterada?
Quem, algum dia, imaginaria que a Fontana di Trevi de Serra Negra pudesse ser tão veemente afirmação de um pós-modernismo brasileiro e inconsciente?
A crítica arquitetônica local formou-se no elogio de nosso modernismo, exercício emocionado da razão cravado em vinte e dois do século passado, e que catorze anos depois reverbera no edifício para o Ministério da Educação, projetado sob a liderança de Lúcio Costa, em 1936, inaugurando ali Oscar Niemeyer para o mundo. Realmente, nosso ensaio moderno foi muito importante, apesar de o país não ter se modernizado como imaginaram. Brasília é prova disso: quatro anos depois de sua inauguração, o primeiro retrocesso institucionalizado. Ficamos, pois, órfãos da promessa não cumprida, "Queremos um Brasil moderno!", e isso nos petrificou. Ainda que muito tardia, lá em 1960, bem no "agora vai!", aos pés do cumprimento da profecia, o corte abrupto que gerou o trauma. E assim, como quem quer retomar o fio da meada irretomável, seguimos reafirmando a grandeza de nossa arquitetura moderna, enquanto a vida, maior, nos apresentava o que não queríamos ver: a promessa da arquitetura moderna havia acabado não só pra gente, mas para todo o mundo.
Enquanto arquitetos desenhavam o sonho de Juscelino, Robert Venturi e Denise Scott-Brown pesquisavam, nos Estados Unidos, aquela arquitetura popular, expressão cultural genuína da sociedade de consumo que se consolidava. Seriam aberrações e coisas horríveis, ou só algo diferente do modelo clássico ao ponto de impedir a percepção do que era visto? Robert e Denise destacam, em seu livro Aprendendo com Las Vegas, que "É mais irônico ainda que os arquitetos modernos, capazes de abraçar a arquitetura vernacular remota no espaço e no tempo [como a dos romanos, por exemplo], rejeitem com desprezo o vernacular atual dos Estados Unidos, ou seja, o vernacular dos construtores comerciais".
E sabe por que faz o maior sentido isso acontecer em Serra Negra? Porque no imaginário local mora, lá no fundo, uma saudade imensa de quando a cidade vivia sob as luzes dos cassinos e do glamour que envolveu a jogatina. Até hoje correm por lá teorias sobre salões secretos hospedando jogos e celebridades em algum bunker enterrado ou afastado do centro. Saudade de quando Serra Negra era nossa Las Vegas úmida e fria. Saudade, esse sentimento tão nosso, tão caro aos imigrantes, palavra que designa a mais primária afirmação pós-moderna, nostalgia da vida em ambiente reconhecível e no qual nos reconhecíamos.
Remeteram seus patronos a? Ita?lia contempora?nea, do design, da moda ou indu?stria? Na?o, remeteram a uma Ita?lia idealizada, à grande Roma dos ge?nios do Renascimento, berço da sede papal e capital dispersora da cultura ocidental para o mundo.
A Fontana di Trevi de Serra Negra é, portanto, legítima expressão local, fruto de um inconsciente sagaz escorrendo pelas frestas de nosso aparente controle. Se da rua vemos um forte muro de pedras, por trás dele mora, desprotegida, a porosa fonte que não olha para a paisagem construída, mas para as frondosas árvores do parque, natureza primitiva e de raízes muito profundas.
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