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Iminente perda para o patrimônio popular do Rio de Janeiro

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Por Henrique de Carvalho
Ilustração do autor (Henrique de Carvalho)  

No centro do Rio de Janeiro, próximo ao Palácio Tiradentes, sede da ALERJ (Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro), cuja história remonta ao século XVII, está em andamento a demolição de uma construção provavelmente centenária.

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A página "Rio - Casas e Prédios Antigos" (@riocasaseprediosantigos), criada em 2013 pelo jornalista e pesquisador da arquitetura carioca Rafael Bokor, autor de três belíssimas coletâneas publicadas em livro, informou tratar-se de um sobrado na Rua da Assembleia, 13, no Centro.

As fotos por ele enviadas - estão ao final, depois do texto - deixam clara a riqueza dos elementos que compõe a fachada, típica da época, em estilo eclético e certa influência art nouveau, provavelmente do início do século XX e, ouso arriscar, construída por arquiteto prático treinado pelo Liceu de Artes e Ofícios entre o final do século XIX e início do XX.

Ainda que não se trate de um palácio de Estado, como é a sede da ALERJ, são construções anônimas, como esta, que contam a história da construção da paisagem urbana da qual desfrutamos. É uma prova material incontestável da atmosfera daquele espaço há cem anos e, se cuidada adequadamente, leva-nos a reconstituir cenas e histórias do passado a partir de um objeto arquitetônico deixado ali para nossa imaginação voar.

Diante da visível a perda diária de consistentes conjuntos em nossas cidades, os órgãos competentes poderiam pelo menos mapear e desembaraçar mais rapidamente a documentação de preservação desses bens isolados, remanescentes da voracidade da especulação e da negligência da própria vizinhança que nunca se manifesta. Não é difícil. Toda faculdade de arquitetura possui semestres nos quais alunos levantam e classificam essas construções para seus trabalhos acadêmicos ao longo do curso. Por que não criar uma base de dados a partir disso, sugerindo novas áreas de levantamento às instituições de ensino? Só precisamos de um pouco, só um pouquinho, de dinamismo e interesse, pois os procedimentos de levantamento inicial são simples e rápidos.

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Sabe-se também que não basta decretar tombamento e abandonar a construção à própria sorte, entregue às invasões, ações do tempo e falta de manutenção. Um outro desembaraço importante precisa ser para a apropriação e revitalização desse patrimônio. Atualmente ninguém quer ocupar imóveis tombados pelo medo de não poderem fazer as melhorias necessárias.

Já vivi, pessoalmente, o absurdo de ser impedido de pendurar uma persiana em prédio tombado, num processo que levou mais de três meses, entre idas e vindas aos órgãos responsáveis pela preservação, onde atualizava desenhos e coletava carimbos explicando que não haveria dano ao conjunto arquitetônico. Da mesma maneira, já vi equipes despreparadas arrebentando abóbodas históricas, às escondidas e sem avaliação de arquiteto. Fazem assim porque, se fossem pedir permissão aos órgãos competentes, ela seria negada aos profissionais de projeto - estes, sim, capacitados para realizar a tarefa com critérios coerentes de preservação.

Sobram bons exemplos de diferentes formas para se abordar um edifício histórico, fazendo desta oportunidade um gesto maior de revitalização. Há desde casos de aproveitamento destes imóveis como restaurantes e novos comércios, até a criação de pontos de conexão entre novas empresas e laboratórios de inovação. Contudo, o que acaba afastando iniciativas individuais para a revitalização de nossos centros é a dificuldade de se aprovar qualquer proposta modificativa do imóvel, que tira partido da construção existente acrescentando novas informações construtivas advindas da análise do arquiteto responsável. Neste ponto, somos bastante desrespeitados como profissionais de projeto. Os órgãos de preservação são pouco transparentes, nem sempre objetivos em suas interpretações, atuam pelo permanente engessamento da condição original e nos tratam como se estivéssemos ávidos para burlar a lei e destruir o valor arquitetônico preexistente, quando nosso papel é justamente o contrário. Esse antagonismo compromete a construção de uma colaboração criativa entre as partes. Defendendo a preservação e cientes do valor histórico e artístico, somos capazes de operar com precisão certas modificações que podem ressaltar o valor da história contada pela construção com gestos também carregados de significado.

No projeto de reforma da Pinacoteca de São Paulo, um dos mais belos museus do país, o arquiteto Paulo Mendes da Rocha deslocou o acesso da fachada principal, defronte da Estação da Luz, para a lateral, voltada para o Parque da Luz. Todas as janelas originais foram trocadas por vidros fixos, o pátio central foi coberto por um domo transparente, preservando a luminosidade original e permitindo a instalação de um belíssimo elevador. Cruzando o pátio, pontes ligam a galeria de distribuição à área dos fundos, criando um belvedere interno, de onde se pode observar o pátio por novos ângulos, arejando a circulação com momentos de descompressão espacial que modificam momentaneamente o caráter fechado dos museus. No desenho das pontes, feitas de aço, cuidadosamente encaixadas no velho edifício, o autor retoma o desenho do perfil que prende as rodas dos trens, em alusão à estação vista da antiga entrada, hoje varanda.

É um belíssimo exemplo de que é possível manter vivo um edifício histórico permitindo intervenções compatíveis com a nova proposta de uso. Sua essência foi mantida e enriquecida pelo gesto do profissional de projeto. A situação do centenário sobrado carioca também ensina sobre nossa cultura de preservação, como sociedade. Os cidadãos, em geral, parecem não se importar em ver a anunciada extinção de um exemplo significativo da paisagem do Rio antigo. O corpo investidor não se contenta em equilibrar a melhor lucratividade com a preservação do bem imóvel existente. O arquiteto, oprimido economicamente, perdeu sua voz e, muitas vezes, a coragem. Nesse contexto, parece coerente acelerar a demolição antes que os preservacionistas se manifestem e antes que o órgão governamental de preservação congele as possibilidades.

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Justamente por não estar tombado, estão abertas as possibilidades de intervenção mais livre, desburocratizadas, que dependem apenas da parceria consciente entre arquiteto e financiador para fazer rebrotar uma joia escanteada pelo abandono. Essa é a oportunidade: adquirir o imóvel de reconhecida importância e agregar-lhe novo sopro de vida, acrescido de significado, garantindo o lucro do investimento e deixando um legado vivo para as próximas gerações.

Sem a iniciativa, resta a falsa percepção paralisante colocando, de um lado, a encenação de que o cuidado de preservação está delegado aos órgãos competentes e a coisa é só com eles e, de outro lado, a tábula rasa de que a única regra do investimento imobiliário é explorar o máximo potencial construtivo, sem compromisso cultural, estético e social com a paisagem na qual todos vivemos. Falta-nos esta consciência de sermos todos agentes culturais, construindo coletivamente a paisagem e contribuindo para a vida urbana, sem precisar pedir licença, por contarmos com uma iniciativa qualificada.

Foto recebida do perfil @riocasaseprediosantigos  
Foto recebida do perfil @riocasaseprediosantigos  

 

 

 

 

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