Uma aldeia sem cacique. É esse o lema que motivou a criação da aldeia Kalipety (lê-se calipetâhn), onde vivem cerca de 40 dos quase 2 mil guaranis-mbyá que moram na Terra Indígena Tenondé Porã. O território, que segue uma organização política “onde todo mundo tem voz”, fica a apenas 55 quilômetros do centro de São Paulo e recebe grupos de turistas com o objetivo de “reconectar os juruás (brancos ou não-indígenas) com a natureza” e promover uma imersão cultural na filosofia de vida da tribo, quebrando estereótipos e preconceitos sobre os povos originários do Brasil.
Com uma área de 16 mil hectares, a Tenondé Porã abriga 14 aldeias no seu interior e faz limite com os municípios de São Bernardo do Campo, São Vicente, Mongaguá e o extremo sul de São Paulo, onde há uma entrada próxima ao distrito de Parelheiros. A viagem de carro até lá leva cerca de duas horas, saindo da estação Ana Rosa do metrô, ponto de encontro marcado pela agência Vivalá, que passou a oferecer a expedição este ano.
“Nossa visão é gerar impacto positivo através do turismo sustentável para que as pessoas possam vivenciar a biodiversidade brasileira, que é a maior do mundo”, conta Daniel Cabrera, de 31 anos, cofundador e diretor-executivo da Vivalá, que tem roteiros por unidades de conservação espalhadas em 13 Estados brasileiros.
“Nosso objetivo é proporcionar vivências adequadas ao dia a dia da aldeia, que sejam verdadeiras e eles tenham orgulho de mostrar. Temos que construir com eles e não para eles.”
O passeio até a Tenondé Porã tem duas modalidades: uma focada em “aventuras” para explorar os limites da terra indígena, com todas as suas cachoeiras, rios, plantações e uma trilha de 10 quilômetros, sempre aos domingos; e outro de “imersão cultural” nas tradições, histórias e hábitos da aldeia, sempre aos sábados.
O Estadão fez este último em um dia de sol na capital paulista, acompanhado de um grupo que saiu de diferentes cantos do Estado.
A chegada, por volta das 13h, é o tempo exato para a primeira experiência imersiva: um almoço servido pelos moradores da aldeia com pratos típicos da cultura guarani-mbyá. No dia da nossa visita, o cardápio era arroz com galinha, abobrinha, batata doce e mandioca cozida, com opção de molho de pimenta e melancia para a sobremesa.
À tarde, foram servidas mais frutas, café coado na fogueira e txipá (também conhecida como tipá ou xipá), uma massa frita de farinha e água, com recheio opcional.
Os turistas comem o mesmo que os moradores, sem distinção de assentos, alimento, talheres ou pratos de plástico. Ao fim, todos são igualmente encorajados a lavarem o que foi sujo, apesar de essa parte não ser obrigatória.
Mesmo que tenha elementos similares ao tradicional prato feito que você encontra no centro de São Paulo, o almoço da aldeia tem suas raízes em uma das maiores tradições guaranis: o cultivo agroflorestal de subsistência, onde o plantio e a colheita são motivos de orgulho para o povo da Kalipety e incentivados apenas na medida necessária para que a tribo possa se alimentar.
Por aquela região específica, a retomada dessa cultura, além de ser uma prática sagrada e ancestral, impulsionou também o ressurgimento de espécies raras, como o milho roxo e cerca de outros 50 tipos diferentes de batata doce.
Opy, a casa de rezas
Para os guaranis, tão importante quanto o cultivo agroflorestal é a existência da Opy, uma casa de rezas completamente coberta por palha e utilizada para reuniões e rituais entre os membros da aldeia.
Esses encontros são usados para contar histórias, compartilhar vivências, transmitir saberes ancestrais e, a partir de tudo isso, exercitar uma forma particular de espiritualidade através da oralidade.
É na casa de rezas, com chão de terra batida e iluminação apoiada apenas por uma fogueira, que o grupo de turistas participa depois do almoço de uma roda de conversa.
O momento é guiado por Alcides Guarani, uma das lideranças da aldeia. Por mais de uma hora, ele explica como as famílias se organizam política e economicamente, quais as filosofias e visões de mundo do seu povo, como lidam com o uso da língua portuguesa, a chegada da energia elétrica e como associam seus rituais tradicionais de cura à medicina tradicional.
Segundo Alcides, todos os moradores têm os mesmos direitos e deveres, mas a rotina é adaptável à vontade da natureza e de cada um.
“Se um de nós se sente cansado e não está com vontade de trabalhar naquele dia, ele pode descansar na rede e fazer a tarefa depois”, conta Alcides, para a surpresa e ligeira inveja dos presentes.
A tradição da oralidade, ele explica, também permanece forte. Por mais que alguns membros da tribo falem português, o guarani é ensinado para todos e incentivado de uma geração à outra, principalmente entre os mais jovens. “Educação não é só na escola.”
Nascida no Mato Grosso do Sul e moradora de São Paulo, a internacionalista Jordana Nascimento, de 24 anos, diz que sempre teve curiosidade de conhecer alguma aldeia paulista e se interessou especialmente pela Tenondé Porã pela sua proximidade da capital.
“A gente sempre tem aquela dúvida de será que é sustentável mesmo? Será que respeita a cultura delas mesmo e não tem nenhuma exploração?”, diz a jovem.
O resultado, ela afirma, superou suas expectativas, com o ponto alto sendo a roda de conversa na Opy, algo que, segundo ela, “mudou a forma de pensar em relação aos indígenas”. “Nunca tinha parado para ouvir o que eles têm a dizer”, conta Jordana. “E fomos muito bem recebidos. Não era nada comercial para enganar turista, sabe? Foi tudo muito real, não tinha nada maquiado. Gostei bastante de ver a vida deles como ela é.”
Imersão real
O conceito de fazer uma “expedição na aldeia” pode parecer historicamente insensível, como os safáris que são oferecidos pelas favelas do Rio de Janeiro e colocam pessoas na situação de animais a serem observados. Mas da mesma forma que a periferia carioca tem uma versão real e outra higienizada “para gringo ver”, visitar uma terra indígena também pode proporcionar dois tipos de experiência, e essa da Tenondé Porã é o mais perto que você vai chegar de saber como é a rotina da tribo sem ter nascido lá.
“Vivemos em um País ainda com muita diversidade indígena - muitas línguas, culturas e modos de pensar o mundo. Mas muitas (características) são iguais, como a relação que temos com a natureza, a conexão de respeito e de sabermos, mesmo sem faculdade, que precisamos respeitá-la porque é ela quem nos mantém nesse planeta. Isso é igual para todos os povos”, explica Jerá Guarani, de 43 anos, uma das lideranças que ajudou a fundar a aldeia Kalipety. “Ainda assim, o nosso país é um dos mais preconceituosos com indígenas de toda a América.”
Segundo Jerá, as visitas à Kalipety têm como objetivo apresentar as vivências reais dos guaranis-mbyá e educar os turistas, na esperança de que essa relação sensibilize e desperte o mesmo interesse neles. “Se a educação nacional não vai ensinar, a gente por nós mesmos temos que fazer isso. Então, aderimos a um trabalho de turismo mais saudável”, explica. “Não é receber juruá para ficar pintado, cantar e dançar para eles, mas fazermos algumas coisas juntos.”
Para Cabrera, a experiência do etnoturismo só funciona se o visitante estiver aberto à imersão e, quanto mais tempo passar no local, melhor - isso é inclusive algo que ele aponta como um dos muitos diferenciais entre as excursões da Vivalá e os safáris na favela.
“A ideia é que a experiência seja realmente verdadeira. A troca, a consciência e a profundidade levam tempo. Se você passar uma hora em cima de uma picape e não conversar com ninguém, a impressão vai ser diferente.”
De fato, passar uma tarde na Tenondé Porã é uma experiência conflitante, porque você é convidado a mergulhar nas contradições do que significa ser um indígena no Brasil do século XXI. Adolescentes com camiseta de estampa do TikTok seguram o celular em uma mão e os cachimbos de tabaco na outra. Na entrada da aldeia, eles andam e brincam lado a lado com crianças descalças tomando banho de rio e adultos chegando de carro. Mas Jerá tem uma explicação para isso.
“Tem gente que acha ruim a gente ter roupa, ter carro e acha que não somos mais indígenas por causa disso. Mas acha isso sem considerar que juruá também mudou muita coisa e tem outra forma de viver hoje que não é igual à de 500 anos atrás”, aponta. “A gente pode usar coisas de vocês, porque o que nos faz indígenas é o nosso modo de ser e querer estar aqui.”
Reflorestamento
A terceira atividade da excursão é uma trilha leve pelas imediações da aldeia. Guiado por Gino Guarani (também conhecido como Wera Tete), o passeio atravessa bosques fechados, passa por nascentes, campos de futebol, casas recém-construídas e plantações. Ao longo de todo o trajeto, ele vai contando memórias e anedotas de quando era menino e brincava por aquelas terras.
Mais do que memória afetiva, Gino também guarda um conhecimento ancestral sobre as propriedades e particularidades de cada flor, planta e árvore que encontra no caminho. O chá dessa é usado como anticoncepcional se tomado sempre na fase certa da lua, aquela outra tem centenas de anos e é uma das mais antigas da região, aqui você encontra tipos diferentes de orquídeas nascendo e por aí vai. Cada canto da floresta tem uma importância diferente e ele parece conhecer todos.
O maior orgulho de Gino e dos guaranis-mbyá que vivem ali, entretanto, parece ser a forma como eles conseguiram recuperar uma parte do solo que estava infértil pela quantidade de eucaliptos plantados. “A água não penetrava aqui, ficava empossado”, diz ele, apontando para um trecho da estrada de acesso à aldeia.
Um estudo publicado no início deste ano na revista científica PNAS Nexus analisou dados do MapBiomas sobre a cobertura florestal do Brasil entre 1985 e 2019. Segundo o levantamento, os territórios que foram declarados como terras indígenas tiveram uma redução anual de 0,77% no desmatamento. “A evidência coletada sugere que a concessão da posse da terra aos povos indígenas pode melhorar duplamente os meios de subsistência e conservar as florestas”, avaliam os autores, citando especificamente a Mata Atlântica como um dos biomas beneficiados por isso.
Na Tenondé Porã, a luta pela demarcação começou ainda na década de 1980, quando a região metropolitana de São Paulo começou a passar pelo mesmo crescimento acelerado que levou à poluição do Rio Tietê. Ela finalmente foi homologada pelo governo federal em 2016 e, agora, os guaranis-mbyá tentam reverter o prejuízo sofrido nos anos anteriores.
“Os juruá precisam sentir que esse território é deles também e entender por que a gente gosta de ficar e viver assim. Ainda que queiram viver na cidade com todas as facilidades que têm, eles precisam saber que tudo o que tem lá vem da natureza”, diz Jerá.
“Aqui é o restinho da Mata Atlântica e precisa ser protegido. Ao invés de pensar que os guaranis são preguiçosos e selvagens, se eles não viverem um momento de proteção dessa área verde, dos recursos naturais, não vão dar a mínima quando (o território) estiver em perigo.”
Artesanato e a dança do guerreiro
Ao fim da trilha, o grupo da expedição para na Casa de Artesanato, onde estão expostas e à venda obras de arte feitas pelos próprios guaranis da Kalipety. Quadros que retratam os animais e as florestas da região, colares e brincos de penas e sementes, esculturas de capivaras e onças com tamanhos que cabem na palma da mão e uma série de artefatos, vasos e enfeites.
A última atividade da excursão é liderada pelo coral mirim dos guaranis-mbyá, que apresentam músicas tradicionais, cada uma com um significado diferente. O número faz parte da Dança dos Xondaros, que também pode ser interpretada como um ritual de luta para proteger a terra sagrada e os guerreiros (xondaros).
No dia em que a reportagem participou da excursão, a dança dos Xondaros foi apresentada já por volta das 19h, altura em que o sol já tinha se posto e a aldeia estava completamente no escuro, uma vez que a chuva da véspera tinha cortado a energia da região. A apresentação terminou com crianças e adultos, indígenas e juruás, cantando e dançando de mãos dadas sob a luz de velas e uma fogueira.
“Queremos fazer com que os juruá também possam se conectar com a natureza, porque eles também já tiveram essa conexão”, avalia Jerá, que planejou essa atividade para o encerramento exatamente pela forma como ela une os dois universos aparentemente distintos dos visitantes e dos indígenas. “Só o juruá ‘do centro’ que perdeu isso, mas ainda é possível resgatar. Se conseguimos cantar e dançar juntos, é possível isso também.”
Serviço
As excursões da Vivalá até a Tenondé Porã são feitas sempre no primeiro e no terceiro fins de semana do mês, com preços a partir de R$ 285 e podem ser feitas através do site: http://www.vivala.com.br
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