Juiz vê risco de racismo e barra câmeras de reconhecimento facial em SP

Magistrado aponta que programa Smart Sampa tem ‘riscos iminentes’ de violações a um amplo acervo de direitos fundamentais; Prefeitura diz que não foi notificada e que sistema envolveria agentes treinados

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Foto do author Priscila Mengue

Uma das principais apostas do prefeito Ricardo Nunes (MDB) para tentar reduzir os casos de roubos e furtos na cidade de São Paulo, o edital do programa Smart Sampa foi suspenso provisoriamente pela Justiça nesta quinta-feira, 18. A iniciativa envolve a instalação de 20 mil novas câmeras de vigilância na capital paulista, das quais mil habilitadas com um sistema de reconhecimento facial. A proposta envolve uma tecnologia criticada por associações especializadas e até banida em algumas cidades fora do País, principalmente pela coleta e armazenamento de dados pessoais e casos de falsos positivos envolvendo pessoas negras.

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Na decisão, o juiz Luis Manuel Fonseca Pires cita estudos que identificaram o potencial da tecnologia de reconhecimento facial em apresentar “riscos concretos de reprodução do racismo estrutural”, por “reproduzir padrões de discriminação incorporados na cultura e na dinâmica institucional das sociedades sem permitir qualquer revisão desses graves comportamentos”. Além disso, fala em “riscos iminentes” de violações de um amplo acervo de direitos fundamentais amparados na Constituição. A ação foi movida pela vereadora Silvia da Bancada Feminista (PSOL).

“O sistema de monitoramento por reconhecimento facial na estrutura de políticas de segurança pública encontra fortes dilemas jurídicos além de relevantes debates éticos com repercussões no sistema jurídico”, afirmou na decisão. “O racismo estrutural incorporado e reproduzido em larga escala pela Administração Pública por meio do monitoramento de reconhecimento facial é uma realidade”, destaca.

O pregão para contratar a empresa responsável pela instalação e operação das câmeras estava marcado para a próxima terça-feira, 23. No ano passado, após críticas, a Prefeitura suspendeu temporariamente a tramitação do programa. A proposta também chegou a ser barrada pelo Tribunal de Contas do Município (TCM), mas foi retomado neste mês, com algumas algumas alterações, como a retirada dos trechos que envolviam a identificação de cor de pele e de “vadiagem”. O custo anual estimado de todo o programa é de cerca de R$ 70 milhões anuais.

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Em nota, a gestão municipal respondeu que a Secretaria Municipal de Segurança Urbana não foi oficialmente notificada da liminar e que está acompanhando o caso, juntamente com a Procuradoria Geral do Município. “Assim que for notificada, a Prefeitura irá adotar todas as medidas judiciais cabíveis para a reforma da decisão, a fim de garantir a realização do pregão eletrônico do programa Smart Sampa, previsto para a próxima terça-feira (23)”, completou.

Quando o edital foi retomado, o Município também destacou que, diferentemente de outras cidades, adotaria um protocolo mais rígido de aplicação de reconhecimento facial. Dessa forma, apenas detecções com 90% de paridade seriam consideradas, enquanto as demais seriam automaticamente descartadas. Além disso, há a promessa de que todos os alertas fossem analisados por um agente treinado e capacitado.

Na decisão, o juiz cita uma pesquisa da Rede de Observatórios da Segurança que identificou que 90% das prisões feitas no Brasil por meio dessa tecnologia em 2019 foram de pessoas negras, parte delas inocentes, e um caso específico no Ceará, em que o ator norte-americano Michael B. Jordan (da franquia de filmes Creed) foi apontado entre os suspeitos de participação em uma chacina em 2021.

Além disso, o magistrado menciona uma declaração do jurista e hoje ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida: “As instituições são apenas a materialização de uma estrutura social ou de um modo de socialização que tem o racismo como um dos seus componentes orgânicos. Dito de modo mais direto: as instituições são racistas porque a sociedade é racista.”

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Modelo de tecnologia de reconhecimento facial aplicada em Pequim, na China Foto: Damir Sagolj/Reuters

Tecnologia de reconhecimento facial dá falsa impressão de neutralidade, diz juiz

Outro ponto abordado na decisão é de que a tecnologia de reconhecimento facial dá “absolutamente” falsas impressões de neutralidade e sensação de segurança para apontar um possível autor de um crime. “O ônus da prova é transferido para o ‘suspeito’”, aponta o magistrado.

“O peso contra quem é apontado como suspeito é avassalador: a tecnologia de informação alia-se à dogmática do Direito Administrativo para produzir quase uma ‘condenação em princípio’ a ser removida pelo acusado. Inverte-se o princípio jurídico da presunção de inocência, direito fundamental (...) fortemente abalado quando uma suspeita inicial de crime pode ancorar-se num sistema de tecnologia que traz consigo as (falsas) impressões de neutralidade, segurança e eficiência”, completa.

O juiz também argumenta que o sistema de reconhecimento facial ameaça “gravemente” o tratamento de dados pessoais da população, que poderão ser captados, processados e armazenados em ampla escala sem qualquer consulta ao cidadão cuja imagem foi capturada. Para ele, o edital implicaria em uma violação de “relevantes fundamentos da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), como a “inviolabilidade da intimidade, honra e imagem” e a “proteção dos direitos humanos e dignidade e exercício da cidadania”, dentre outros.

Na decisão, salienta que não se trata de um oposição ao uso de tecnologia na segurança pública, mas a “necessidade de que haja ampla regulamentação e estudos prévios à sua incorporação”, a fim de evitar o comprometimento de “vidas de pessoas que se encontram entre as mais vulneráveis na sociedade por sofrer em constantes discriminações”.

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Pires destaca que a regulação precisa preceder a aquisição de equipamentos de utilizam a biometria facial pelo poder público. “Não há como adquirir o sistema de ‘videomonitoramento’ sem se saber como os dados podem ser processados (Lei Geral de Proteção de Dados) e como devem ser ponderados em proteção aos direitos fundamentais. A prévia definição legal em cumprimento ao princípio da legalidade é condição à definição de qual produto e quais serviços precisam ser contratados.”

O montante de 20 mil câmeras do Smart Sampa é programado para ser alcançado até 2024, às vésperas das eleições municipais, nas quais Nunes deve buscar a reeleição. Do total, mil dos equipamentos previstos envolvem a tecnologia de reconhecimento facial. A instalação está no Programa de Metas da Prefeitura, que cumpriu apenas 13 das então 77 metas até o ano passado.

Os planos de Nunes são de que a central de monitoramento do Smart Sampa seja provisoriamente instalada na sede da Prefeitura, no Viaduto do Chá. Posteriormente, a ideia é transferir o espaço para o Palácio dos Correios, no Vale do Anhangabaú, cuja proposta de concessão por 100 anos está em negociação com a União. O programa prevê a operação a partir de uma série de bancos de dados, inclusive de órgãos de segurança estaduais e federais.

No caso do reconhecimento facial, o edital aponta que as imagens de rostos possam ser arquivadas, com data, horário e endereço, inclusive com a detecção de faces parcialmente cobertas (como por óculos e barba, por exemplo). Outra funcionalidade é o rastreamento de pessoas consideradas suspeitas, com o monitoramento de movimentos e atividades, a partir de diferentes tipos de características, como cor da roupa e forma física.

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Após as críticas, o edital passou a incluir dois novos anexos, com uma política de segurança da informação e um relatório sobre o impacto de proteção de dados. Segundo a Prefeitura, a intenção é “eliminar dúvidas existentes, suprimir possíveis riscos, garantir a segurança dos dados e apresentar diretrizes éticas para assegurar equidade e imparcialidade, evitando qualquer possível discriminação, preconceito ou violação dos direitos individuais no uso da tecnologia”.

Introduzida no País especialmente para a Copa do Mundo, a Olimpíada e outros eventos de grande porte há quase uma década, o reconhecimento facial está em uma segunda onda de difusão nos últimos três anos. Incentivos do governo Jair Bolsonaro (PL), o fortalecimento da segurança pública na agenda política, esforços de empresas do setor e até a pandemia da covid-19 estão entre os motivos apontados por especialistas ouvidos pelo Estadão.

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