Justiça derruba liminar e libera a remoção de barracas de pessoas em situação de rua em SP

Em fevereiro, o deputado Guilherme Boulos e o padre Júlio Lancellotti conseguiram suspender os trabalhos de despejo da prefeitura por meio de ação popular

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Por Caio Possati
Atualização:

A Justiça derrubou a liminar que proibia a Prefeitura de São Paulo de remover barracas de pessoas em situação de rua nas áreas públicas da capital. A decisão foi assinada pelo desembargador Ribeiro de Paula na última sexta-feira, 31. A medida permite que o poder público retome as ações de retirada dos objetos que servem de moradia para quem vive nas ruas da cidade.

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Os trabalhos de despejo da Prefeitura estavam proibidos desde fevereiro por ordem da juíza Juliana Molina, da 7ª Vara da Fazenda Pública. A magistrada acatou uma ação popular movida pelo deputado Guilherme Boulos (PSOL-SP) e pelo padre Julio Lancellotti e determinou a suspensão da retirada das barracas.

Com o despacho do desembargador de Paula, a gestão municipal informou na parte da manhã deste sábado que a Subprefeitura Sé vai reunir as equipes para dar início às ações pelo centro da cidade. Boulos e padre Lancellotti afirmaram que vão recorrer da decisão.

Justiça permite que Prefeitura faça a remoção de barracas e demais objetos de pessoas em situação de rua de São Paulo. Foto: TABA BENEDICTO / ESTADÃO (Fevereiro/2023)

A Prefeitura justifica a remoção das barracas com base em um decreto de 2020, que não permite ocupações permanentes em locais públicos que atrapalhem a livre circulação de pedestres e veículos. Objetos como camas e sofás também devem ser removidos, segundo o município, por não serem considerados de “uso pessoal”.

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Na decisão, o desembargador Ribeiro de Paula contesta a petição movida por Boulos e pelo padre Lancellotti. O magistrado afirma que a ação popular não pode impedir o município de cumprir com o que está determinado em decreto e diz que os autores da ação não indicam omissão ou ilegalidades da Prefeitura nos cuidados com a população em situação de rua.

De Paula afirma reconhecer “a gravíssima a situação de hipervulnerabilidade” daqueles que vivem e dormem nas vias da capital e de outras cidades do Estado, e que a integridade física e moral dessa população deve ser preservada. Porém, defende que “o exercício do direito material deve ser postulado conforme regras processuais apropriadas”.

O prefeito Ricardo Nunes (MDB), por meio de nota, celebrou a decisão do desembargador. “É muito importante essa decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que cassa a liminar onde o seu autor defende as barracas nas ruas e nas calçadas de São Paulo”, afirma. “Rua não é endereço, barraca não é lar. Não é digno que as pessoas fiquem nas ruas expostas ao sol, à chuva, sem um banheiro, sem um chuveiro, uma torneira, sem um vaso.”

O prefeito disse também que a decisão também vai ao encontro do direito de ir e vir das pessoas porque desobstruiria as ruas e avenidas. “Não é razoável que alguém que more aqui, que venha nos visitar ou que trabalhe na cidade de São Paulo tenha tolhido o seu direito de transitar pelas calçadas por conta de barracas nas ruas”, afirma.

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Boulos e Lancellotti vão recorrer da decisão

O deputado Guilherme Boulos e o padre Julio Lancellotti dizem que vão recorrer da decisão do desembargador de Paula. “É absurdo que a Prefeitura considere que a população sem teto viva nas ruas por vontade própria, e não por estarem abandonadas pelo poder público”, disse o deputado.

“Prova disso é que a conta da própria Prefeitura não fecha: há cerca de 20 mil vagas em abrigos para uma população de mais de 48 mil pessoas na capital paulista, segundo dados da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais)”, afirmou o parlamentar do PSOL. “A questão dos sem-teto precisa ser resolvida de maneira estrutural, e não com o uso de violência para tirar o pouco que sobrou de quem já não tem quase nada”.

“É uma hipocrisia a Prefeitura dizer que quer que as pessoas tenham moradia digna. Onde está o lugar digno que o poder público oferece, em quantidade para todos?”, questionou o padre Lancellotti ao Estadão. “As barracas são um sinônimo da ausência de respostas eficazes do poder público. Não há lugar para as pessoas ficarem. A Prefeitura tem bilhões em caixa, e o que eles fazem para a dignidade ser alcançada?”.

O padre alega que há falhas nas atuais políticas de habitação do município. Uma delas, segundo ele, se refere aos critérios que limitam a inclusão das pessoas na Vila Reencontro, residências feitas de contêineres que são destinadas aos que vivem em situação de vulnerabilidade.

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Para conseguir uma vaga no programa é preciso estar, no máximo, há dois anos na rua, ter cadastro na Prefeitura e estar nos hotéis sociais, explica Lancellotti. “Quem mora nas barracas não consegue uma vaga”, diz o padre.

Aumento da população de rua

Nos últimos anos, as barracas se tornaram um símbolo do aumento da população de rua em São Paulo, que chegou a crescer em 31% nos últimos dois anos, de acordo com dados da própria Prefeitura.

A gestão de Ricardo Nunes até afirma que São Paulo atualmente tem 21 mil vagas para acolher os mais vulneráveis, mas o último censo feito pela cidade apontou que 31.884 pessoas viviam nas calçadas, praças ou sob viadutos da capital. A UFMG, por meio do seu Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua, calculou que esse número pode chegar a mais de 48 mil pessoas.

Este crescimento está diretamente relacionado à pandemia da covid-19, que também contribuiu para alterar o perfil de quem se encontra em situação de rua. Em função dos efeitos negativos da crise sanitária na economia do País - e no bolso das pessoas - famílias que perderam emprego e que não conseguiam mais pagar o aluguel passaram a condição de desabrigadas.

“Quando é para impedir uma vida digna para eles (população em situação de rua), é algo fácil na cidade de São Paulo, principalmente quando vem da Prefeitura”, afirma o sociólogo Paulo Escobar, coordenador do Observatório da de Aporofobia Dom Pedro Casaldáliga, também crítico da decisão da justiça que derrubou a liminar.

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“(Com a decisão do desembargador) vai ser legalizada a repressão, a opressão, a covardia e a violência contra as pessoas em situação de rua”, disse ele ao Estadão.

Liminar desrespeitada

Padre Lancellotti e o sociólogo afirmam que o poder público nunca deixou de praticar o despejo mesmo com a liminar. Ele citam casos na Mooca, zona leste da capital, e também na Luz, centro da cidade. Mas se recordam de outros pontos em São Paulo onde a prefeitura, supostamente, também desobedeceu a ordem judicial.

“Com a derrubada da liminar, é um sinal verde para a truculência. A gente espera que essa violência, que já é diária, sistemática e estrutural, vá aumentar”, disse Lancellotti. Na visão de Paulo Escobar, a Prefeitura não ofereceu uma alternativa que garanta dignidade e autonomia, “então o único lugar em que a população de rua tem para morar, se cobrir e se proteger de uma cidade tão aporofóbica como São Paulo é na barraca”.

A Prefeitura de São Paulo afirma que “possui a maior rede socioassistencial da América Latina” e que atualmente possui “quase 21 mil vagas de acolhimento para população em situação de rua”, ofertados em serviços como Centros de Acolhida para População em Situação de Rua, Repúblicas para Adultos e Núcleos de Convivência para Adultos em Situação de Rua.

Além disso, o município informa também que Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social atua com 27 equipes de Serviço Especializado de Abordagem Social (Seas) que percorrem a cidade abordando pessoas em situação de rua, com foco em “promover o retorno familiar e comunitário, além do acesso à rede de serviços socioassistenciais e às demais políticas públicas” dessa população.

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Sobre as alegações de que o município teria desrespeitado a liminar durante a sua vigência, a prefeitura não respondeu até a publicação do texto.

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