A Justiça de São Paulo reconsiderou nesta terça-feira, 28, a liminar que suspendia todo o mapa da Lei de Zoneamento da capital paulista, com impacto potencial em mais de 26,5 mil processos de alvará e certificação em tramitação. A nova decisão limitou os efeitos da deliberação para 39 lotes de Alto de Pinheiros, na zona oeste, onde a lei de 2024 liberava a construção de prédios e facilitava erguer um megatemplo onde antes era restrito a imóveis baixos.
A gestão Ricardo Nunes (MDB) havia requerido na segunda-feira, 27, a revisão da decisão, com o argumento de que a suspensão do mapa de zoneamento integralmente teria “gravíssimas repercussões”. Apontou, então, que impactaria em pedidos de novas construções, reformas, regularizações, licenças de funcionamento de atividades, dentre outros, para qualquer um dos mais 3,7 milhões de lotes da cidade.
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“A problemática fica clara quando são comparados os números totais de processos autuados na cidade com os locais que são objeto da ação”, destacou a Procuradoria do Município. Na sequência, apresentou que 26,5 mil pedidos foram protocolados na cidade desde 19 de janeiro do ano passado, quando as mudanças no zoneamento entraram em vigor. Nesse período, apenas seis envolviam a contestada alteração em Alto de Pinheiros.
O argumento foi de que a decisão extrapola “as áreas que fundamentaram a interposição da ação”. Com a liminar anterior, a Prefeitura chegou a suspender os processos abertos desde janeiro de 2024. À Justiça, apontou que não havia “como o sistema urbanístico municipal prosseguir diante de tantos efeitos práticos indefinidos para os órgãos de aprovação e planejamento municipal à luz dos pedidos de análise já em andamento, gerando inegável insegurança jurídica”.
Um trecho da petição exemplifica as incertezas sobre a avaliação desses casos: “Qual tratamento seria aplicado aos documentos de autorização edilícia já emitidos? Ou mesmo licenças de funcionamento das Subprefeituras que já foram emitidas e seguem o zoneamento vigente? E qual seria o tratamento para os processos em andamento? Como seriam tratados os processos já aprovados de desmembramento de lotes? Os pagamento de outorgas onerosas (taxa cobrada da construção civil)?”.
Na nova decisão, o desembargador Nuevo Campos reconheceu que a liminar anterior impactava toda a cidade, não apenas no objeto inicial da ação. “Ocorre que a abrangência do art. 8º da Lei 18.177,de 25 de julho de 2024, referido especificamente na fundamentação do aditamento, não se refere apenas à área impugnada na inicial e seu aditamento, pois esta norma se refere a todo o mapa de zoneamento do município de São Paulo”, apontou.
O que a decisão continua a travar?
A Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) movida pelo Ministério Público de São Paulo (MP-SP) defende a suspensão de alterações específicas em quadras de Alto de Pinheiros. Essas mudanças permitiam prédios de até 48 metros, o que facilitava a construção de um megatemplo onde antes era restrito a imóveis baixos, como revelou o Estadão.
“Favoreceria interesses específicos de instituição religiosa, em detrimento do interesse público, da comunidade local, e das boas práticas em planejamento urbano”, apontou a Promotoria. À reportagem, a Prefeitura, a Câmara e a Igreja Presbiteriana de Pinheiros negaram irregularidades.
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O pedido foi acatado em setembro, com a suspensão de trecho específico da revisão do zoneamento, lei que é de janeiro de 2024. Em julho, contudo, a lei da “revisão da revisão” foi aprovada, com um novo mapa de toda a capital. Isso motivou a liminar da semana passada, que suspendia todo o mapa de zoneamento.
O mapa do zoneamento delimita regras construtivas, de barulho e de uso (residencial, não residencial e suas variações) em toda a cidade. É uma das mais importantes leis municipais, decisiva para abrir pedidos de licenciamentos, seja para novos empreendimentos ou para o aval para certos tipos de estabelecimentos não residenciais, dentre outros.
No ano passado, ao Estadão, a gestão Nunes disse que a mudança “buscou compatibilizar urbanisticamente o lote ao seu entorno, que apresenta características de zonas de centralidade”. Já a Câmara afirmou não haver “impedimento técnico e legal” para a alteração e ter feito debate “amplo e transparente” das normas.
Também em nota no ano passado, a Igreja Presbiteriana de Pinheiros (IPP) afirmou que “não recebeu qualquer favorecimento e, sim, teve acolhido um pedido”, o que seria “legalmente previsto no processo democrático que rege o ordenamento jurídico brasileiro”. E salientou ter apresentado “argumentos técnicos” e que buscou “observadas as regras legais, melhorar o aproveitamento da sua área”.
Por que a mudança em Alto de Pinheiros é contestada?
A ação foi aberta depois do MP-SP ser procurado pela Associação de Amigos de Alto dos Pinheiros (SAAP), contrária às alterações. Após a mudança no zoneamento, algumas casas vizinhas ao templo foram demolidas pela Igreja em junho.
A mudança está no texto substitutivo da revisão da Lei de Zoneamento, apresentado dias antes da votação, em dezembro de 2023. Com o novo trecho, cerca de 10 quadras de Alto de Pinheiros perderam a restrição de construção exclusivamente de imóveis baixos, classificadas até então como Zona Corredor (ZCOR) — espécie de “cinturão comercial” de baixa estatura no entorno de Zonas Exclusivamente Residenciais (ZER), como é o caso de grande parte do distrito.
No geral, as alterações de zoneamento abrangem especialmente trechos da Avenida Doutora Ruth Cardoso e do entorno da Praça Arcipreste Anselmo de Oli, nas imediações da Ponte Cidade Universitária e da Marginal Pinheiros. Onde antes poderiam ser construídos imóveis de até cerca de 10 metros, a mudança passou a liberar até 48 metros de altura.
A alteração também permite novos tipos de atividades não residenciais. Além disso, facilita a junção de lotes para a formação de um maior terreno, possibilitando empreendimentos de porte superior.
Em 28 de janeiro de 2024, nove dias após a sanção, o prefeito, três então secretários municipais (Marcos Gadelho, de Urbanismo e Licenciamento; Edson Aparecido, de Governo; e Carlos Bezerra Júnior, de Assistência Social) e mais autoridades participaram de culto na sede da Igreja, quando se agradeceu pela mudança no zoneamento. Nunes também discursou. Veja trechos do culto com autoridades abaixo:
A visita estava na agenda oficial do prefeito, divulgada diariamente. Procurada à época, a Prefeitura não comentou a presença de Nunes e dos secretários no culto. Já a Igreja havia argumentado que “o projeto teve a aprovação de vereadores das alas governistas e de oposição e foi aprovado com ampla maioria no plenário, motivo pelo qual agradeceu os membros do Executivo e do Legislativo”.
A Igreja pleiteava mudanças na vizinhança há anos. Em nota ao Estadão à época da reportagem, apontou que discutia a ampliação do templo desde 2018 e que, depois, “passou a trabalhar mediante interação junto ao processamento dos projetos de revisão do Plano Diretor e, posteriormente, da Lei de Zoneamento”.
Com a revisão do zoneamento na Câmara, em 2023, o vereador Isac Félix apresentou a emenda que alterava o entorno do templo. Ele havia justificado, na emenda, que a área teria características de uso, ocupação, sistema viário e relevo que possibilitaram a nova classificação, de Zona de Centralidade (ZC), um “centrinho de bairro”.
Na plataforma de tramitação da Câmara, o documento da emenda traz dois arquivos anexos, ambos com “Igreja Presbiteriana” no título, nos quais são mostradas as alterações de zoneamento sugeridas. A mudança foi incorporada ao projeto de lei da revisão, aprovado por 46 dos 55 vereadores. Procurado à época, Félix não respondeu ao Estadão.
Veja abaixo, imagens do projeto do megatemplo de Alto de Pinheiros:
Também procurado pelo Estadão, à época, o relator da revisão do zoneamento, o então vereador e hoje secretário municipal Rodrigo Goulart (PSD), respondeu que a proposta foi incorporada após ser apresentada por Félix e passar por avaliação técnica. Destacou não ter relação com a igreja e argumentou que a apresentação de emendas e mudanças no dia da votação são prerrogativa de todos os vereadores.
Além disso, mencionou outras liminares que tentaram barrar a revisão do zoneamento como um todo (a ação atual envolve só o trecho sobre Alto de Pinheiros), as quais foram depois consideradas improcedentes (as decisões avaliaram, porém, a tramitação na Câmara, não o conteúdo das mudanças). O nome de Goulart não foi citado no culto em que os reverendos agradeceram às autoridades pela mudança.
Como é o projeto do megatemplo da Igreja Presbiteriana de Pinheiros?
A unidade de Pinheiros é a mais rica entre as ligadas à Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), segundo balanço de 2023. No aniversário de 117 anos da Igreja, em julho de 2023, o reverendo Arival Dias Casimiro apresentou o projeto de expansão, com megatemplo, colégio particular, capela 24 horas e praça de alimentação.
“Nunca uma igreja cristã, evangélica, esteve na marginal. A marginal tem tudo, mas não uma igreja pregando a Bíblia, ensinando a palavra de Deus. E vai ter”, disse. Após ser procurada pelo Estadão, a Igreja retirou do ar grande parte dos cultos transmitidos no último ano, antes disponíveis no YouTube e Facebook.
Segundo apresentado no culto de julho do ano passado, o megatemplo ocuparia terreno de cerca de 5 mil m², com 14 mil m² de área construída ao fim da obra. A previsão é de cerca de 2,6 mil assentos na área de culto e 253 vagas de estacionamento, no subsolo.
Em culto em 2022, o pastor Arival afirmou que a Igreja arrecadava de R$ 2 milhões a R$ 2,5 milhões por mês e explicou o plano de expansão. “Estamos pensando estrategicamente. Compramos do outro lado, ali, e estamos comprando mais duas (casas). Estamos fechando um quarteirão, numa cabeça de ponte (da Cidade Universitária)”, disse. Hoje, o espaço de culto não comporta todos os frequentadores em alguns dias da semana
Banners e envelopes divulgavam pedidos de doações para o novo templo. O plano da Igreja à época era de que, temporariamente, fosse instalada uma tenda para 1,5 mil pessoas onde as casas foram recentemente demolidas.
Por que o Ministério Público considera a mudança inconstitucional?
Na petição, o procurador-geral de Justiça, Paulo Sérgio de Oliveira e Costa, aponta seis aspectos principais que caracterizaram a inconstitucionalidade da mudança. São eles:
- “Ausência de participação popular em relação às alterações, que foram aprovadas no mesmo dia de sua apresentação”;
- “Ofensa ao princípio de moralidade e impessoalidade, por conta de desvio de finalidade da emenda parlamentar apresentada, que se afastou do interesse público em benefício particular”;
- “Ausência de planejamento técnico na produção da lei que altera o ordenamento do uso e ocupação do solo, promovendo alterações tópicas incompatíveis com o planejamento urbano integral”;
- “Indevido fracionamento, permitindo soluções tópicas isoladas e pontuais, desvinculadas do planejamento urbano integral e sua conformidade com as normas urbanísticas, vulnerando integralidade do instrumento básico da política desenvolvimento do Município”;
- “Violação do ato jurídico perfeito e da segurança jurídica, inobservância das restrições urbanísticas consistente na convencionais e da motivação”;
- “Violação aos artigos 111, 144, 180, I, II e V, 181 e 191 da Constituição Estadual (dentre eles, o trecho que diz que os poderes de Estado devem obedecer a “princípios da impessoalidade, moralidade, legalidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência”).
O procurador aponta que a alteração ocorreu “sem lastro técnico” e “em ofensa aos princípios de impessoalidade e moralidade”. Também salienta que a emenda que sugeriu a mudança trazia “Igreja Presbiteriana de Pinheiros” no título do arquivo, o que, dentro outros motivos, deixaria “claro que a emenda parlamentar atendeu a interesse particular”.
“A lei há de ser impessoal e pautada pela ética, não podendo buscar a satisfação de interesses outros além do interesse público primário, não servindo, portanto, para que uma alteração abrupta e de inopino de regime jurídico tenha como escopo exclusivo interesses particulares, sob pena de desvio de finalidade”, diz. O procurador cita ainda “notório desvio de finalidade, visando privilegiar, pontualmente, determinadas pessoas em detrimento das aspirações coletivas e regras constitucionais”.
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