Liberdade terá espaço para memória negra de São Paulo; saiba como vai ser

Memorial reunirá nove ossadas encontradas há quatro anos no antigo Cemitério dos Aflitos; veja o que foi descoberto sobre os achados arqueológicos

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Foto do author Priscila Mengue

Após quatro anos da descoberta arqueológica de nove ossadas em um dos primeiros cemitérios da cidade de São Paulo, uma licitação da Prefeitura selecionará três projetos para embasar a obra do Memorial dos Aflitos, na Liberdade. O espaço na região central será construído junto à Capela de Nossa Senhora dos Aflitos, a fim de marcar a história negra paulistana e do bairro e homenagear os sepultados naquele local.

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Segundo a gestão Ricardo Nunes (MDB), a expectativa é que as obras sejam iniciadas após a aprovação do concurso para a escolha dos projetos, previsto para “meados do segundo semestre de 2023″. A inauguração do memorial está no Plano de Metas da Prefeitura, que abrange de 2021 a 2024. O custo total será de cerca de R$ 14,4 milhões, dos quais R$ 10,1 milhões em desapropriação.

O memorial será instalado em um terreno de 441,44 metros quadrados, no qual as ossadas – do século 18 – foram encontradas pela equipe de arqueologia, em 2018. Os resquícios arqueológicos serão mantidos no espaço, em uma área de até 4 metros quadrados, com um velário e sem materiais inflamáveis, voltada a homenagens “aos que perderam suas vidas”.

A obra também vai incluir um espaço multifuncional para reuniões, oficinas, espaço educativo e apresentações, “que poderá contemplar atividades culturais e espaços expositivos (para exposições temporárias e de longa duração), dentre eles o acervo arqueológico”, além de outras instalações.

O terreno foi parte do Cemitério dos Aflitos, que funcionou por volta de 1775 a 1858, destinado ao sepultamento de escravizados, criminosos, indigentes, excomungados e condenados à forca. Do espaço, o único remanescente é a capela homônima, de 1779. Hoje, o templo religioso é procurado não apenas por fiéis devotos de Chaguinhas – santo popular negro que teria sido injustamente morto no século 19 –, como também por grupos que atuam pela preservação da memória negra paulistana.

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O memorial terá a entrada principal pela Rua Galvão Bueno, a principal via turística do bairro, quase em frente ao Jardim Oriental da Liberdade. O outro acesso será pela Rua dos Aflitos, também conhecida como “Beco dos Aflitos”, junto à capela. Um dos pré-requisitos do edital é que o projeto melhore o acesso e a visualização do templo católico, hoje escondido pelas construções do entorno e acessível apenas por uma pequena e estreita rua sem saída.

Terreno do futuro memorial está repleto de restos de construção; torre da capela é visível ao fundo. Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Segundo relatórios de vistoriais, o terreno do memorial hoje está com uma estrutura metálica parcialmente montada, entulho diverso e outros remanescentes de construção. A descoberta ocorreu após uma denúncia pela realização de uma obra irregular sem acompanhamento arqueológico, obrigatório no entorno da capela. Segundo a Prefeitura informou à época, a obra – de um centro comercial – acabou embargada por “desconformidade com o projeto aprovado”.

O material arqueológico foi higienizado, catalogado, analisado e, depois, armazenado no Centro de Arqueologia de São Paulo, da Prefeitura. Neste ano, uma outra obra na garagem de um imóvel na mesma rua foi multada por ocorrer em área de interesse arqueológico. Uma avaliação técnica apontou que a irregularidade pode ter causado “danos arqueológicos”. Os responsáveis não tinham prévia manifestação do Centro de Arqueologia de São Paulo (CASP) e de órgãos de patrimônios para as atividades.

O edital receberá projetos arquitetônicos até 5 de dezembro. O primeiro colocado receberá R$ 50 mil, enquanto o segundo e o terceiro ganharão, respectivamente, R$ 30 mil e R$ 15 mil. Posteriormente, o vencedor será contratado para a elaboração dos projetos básico, executivo e complementar e do cronograma da execução.

A obra em si custará R$ 4 milhões, segundo a Prefeitura. “O memorial a ser projetado será destinado à exposição e preservação do acervo arqueológico, à memória das diversas ocupações históricas que marcaram o passado da cidade, assim como a relevância das situações sociais que formaram nossa sociedade, e principalmente, a memória da população negra que viveu no bairro da Liberdade, no centro de São Paulo, durante o período da escravidão”, diz o edital. Uma das referências apontada ao longo dos anos é o Memorial do Cemitério dos Pretos Novos, no Rio, instalado onde também foram encontradas ossadas.

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A implantação do memorial está prevista em lei desde janeiro de 2020, promulgada pelo então prefeito Bruno Covas (PSDB). Naquele ano, um primeiro depósito, de R$ 2 milhões, para a desapropriação do terreno obteve autorização, porém foi necessário que o Município entrasse com uma ação. Um novo empenho, com R$ 8 milhões, foi autorizado em 2022.

A transformação do espaço em memorial foi reivindicada por ativistas do movimento negro desde 2018 e discutida em uma série de audiências públicas. A Lei 17.310/20 advém do projeto 653/18, do então vereador Reis (PT).

Reparação

Coordenadora do coletivo União dos Amigos da Capela dos Aflitos (Unanca), a artesã Eliz Alves conta que a denúncia que culminou na identificação da ossada ocorreu porque a obra irregular estava abalando o templo religioso vizinho, inclusive com o surgimento de rachaduras. O grupo passou a defender a criação do memorial após a descoberta arqueológica. “Vemos como uma reparação aos nossos ancestrais”, descreve.

Eliz argumenta que o memorial será uma forma de salvaguardar a memória negra e indígena da Liberdade, hoje mais conhecida pela colonização japonesa no século 20. A ideia é que amplie os debates e as atividades culturais já cultivados na capela, que recebe apresentações, celebrações inter religiosas e festas populares, como quermesse e folia de reis.

Outro ponto que ela defende é um projeto de reurbanização da Rua dos Aflitos, hoje utilizada basicamente para estacionamento e entrega de mercadorias. “Parece uma doca. São caminhões, motos, um entra e sai”, descreve. “E a capela está espremida entre construções.” O grupo também se movimenta pelo restauro da capela.

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O Estadão mostrou que a Capela dos Aflitos enfrenta problemas variados de preservação há anos, como rachaduras, infestação de cupins e queda de revestimento. Procurada, a Arquidiocese de São Paulo informou que o projeto de restauro está em avaliação pelos conselhos de patrimônio histórico-cultural estadual e municipal. “Aguardamos a aprovação para poder iniciar a captação de recursos para realizá-lo”, destacou.

Escritor e coordenador geral do Instituto Tebas, Abilio Ferreira considera que o memorial será uma “conquista muito esperada” após um movimento que era uma “ousadia” em meio às disputas para manter a memória negra da Liberdade. Ele espera que o espaço chame a atenção para o “silenciamento” da história africana do bairro. “Deve ser a sede de um museu de território”, diz, em diálogo com o passado daquele entorno, marcado pela “criminalização, punição e morte”, com forca, pelourinho e cemitério.

Ferreira cita que o sítio arqueológico Saracura, identificado nas obras da Estação 14-Bis, da Linha 6-Laranja, também fomenta essa discussão sobre o apagamento da memória negra paulistana. “Dá visibilidade a uma discussão sobre a cidade.”

O que se sabe sobre as ossadas encontradas no antigo Cemitério dos Aflitos?

O relatório final sobre as nove ossadas do antigo Cemitério dos Aflitos identificou que a maioria dos indivíduos tinha maturação óssea e dentária adulta, dos quais ao menos dois eram do gênero feminino. A equipe arqueológica, da A Lasca, também conseguiu estimar que pelo menos três dos corpos mediam de 1,56 m a 1,64 m de altura.

A partir de restos dentais, os arqueólogos também concluíram que eram pessoas com a saúde bucal “bastante precária”, das quais ao menos duas tinham todos os dentes com cáries graves, com perfuração do esmalte, e “desgaste coadunante” (decorrente possivelmente do uso da boca como terceira mão, de alimentação dura ou outra condição semelhante).

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O relatório da arqueologia também aponta que os enterramentos foram simples, quase todos sem qualquer objeto junto aos mortos. As exceções são um indivíduo com três botões (dois de ossos e um de cobre, que seriam parte da roupa do sepultamento ou um adorno) e outro com quatro contas de vidro azul escuro perto do pescoço, o que os especialistas avaliam que seja uma possível ligação com uma religião de matriz africana, especialmente com o orixá Ogum.

Segundo o relatório, as ossadas variam de péssimo (com perdas irreversíveis) a mau estado de preservação, com partes anatômicas parcialmente ou muita incompletas, “quer em virtude de intervenção contemporânea, quer em virtude da ocupação sucedânea e intensa do cemitério à época”.

“Cabe ressaltar que esses sepultamentos estavam até recentemente cobertos por um edifício de até três andares e, portanto, o solo já havia recebido perturbações”, destaca. “Deve ser ressaltado que os remanescentes ósseos encontravam-se em elevado estado de degradação e, portanto, os resultados alcançados podem estar distorcidos.”

A conclusão foi de que as ossadas estavam em uma camada mais funda do cemitério. Segundo informações do processo de implantação do memorial, a maioria dos restos mortais do espaço foi retirada em 1883 para a venda dos lotes.

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