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Correndo atrás do vento

Opinião|A fortaleza das lembranças

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"Salvar alguma coisa deste tempo ao qual nós nunca mais voltaremos" (Annie Ernaux).

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Quando entrava no quartinho dos fundos para pegar minha caixa de brinquedos, eu escolhia três soldadinhos Comandos em Ação e, antes de fechar a tampa, ficava incomodado com a ideia de que o Rambo, com seus complexos e cicatrizes, poderia estar chateado murmurando "poxa, agora eles vão lá fora viver grandes aventuras, salvar o mundo e tal, e eu vou ficar aqui nessa gaveta escura com esse bando de Playmobil carecas". Então eu voltava, pegava o Rambo e o levava junto. E também os Playmobil. Nem que fosse para exercerem um papel coadjuvante na história daquela tarde.

Por alguns anos, achei que meus brinquedos tinham sentimentos. Não que eu acreditasse nisso de verdade, mas no fundo ficava com aquele sentimento de que, bem, ainda que inverossímil, isso poderia ser real. Eu não sabia o que era inverossímil, então assumia a fantasia e seus mistérios como sendo realidade, assim como quase tudo nessa fase da vida. Houve um tempo em que eu colocava esses sentimentos em outras coisas. Certa vez, meu pai vendeu um Monza vermelho e eu passei algum tempo melancólico porque não me despedi do carro. Ele deveria estar com seu capô cabisbaixo, o farol apagado e pneus murchos lá no estacionamento da loja, ao lado daquelas dezenas de outros carros usados porque nós o trocamos pelo Del Rey cinza, três anos mais novo e muito mais legal porque tinha aquele relógio digital que permanecia aceso no painel.

Hoje em dia, não consigo me lembrar de conceitos fundamentais de análise sintática ou de princípios de trigonometria que me seriam úteis em vários momentos da vida adulta (bem, depois me ajude a lembrar quais seriam tais momentos?), mas dessas bobagens eu lembro nitidamente, numa espécie de live action do Toy Story passado na periferia de São Paulo.

Lembro do Monza e lembro também da rua em que crescemos, os lugares onde nos escondíamos, o canto matutino de um bem-te-vi no terreno atrás de casa que nos acordava toda manhã, o sinal de uma fábrica no bairro tocando às sete, lembro do Cuca e do Beto e do Leandro e os detalhes de nossas memoráveis partidas de futebol, das pipas que eu não sabia empinar e meu irmão precisava colocar no alto pra mim, das brigas que encerravam o dia mais cedo e minha mãe chamando às sete porque era hora de "vem-tomar-banho-seu-pai-chegou-o-jantar-ta-quase-pronto".

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Lembro da escola, os nomes das professoras, do futebolzinho na entrada, dos colegas, da merenda que eu não comia e da cantina com aqueles cheiros misturados que lembravam algum tipo de ração, do barulho do sinal que tocava e fazia aquela mini-multidão correr atabalhoada pelo pátio da Escola Estadual de Primeiro e Segundo Grau Marechal Deodoro da Fonseca, formando filas, do menor pro maior, com distância de um braço estendido e ficar ali parado cochichando por uma eternidade de cinco ou dez minutos até tocar o segundo sinal que era a alforria para sairmos correndo outra vez, naquele mar de pequenas cabeças e mochilas pesadas passando pelo funil de um portão estreito rumo à rua onde nossas mães e um almoço nos esperavam.

Depois dos quarenta anos, a gente se dá conta de que lembra de coisas muito úteis e outras tantas completamente imprestáveis sem ter podido imaginar ou controlar, lá atrás, o que daquilo tudo iria formar o que somos hoje. É um mosaico de memórias para o qual olhamos nesse espelho retrovisor distorcido - de um carro definitivamente sem sentimentos e consciência de sua condição de carro - e compomos a história que chamamos de nossa vida. Até aqui.

À medida que envelhecemos e as lembranças começam a se apagar, como é que nossa mente escolhe as bagagens que vai carregar até o fim dos dias e o que ficará pelo caminho? Esquecemos nomes de pessoas queridas, datas, histórias, fórmulas matemáticas, a hora do remédio, fatos marcantes, mas certas cenas impregnam como fungos um canto obscuro e nos acompanham até o fim. E mesmo que soem absolutamente inúteis, são lembranças assim que nos resgatam de onde estamos nesse instante para nos levar nesse mergulho àqueles primeiros anos em que adquirimos algum tipo de consciência.

A infância é uma fortaleza. A infância é esse universo de lembranças que não escolhemos, o memorial onde reside toda riqueza da existência que carregaremos até o fim de nossas vidas. Desses dias, vêm a percepção mais relativa de tempo que pode existir, porque naquela breve dúzia de anos habitam nossas saudades e ali nascem os alicerces das experiências que perseguiremos pelas décadas restantes: esse resto de vida que vem depois de sermos crianças.

E se penso pouco em Monzas, pipas e Playmobil nesses dias, a verdade é que passo tempo demais pensando na infância. Em especial a das minhas filhas. E penso nas experiências aleatórias que se tornarão memórias no futuro e sobre as quais não temos controle. Podemos levá-las a Marte, ao circo, a um baile de máscaras ou a uma temporada na praia e é possível que, aos quarenta anos, elas se recordem mesmo é de uma tarde em que ficamos sem energia em casa ou do dia em que vendemos um Toyota e elas não puderam se despedir do carro.

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Cecília completou nove anos ontem. Teve festa, com bolo, brigadeiro, as primas, músicas e presentes. E não canso de pensar que nesse momento da vida ela tem experimentado as experiências das quais se lembrará com mais consistência e linearidade quando crescer. Quando a deixo na porta da escola, quando encaramos batalhas de cócegas, trocamos bilhetes e desenhos em post-its ou quando ela reclama que eu trabalho demais, me pego pensando: que lembranças serão essas, em 2050, quando ela se pegar pensando na infância, em seus brinquedos dotados de sentimento, os bem-te-vis marcando o tempo no quintal ou as tardes gastas com amigas da vizinhança? Ela cresce e abandona pelo caminho as coisas dessa primeira fase. Não mais bonecas de pano, não mais "boboleta" e palavras trocando o R e o L, nada de seu pijama levantado pra refrescar a barriga no travesseiro frio, as invasões noturnas à nossa cama e desenhos espalhados pela casa. Tudo isso dá lugar a um rumo particular à própria identidade, ainda assombrada pelos monstros que se colocam em seu caminho, mas a cada alvorada avançando com seus patins flutuantes em direção à escuridão para acender, a seu modo, as luzes que lhe abrem uma nova trilha.

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Há pouco mais de uma semana, a Nina fez 17 anos (de-zes-se-te, meu Deus). Mas ela não queria. Queria ficar nesse limiar em que a infância ainda a habita e às vezes faz manha no seu subconsciente e grita pedindo atenção. E ela cede. A Nina moça faz tantas concessões quanto a pequena Nina lhe pede, porque adora o espaço da fantasia, dos filmes, brinquedos, músicas e memórias. Manú sempre fala que tivemos uma filha que nasceu senhora. Ela era nostálgica aos cincos anos. E agora, com a porta da vida adulta aberta diante de si, ela se agarra nos batentes querendo ficar. Tem medo porque não sabe que já está pronta faz tempo. Seus pés descalços escorregam no assoalho e ela foge para um canto, criança, corre pro quarto, mocinha, pega seu piano, respira, ajusta a postura, fecha os olhos e toca lindamente, canta lindamente. Pega um bloco de papéis e tintas, espalha tudo pelo chão, pincéis e traços para todo lado e aí desenha lindamente, pinta lindamente. Ela tem medo, mas não precisa. Seu coração poético vai fazê-la flutuar vida afora, criança, sendo carregada pela fantasia.

Sinto essa urgência, esse medo de sentir escorrer por um ralo esse tempo, como se não fossem elas a perdê-lo, mas eu, vendo esvair a oportunidade de tê-las nos braços, de brincar no chão, de embalar o sono, acudir um pesadelo, ler histórias ao pé da cama ou consolar um choro. As tomo pelas mãos enquanto caminhamos e agarro, seguro firme como se fosse eu que pudesse me perder. E posso facilmente ser drenado por essa ansiedade que nos faz viver o tempo todo em qualquer outro momento que não o agora. Seguro firme e quero ficar ali naquele instante, sentindo a pele macia das mãos de meninas que elas ainda tem e desejando ingenuamente ter esse registro para sempre. Salvar alguma coisa.

Estávamos na cama numa noite dessas e eu contava uma história para a Cici. Antes de pegar no sono, ela se acomodou no meu peito e comentou: "Hoje a noite está perfeita. Eu comi brigadeiro, estou abraçada com meu pai e vou dormir com meu cachorrinho de pelúcia". Esse é o conceito de noite perfeita que ela aspira.

Somos testemunhas dessas histórias que se constroem e que não controlamos em absoluto. No futuro, seremos, Manú e eu, um pedaço de suas lembranças. Mas seremos fragmento, coadjuvantes. O papel que pais e mães querem acreditar que nunca terão, porque se para elas seremos um pedaço no passado que aos poucos deixarão para trás, em nós carregaremos até o fim a certeza de que os filhos são fundamento, uma parte da história que nos constitui. Elas serão sempre uma parte de quem somos. Nós, para elas, uma conexão que precisa abrir espaço aos poucos para que possam começar suas jornadas a seu próprio modo.

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A verdade é que eu lembro muito pouco da vida que tínhamos antes delas nascerem. É como se os quatro anos de nosso casamento até aquela madrugada em que peguei a Nina nos braços pela primeira vez estivessem encapsulados numa linha curta que se resumia a trabalho, trabalho, macarrão ao molho branco, trabalho, pipoca e maratonas de filmes alugados em cassete e DVD. E essa fase também se tornou um apanhado de cenas esparsas que compõem um período.

"Ainda temos o dia de hoje", digo a mim mesmo para me desgarrar do passado empoeirado e dessa ideia de elucubrar futuros possíveis que não controlo. E Deus sabe como me empenho nessa tentativa. Porque não tenho mesmo como saber, afinal, que porção das experiências que vivem hoje serão lembranças para essas meninas quando se tornarem adultas. Do meu lado, porém, carrego a certeza de que delas lembrarei muito mais - mais do que elas mesmas - porque contemplo essas trajetórias de um lugar privilegiado. E cada fragmento de história, de primeiras palavras a primeiros passos, de cantos de pássaros e pores do sol, de lágrimas colhidas e dentes perdidos, de banalidades cotidianas a viagens épicas, isso carregarei comigo, do que dividimos, porque já não é delas apenas, mas é também quem somos. E salvo tudo o que posso disso, dobrado em gratidão, contemplando esses dois milagres que florescem sob nossos olhos.

Enquanto escrevo, estou sentado em frente ao gramado da casa da minha sogra no interior. Cecília está aqui ao lado brincando com os presentes que ganhou na festa de ontem. Pequenos bonecos dotados de vida e sentimentos. Uma porção de folhas de papel espalhadas pelo piso com os desenhos incompletos da história que ela está escrevendo. Nina e Manú leem algo no quarto enquanto esperam familiares e amigos chegarem para o almoço. Lá fora, o céu azul brilha intenso. Meu olhar se perde um instante no insondável acima de nós. É só mais um dia e ainda é festa. É dia de erguer um altar. Salvar tudo o que posso deste tempo para onde espero sempre poder voltar.

Opinião por Luiz Henrique Matos

É escritor e publicitário. Autor dos livros “Enquanto a gente se distrai, o tempo foge” e "Nem que a vaca tussa!" e criador do canal Frases de Crianças.

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