Mafioso italiano que se escondeu no Tatuapé decide delatar segredos do PCC e do CV na Europa

Apontado como principal intermediário da droga da América do Sul para a ‘Ndrangheta, Vincenzo Pasquino foi extraditado em março para a Itália; reportagem não localizou a defesa

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Foto do author Marcelo Godoy
Atualização:

O mafioso italiano Vincenzo Pasquino assinou acordo de colaboração com a Justiça italiana. Ele é apontado como o maior intermediário do tráfico de cocaína da América do Sul para as ndrine, os clãs mafiosos da ‘Ndrangheta, a máfia da Calábria, a mais poderosa organização criminosa da Itália. E vai agora entregar informações sobre o Primeiro Comando da Capital (PCC) e sobre o Comando Vermelho (CV), além de três poderosas famílias de sua organização.

As várias faces do mafioso italiano Vincenzo Pasquino: a foto da polícia italiana e as fotos no Brasil com barba e com a máscara, durante a pandemia de covid-19. Foto: Polícia Civil / Reprodução / Estadão

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O terremoto que Pasquino, de 34 anos, pode provocar na ‘Ndrangheta talvez seja comparável ao que Tommaso Buscetta provocou na Cosa Nostra, a máfia siciliana, nos anos 1980. Assim como don Masino (como Buscetta era conhecido), il boss dei due mondi Pasquino foi preso no Brasil e, ainda aqui, começou a tratar de sua colaboração. O Estadão não conseguiu localizar a defesa de Pasquino.

Foi em seus interrogatórios, em novembro e em dezembro de 2023, na Penitenciária Federal de Brasília, que Pasquino admitiu pela primeira vez seu envolvimento com as atividades criminosas da ‘Ndrangheta, inclusive no Brasil.

Quem conta é o procurador Giovanni Melillo, chefe da Direção Nacional Antimáfia e Antiterrorismo da Itália. Em 6 de junho, ele informou ao procurador-geral da República, Paulo Gonet, que Pasquino, hoje preso em Roma, havia decidido se tornar um pentito, um arrependido, figura da legislação italiana semelhante à nossa colaboração premiada. Pasquino havia sido extraditado para a Itália em março.

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Trecho do documento encaminhado pelo procurador antimáfia da Itália, Giovanni Melillo, ao procurador-geral da República, Paulo Gonet, sobre a delação de Pasquino. Foto: Reprodução / Estadão

“O senhor Pasquino decidiu-se pelo caminho da colaboração com a Justiça, dando declarações e confissões que, já no estado atual (no início das conversas), parecem relevantes também para investigações reservadas à jurisdição da República do Brasil, referindo-se ao tráfico internacional de entorpecentes organizado por grupos criminosos brasileiros ligados ao Primeiro Comando da Capital e ao Comando Vermelho”, escreveu o procurador italiano no documento ao qual o Estadão teve acesso.

O colaborador contou aos procuradores que era integrante da ‘Ndrangheta desde 2011. Disse que era um “analfabeto” quando se ligou à ndrina Agresta de Volpiano, clã mafioso de origem calabresa que atua no Piemonte, norte da Itália.

Pasquino nasceu em Turim (Piemonte). Ali, se ligou aos albaneses, os quais reencontraria no Brasil, como Leart Gjimaraj, que havia sido preso com 15 quilos de cocaína e de maconha em 2014, escondidos em uma garagem em Turim.

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Pasquino veio para o Brasil em 2017. Ia trabalhar com o envio de drogas para a Itália. Estabeleceu-se primeiro no Paraná e, depois, mudou-se para São Paulo.

Vida no Brasil

Seus primeiros contatos no Brasil foram com Nicola Assisi e o filho deste, Patrick, dois chefes da ‘Ndrangheta que cuidavam do envio de cocaína da América do Sul para a Europa. A defesa dos Assisi e de Gjimaraj não foram localizadas.

Com a prisão dos Assisi, em julho de 2019, em Santos, Pasquino se mudou para São Paulo, onde escolheu a região do Tatuapé, na zona leste de São Paulo, para se estabelecer.

Era ali que boa parte da liderança da Sintonia do Tomate, o tráfico transatlântico do PCC, comprou dezenas de imóveis e levava vida de luxo, na área mais nobre da zona leste. A aliança entre as duas organizações com a Máfia dos Bálcãs para levar cocaína à Europa encheria os cofres da cúpula da facção e de aliados – só o PCC lucraria mais de US$ 1 bilhão por ano com o tráfico.

Pasquino era um dos responsáveis por montar a logística. Em São Paulo, deixou a barba crescer e frequentava ainda endereços no Guarujá, no litoral, e no Morumbi, na zona sul. Mas foi na zona leste que ele estabeleceu sua principal base: um apartamento na Rua Aguapeí, onde vivia com sua mulher, Morena Maggiore, filha de um importante mafioso da Sicília.

A moça fazia compras no bairro sempre acompanhada de um segurança brasileiro. E assim foi surpreendida pelos investigadores da 4.ª Delegacia do Departamento Estadual de Repressão a Narcóticos (Denarc).

Morena Maggiore, mulher de Vincenzo Pasquino, faz compras no Tatuapé acompanhada por um segurança. Foto: Polícia Civil / Reprodução / Estadão

Após a prisão dos Assisi, Pasquino se tornou o “broker de referência para o tráfico global” da ‘Ndrangheta. Também passou a ser braço-direito do chefão Rocco Morabito, o Tamunga, apelido que o chefe da ‘Ndrangheta recebeu porque era dono de um carro DKW Munga.

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“Nosso alvo era o Rocco Morabito. Tentávamos chegar até ele e fomos aos poucos identificando essa rede de contatos”, afirmou o delegado Fernando Santiago, do Denarc. O Estadão não conseguiu localizar a defesa de Morabito.

Conhecido como il re calabrese della coca de Milão, Tamunga era um dos dez homens mais procurados no mundo pela Interpol quando foi capturado com Pasquino no Brasil, pela PF e pelos carabineiros italianos, em 2021.

Os dois estavam em um flat na praia de Tambaú, em João Pessoa. Morabito acabou extraditado em 2022, destino que só atingiria Pasquino dois anos depois, por ordem da 1.ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF).

Ali, Pasquino estava condenado a 17 anos por tráfico de drogas. Mas havia outras ameaças contra ele: a delação de Domenico Agresta, um jovem chefe do clã do qual ele fazia parte, e as provas obtidas pela procuradoria antimáfia na Operação Eureka.

Essa operação levou à prisão de 108 acusados de pertencer às ndrine, como a Nirta, da Calábria, que movimentou mais de € 2 bilhões em drogas. A Eureka revelou também carregamentos de armas do Paquistão para o PCC e o envio de toneladas de cocaína do Brasil para a Europa.

Na Itália, Pasquino foi interrogado por dois procuradores. A eles, o mafioso admitiu todos os fatos que lhe “foram imputados no âmbito do procedimento Eureka”. E também relatou as regras da máfia para o uso do porto de Gioia Tauro, principal terminal de contêineres do Mediterrâneo.

Carabineiros italianos mobilizados pela procuradoria de Locri, na Calábria, para a Operação Eureka contra a 'Ndrangheta. Foto: EUROPOL

“Uma ndrina calabresa que encomenda um carregamento de cocaína para Gioia Tauro deve informar as outras. Só no caso em que as famílias importantes não queiram adquirir uma parte do carregamento é que é possível oferecê-la para outras pessoas. Quem não respeita essa regra arrisca ser morto ou ser ‘espoliado’, no sentido de ser afastado dos negócios ou de perder a proteção.”

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É o que teria acontecido com um carregamento que Pasquino dividia com o PCC – 50% de cada. Ao chegar a Gioia Tauro, o contêiner com 500 quilos de cocaína desapareceu. Quando foi encontrado, a droga não estava mais lá.

Pasquino conta que ainda conseguiu receber indenização pela droga. Nas investigações da Eureka, foram constatados 15 carregamentos de cocaína de Colômbia, Equador e Brasil.

O mafioso conta que outro carregamento do PCC, de cem quilos, foi recusado pelos calabreses da ndrina de Plati, que alegaram que a cocaína não era de boa qualidade. O caso levou a um racha com o PCC, que passou a preferir trabalhar com a Máfia dos Bálcãs e seus grupos de albaneses, montenegrinos e sérvios.

Logo depois da prisão de Pasquino, outro mafioso, Sebastiano Giampaolo, o teria substituído. Ele inclusive reatou os contatos com albaneses depois de ter encontrado o doleiro que trabalhava no Brasil para os homens dos Bálcãs. A defesa de Giampaolo não foi localizada.

Segundo documento do procurador Melillo, Pasquino revelou informações que envolvem “perigosas famílias da ‘Ndrangheta originárias de San Luca e Plati (Reggio Calábria), Volpiano (Turim) e Guardavalle (Catanzaro)”, assim como o tráfico pelos portos de Santos, Paranaguá (PR) e João Pessoa.

Vincenzo Pasquino e sua mulher Morena foram vigiados pela polícia em São Paulo mantendo encontros enquanto ele cuidava do envio de cocaína para a Europa. Foto: Polícia Civil / Reprodução / Estadão

É muito raro um chefe ‘Ndrangheta decidir delatar. É que a organização é fundada nos vínculos familiares das ndrinas, os clãs mafiosos, o que a fez por décadas ficar imune às tentativas do Estado italiano de romper a lei do silêncio, a omertà, em torno de suas atividades.

Pasquino promete ainda entregar aos procuradores italianos o mapa das principais rotas internacionais da droga e seus contatos com os narcotraficantes turcos e operadores chineses ligados à lavagem de dinheiro. Deve também revelar novos detalhes sobre seus amigos do PCC, a turma do Tatuapé. Eis uma história que está apenas no começo.

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