Está enganado quem acredita que a linguagem dos brasileiros é simplesmente uma adaptação do idioma dos portugueses. Algumas expressões são, na verdade, originárias de povos africanos.
Em Portugal, o irmão mais novo é o benjamim; no Brasil, o termo utilizado é caçula, assim como na língua quimbundo, do norte da Angola. Exemplos como esse estão na exposição “Línguas africanas que fazem o Brasil”, em cartaz no Museu da Língua Portuguesa. Até 31 de agosto deste ano, a entrada aos sábados e domingos é gratuita.
A primeira parte da mostra recebe o público com 15 palavras de origem africana, como “marimbondo”, “canjica”, “xingar”, “cochilar” e “minhoca” narradas por moradores da região da Estação da Luz, onde o espaço cultural está localizado.
“A intenção é mostrar como as presenças africanas estão na raiz do Brasil. É algo além da linguagem e que abrange a codificação, cultura e modos de existir”, explica o músico e filósofo Tiganá Santana, responsável pela curadoria. “Elas não meramente influenciam o modo como se fala, pensa, lê e escreve, mas sim estruturam a língua brasileira”.
Aos 41 anos, Tiganá se apresenta como compositor, cantor, instrumentista, poeta, produtor musical, diretor artístico, curador, pesquisador, professor e tradutor. Natural de Salvador, ele acredita que a sua escolha para o posto de curador da exposição é resultado de anos de trabalho acadêmico e uma vida artística agitada. Há quase 14 anos, o baiano se tornou o primeiro compositor brasileiro a lançar um álbum com canções em línguas africanas, intitulado Maçalê (você é um com a sua essência) em iorubá arcaico.
Para provar que essas marcas vão muito além das palavras, com impactos nas religiões, obras arquitetônicas, músicas e festas populares, a exposição conta com instalações não verbais. Um dos exemplos são os cerca de 20 mil búzios. As conchas são vistas como um meio de comunicação entre o mundo físico e espiritual na tradição afro-brasileira.
No mesmo espaço, está exposto um tecido com a frase “Civilizações Bantu”, feito pelo artista plástico J. Cunha para o Ilê Aiyê, primeiro bloco afro do Brasil, no carnaval de 1996. O uso dos turbantes também é abordado para explicar como as diferentes amarrações indicam posições hierárquicas dentro do candomblé. “A gente leva, de fato, para outros códigos de linguagem essa presença linguístico-cultural africana”, afirma Santana.
As presenças africanas nos detalhes
Lélia Gonzalez, uma das principais intelectuais do Brasil e referência nos debates de gênero, raça e classe, ganhou destaque em um dos ambientes. Trechos do livro Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira são projetados com imagens do mar, acompanhados do uso da expressão “pretuguês”, cunhada por Gonzalez. O projeto é da artista visual Aline Motta, que também produziu uma segunda videoinstalação, em parceria com o historiador Rafael Galante.
A exposição conta ainda com esculturas de Rebeca Carapiá, feitas com metais, trabalhos da designer Goya Lopes e entrevistas com pesquisadores como Félix Ayoh’Omidire, Margarida Petter e Laura Álvarez López. “É uma experiência completa. Ela foi pensada com espaços diferentes e experiências distintas para cada um desses lugares.”
A mostra destaca que essas presenças chegaram ao Brasil por meio de 4,8 milhões de africanos trazidos de forma violenta entre os séculos 16 e 19. “É importante esse processo mais aprofundado de autoreconhecimento das pessoas que nascem no Brasil. Colocamos espelhos na entrada para que elas se vejam e se reconheçam, para que a gente se lembre da presença africana”, afirma o curador.
Santana acredita que, mais de uma década depois do lançamento de Maçalê, há mais pessoas dedicadas às culturas negras, mas que é importante entender como esse interesse é trabalhado.
“O próximo passo é incorporarmos essas epistemologias estéticas e os saberes diversos dos povos negros. Deixar de ser alguma coisa abstrata ou distante e passar a pensar em qual medida essas construções negras participam do nosso pensamento, da nossa ação e da nossa ideia de democracia”.
A exposição representa uma forma necessária de reparação na opinião do professor José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares. “As línguas africanas foram excluídas da língua oficial, invisibilizadas, mas permaneceram presentes no falar cotidiano”, diz o professor. “A exposição é importante para propagar, disseminar e reconhecer essa influência histórica”.
Vicente lembra que a Lei Federal 10.639/03 determinou, há quase duas décadas, que todas as escolas deveriam ensinar a história e a cultura afro-brasileira na sua grade curricular. A lei, no entanto, não alcança a maioria das escolas.
Uma pesquisa realizada pela Geledés e pelo Instituto Alana, com apoio da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e da União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (Uncme), revelou que 71% das redes municipais de ensino do País deixaram de colocar em prática a determinação.
* Este conteúdo foi produzido em parceria com a Universidade Zumbi dos Palmares, instituição que há duas décadas se dedica à inclusão étnico-racial no ensino superior.
dividerServiço
Evento: Línguas africanas que fazem o Brasil
Quando: de 24 de maio a janeiro de 2025
Horário: de terça a domingo, das 9h às 16h30, com permanência até às 18h
Ingresso: R$ 24 (inteira); R$ 12 (meia); gratuito aos sábados e domingos (até 31 de agosto)
Onde comprar: Venda de ingressos na bilheteria e pela internet;
Local: Museu da Língua Portuguesa
Endereço: Praça da Luz, s/n - Centro - Acesso pelo portão A
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