Da Mercearia São Pedro à Cristallo da Oscar Freire, o fechamento de comércios de rua conhecidos por gerações de paulistanos tem chamado a atenção neste ano. O encerramento das atividades nesses espaços envolve motivos diversos e complexos, mas com um elemento comum cada vez mais evidente em bairros valorizados de São Paulo: a profusão de obras de prédios altos.
Seria o início do fim do comércio de bairro? Para pesquisadores e o setor imobiliário, o momento é de transição. A divergência entre eles é o resultado dessa transformação, especialmente em relação à efetividade dos novos espaços que poderiam receber esses pequenos e médios estabelecimentos: o andar térreo dos edifícios recém-entregues, chamados de “fachadas ativas”.
A discussão se dá, principalmente, porque parte dessas lojas térreas está vazia ou com unidades de grandes redes e não absorve todos os pequenos e médios negócios que funcionavam anteriormente naquela vizinhança. Grande parte dos novos prédios aplica esse tipo de construção mista, principalmente por dar acesso a incentivos construtivos atrativos.
Na prática, alguns especialistas avaliam que isso pode resultar em maior impessoalidade do comércio, assim como alta no custo de vida. Outros falam que as mudanças são cíclicas e esperadas e que o mais importante é manter o uso misto nos bairros, como é estimulado por meio de diversos incentivos às fachadas ativas previstos há dez anos, com o Plano Diretor de 2014.
Além disso, o hiato de alguns anos entre o fechamento do estabelecimento e a entrega do novo empreendimento pode aumentar a sensação de “esvaziamento”. Com um momento econômico de baixa de juros entre 2018 e 2020 e estímulos urbanísticos da Lei de Zoneamento de 2016, o boom do imobiliário passou a ficar mais evidente apenas nos últimos anos, com a profusão de obras.
Mais fatores interferem, como as mudanças tecnológicas, econômicas e de consumo. O crescimento do comércio virtual e dos aplicativos de entrega impactaram no movimento de lojas físicas, assim como resultaram em outros modos de exploração comercial, como as dark kitchens, as cozinhas que operam exclusivamente por delivery.
Além disso, algumas grandes redes apostam em negócios de menor porte, como mercadinhos, enquanto parte dos pequenos e médios empresários ainda se recupera da pandemia. Localmente, a violência e a valorização de alguns bairros são mais elementos que pesam na conta, segundo especialistas ouvidos pelo Estadão.
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A transformação é maior nos bairros mais valorizados e próximos de estações de metrô e corredores de ônibus, que concentram a maior parte dos lançamentos imobiliários.
Além dos dois exemplos de comércio citados, outros tantos casos envolvem inquilinos que mudam de endereço diante da venda do ponto para um futuro empreendimento vertical.
Na revisão do Plano Diretor, no ano passado, moradores de subprefeituras variadas fizeram relatos dessa situação, como de Pinheiros e Lapa, na zona oeste, Santana/Tucuruvi, na norte, Vila Mariana e Cidade Ademar, na sul, e Sé, no centro.
“Há comentários que atentam para processo de ‘gentrificação’ (expulsão) de estabelecimentos de comércio tradicionais dos bairros, para os quais apontam dificuldades em arcar com o valor dos aluguéis nos empreendimentos mais novos, ainda que sobre esses incida o incentivo urbanístico da fachada ativa”, diz relatório da Prefeitura.
O que dizem os pequenos comerciantes?
Como o Estadão mostrou, entre os bairros mais visados estão o Brooklin, na zona sul, e Pinheiros, na oeste. Até mesmo a paisagem da Oscar Freire tem mudado: parte de duas das quadras comerciais mais valorizadas tiveram lojas demolidas para dar lugar a condomínios de alto padrão.
O exemplo mais evidente foi o fechamento da quase cinquentenária Cristallo, em janeiro, que agora mantém as atividades apenas em um shopping. “Fomos um ícone, permanecendo firmes ao longo das décadas”, diz postagem nas redes sociais.
Outro exemplo também nos Jardins é o da sapataria Casa Tody, que fechou as portas em fevereiro, após 70 anos de atividades na Rua Augusta. “O encerramento marca o fim de uma era, de um ciclo”, descreveu na despedida, em rede social.
Situação semelhante ocorreu no distrito de Pinheiros. A Mercearia São Pedro fechou, por exemplo, há pouco mais de uma semana em meio a divergências entre os dois sócios, disputa judicial e o avanço do mercado imobiliário no entorno da Vila Madalena. Diversos frequentadores se reuniram em frente ao espaço, que funcionou por 56 anos e se despediu com música.
Defensor da venda pelo o que chama de “briga interna”, Marcos Benuthe critica a substituição de pequenos comércios por redes. Ele abriu a Ria Livraria ali perto, em 2021, em um sobradinho. Como são diversos os donos do imóvel, espera que a verticalização não chegue até o local — o que passou a ser mais improvável pela mudança no zoneamento do entorno da Estação Vila Madalena neste ano, que perdeu os incentivos a prédios altos.
Para ele, esse tipo de espaço consegue criar o próprio público, por meio de contato mais pessoal. “Abaixo a esse comércio que é o mesmo em Dubai, no interior do Brasil, em Londres ou Tóquio. Cada comércio pequeno de rua tem suas características, sua alma e seu público”, defende.
Entre inquilinos, a situação é ainda mais evidente. Um caso de repercussão é o dos imóveis junto ao anexo do Espaço de Itaú de Cinema, da Rua Augusta, que recebeu o enquadramento preliminar como Zona Especial de Proteção Ambiental - Área de Proteção Cultural (Zepec-APC) após mobilização de parte dos ocupantes.
Esse provisório “tombamento de uso” também foi decidido por órgãos de patrimônio para o bar de samba Ó do Borogodó, em Pinheiros, e prevê que o tipo de atividade reconhecido deva seguir mesmo com a construção de outro edifício no local.
Com a situação, o antigo endereço do La Sabrosa segue vazio, enquanto o restaurante se mudou para a região de Pinheiros em maio passado. Chegou-se a procurar, mas não se encontrou uma boa opção no entorno da Augusta — como mostrou o Estadão, parte do Baixo Augusta passou a ter menos comércios e mais prédios com muros.
Parar as atividades e retornar no térreo do futuro edifício também não era uma opção viável. “Foi no momento em que começávamos a nos recuperar da pandemia e pagar as dívidas, o negócio estava indo maravilhosamente bem”, explica um dos sócios, Hugo Delgado.
O novo espaço fica em uma rua igualmente em transformação, com um prédio alto em obras ao lado. Mas, agora, Delgado diz que o contrato de aluguel foi firmado de modo a dificultar uma nova saída diante do avanço imobiliário no entorno. “É um prédio gigante (em obras) abraçando a nossa pequena casinha”, descreve.
Outros comércios também têm se adaptado e, em alguns bairros, pequenos imóveis são até disputados. Uma opção com diversas novidades na cidade é o de estabelecimentos “de portinha”, com espaço reduzido, de menor custo.
O que diz o mercado?
Como a intensificação da mudança é recente, especialistas e representantes do mercado divergem sobre os resultados. Um dos pontos mais ressaltados pelo setor das incorporadoras é o hiato entre a compra dos imóveis, o desenvolvimento do projeto e a entrega da obra, o que pode influenciar na impressão de esvaziamento temporário do comércio local. Esse período gira em cerca de quatro anos, mas pode variar significativamente.
Vice-presidente e coordenador-geral do Conselho Política Urbana da Associação Comercial de São Paulo (ACSP), Antônio Carlos Pela argumenta que a fase é de adaptação. “Com o tempo, o mercado se ajusta às demandas do varejo. E essas lojinhas de bairro e incorporadoras se adaptam às necessidades da região. Se não fizerem isso, perdem o produto, porque têm o mercado. A cidade está se modernizando, se ajustando para as necessidades atuais, para o perfil novo da população”, conclui.
O relator da revisão da Lei de Zoneamento, vereador Rodrigo Goulart (PSD), diz que comerciantes e mercado imobiliário apresentaram demandas para facilitar a transição. No caso das fachadas ativas, passaram a ser aceitas vagas de estacionamento na frente, assim como não é mais necessário ter comércio em todas as entradas do prédio (o que, para ele, explica parte dos térreos sem locatário).
“Há uma reclamação grande dos valores colocados em aluguel. Isso quem controla é o mercado. É a lei da oferta e da procura e, com o tempo, vai se adequar à realidade do comércio”, diz ele, que também é um dos diretores adjuntos da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel).
Vice-presidente de Legislação e Urbanismo Metropolitano do Secovi-SP (do setor das incorporadoras e construtoras), Ricardo Yazbek destaca que uma das dificuldades de parte das fachadas ativas é a necessidade de definir o tipo de atividade do térreo no processo de licenciamento na Prefeitura, o que ocorre anos antes da entrega da obra. Também defende que as novas fachadas ativas melhoram a paisagem: “São pensadas na mesma linguagem arquitetônica do empreendimento.”
Presidente do Conselho Regional de Corretores de Imóveis do Estado de São Paulo (Cresci-SP), Augusto Viana avalia que a substituição de comércios por outros mais valorizados é natural quando a região se valoriza, mas que não seria o motivo para o fim ou enfraquecimento da atividade. “Não só em São Paulo, mas em outras cidades, o comércio de rua é um atrativo grande. Qualquer grande cidade cobiçada pelo turismo, Paris, Madri, Barcelona, tem comércio de rua forte.”
O que dizem os pesquisadores?
Pesquisadora em comércio e cidade e professora da USP, a urbanista Heliana Comin Vargas diz que esse movimento ocorre basicamente por questões econômicas: a venda do imóvel se torna mais atrativa do que o aluguel do ponto ou a manutenção do comércio próprio. “Digamos, no caso de comerciantes da Augusta, da Oscar Freire, cada vez mais pessoas querem morar nessas áreas centrais”, aponta. Ou seja, o interesse e a valorização do imóvel para venda aumenta.
A questão é se a manutenção desse fluxo de pessoas em um comércio local continuará quando o novo empreendimento for entregue, pontua ela. O mesmo vale para empreendimentos que colocaram a fachada ativa em endereços que não tinham esse tipo de atividade.
“O comércio não se define pela arquitetura e o projeto urbano. Só vai onde tem consumidor, demanda, fluxo”, avalia. “É equívoco imaginar que só de se fazer o térreo, o comércio vai se instalar.”
O pesquisador do Centro de Inovação e professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da FGV, Luis Henrique Pereira, destaca que a transformação muda o relacionamento das pessoas com os comércios. “O consumidor perde de ter um relacionamento mais próximo, com sentido de comunidade. Nas grandes cadeias, o que reina é a impessoalidade”, compara.
Além disso, pontua que essa troca pode impactar na economia local, tanto que há movimentos de estímulo ao “buy local”, não só pelos pequenos comerciantes, mas também porque parte deles vende itens de produtores próximos. “Hoje, raramente se encontra uma farmácia que não seja de grande rede. O mesmo acontece com os mercadinhos”, comenta.
Já a pesquisadora de mercado imobiliário Thaty Galvão destaca o resultado da transformação para além dos comércios individualmente, mas para a paisagem da cidade, que pode ficar mais padronizada. “Não vai ter mais a diferenciação de edifícios de idades, estéticas, preços de aluguéis diferentes”, avalia.
Essa mudança é evidente ao se comparar com os térreos de prédios mais antigos, feitos até os anos 1970, por exemplo. Alguns desses espaços, tinham menores dimensões e basicamente contemplavam o espaço de uma porta retrátil, aberta e fechada no início e fim do dia. “Agora, muitos são pele de vidro, grandes e não condizem com o comércio de bairro que tinha até então.”
Agora doutoranda, a urbanista estudou os novos empreendimentos da Vila Mariana no mestrado. Ela identificou que a maior parte estava com a fachada ativa sem uso ao menos até o ano passado. “Os poucos que se vê ocupados são por redes de supermercados, farmácias”, aponta.
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