SÃO PAULO - Quando o semáforo fecha, a ação é automática e quase sem nenhuma reflexão. Depois das 18 horas, ao passar pela Avenida Duque de Caxias, no centro paulistano, centenas de motoristas levantam o vidro dos carros como que para se protegerem dos “perigos” de um local reconhecido pela frequência de pedintes e usuários de drogas.
Mas quem olhar de dentro do carro, na segurança do vidro fechado, em direção à Praça Princesa Isabel, vai reparar que uma série de barracas de lona foi montada por lá. Nas tardes ou noites mais frias, também é possível avistar uma ou duas fogueiras. A praça virou uma espécie de purgatório - lugar de passagem entre a recaída e a salvação.
Os acampados da Praça Princesa Isabel estão vivendo esse dilema. São, na maioria, pessoas que tentam fugir do “fluxo” pesado da Cracolândia, mas ainda não conseguiram dar os passos seguintes - que é o de sair das ruas e procurar ajuda para abandonar o vício.
A praça passou por uma revitalização em maio de 2018. As obras, feitas por uma empresa privada, duraram cerca de três meses, ao custo de R$ 2 milhões. Os equipamentos e a quadra poliesportiva instaladas no local continuam em bom estado - embora exista muita sujeira espalhada pela praça.
No dia em que o Estado esteve lá, foi possível identificar pequenos núcleos familiares (principalmente mãe e filhos pequenos). Também dividiam barracas pessoas com algum laço de amizade. Em conversas rápidas, uma história sempre parecida. “Aqui fico mais seguro e um pouco mais longe das tentações”, falou um homem que disse se chamar Carlos e se declarou ex-usuário de crack. Além de usuários que tentam se distanciar da Cracolândia, é possível encontrar usuários que ficam na praça porque estão envolvidos em alguma “treta” (briga no fluxo). Comerciantes do entorno, relatam brigas entre os acampados e pequenos furtos.
O consumo de álcool também é indisfarçável no local. A praça tem uma base fixa e outra móvel da Polícia Militar - mas os policiais não atuam para remover os acampados. A ação policial ocorre só quando há algum conflito ou denúncia.
Alguns moradores da região evitaram a área depois que as barracas voltaram a ser montadas. “A gente se sente insegura. A praça tinha ficado tão arrumadinha, mas a paz durou pouco”, conta Helena Duarte, de 61 anos.
Durante todo dia, assistentes sociais ligados a ONGs, igrejas e à Prefeitura (ao Programa Redenção) tentam abordar os acampados. Na abordagem, há uma tentativa de aproximação para encaminhá-los para o Serviço Integrado de Acolhimento Terapêutico ou ao menos levá-los para um abrigo (para pernoite). A frase mais ouvida na praça é “não, obrigado”. Ao serem questionados sobre o motivo de preferirem à praça no lugar de um abrigo ou a possibilidade de um tratamento a resposta é quase sempre: “essa é a minha vida, meus amigos estão aqui”.
Desafio
Coordenador de Saúde do Redenção, Arthur Guerra disse que nesta fase do programa as abordagens estão sendo intensificadas (assim como a oferta de acolhida). “Já realizamos mais de 10.600 internações voluntárias. Mas, repito: são voluntárias. É uma situação muito difícil, com pessoas com fortes indícios de doenças mentais, depressão, esquizofrenia, sem trabalho, cuidados físicos ou autoestima.” “É um desafio, um trabalho muito difícil, mas quando conseguimos tirar 1, 3 ou 10 pessoas das ruas é uma vitória”, completou.
Segundo a Prefeitura, o Serviço Especializado de Abordagem Social (SEAS), da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, Santa Cecília e o SEAS Modalidade 4 monitoram a PraçaPrincesa Isabel diariamente, em três turnos. No último semestre as equipes realizaram 3.779 abordagens, em que 2.458 usuários foram encaminhados para Centros de Acolhida, 700 para Núcleos de Convivência, 104 para atendimento de saúde, 96 para regularização de documento, 53 para o Programa Redenção ou internação no Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas (CRATOD), dois encaminhamento para atendimento social e 366 para outros serviços (acompanhamento diário e escuta qualificada).
Ainda de acordo com a Prefeitura, de 26 de maio de 2017 (início do Programa Redenção) até a última terça-feira (6) foram realizados na Unidade Redenção 17.312 atendimentos, entre eles 10.579 internações voluntárias em leitos de desintoxicação em hospitais contratados; 375 encaminhamentos para leitos de prontos-socorros e hospitais municipais e gerais; 299 para Centros de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (CAPS-AD); 14 para o Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas (CRATOD) e 585 para a rede de atendimentos sociais.
Local já foi hipódromo e Cracolândia
Com área de 16,6 mil m², que já foi hipódromo e recebeu corridas de cavalo até 1876, a Praça Princesa Isabel chegou a virar a “Nova Cracolândia”. Em maio de 2017, uma megaoperação policial no “quadrilátero da droga”, então formado pela Alameda Dino Bueno com a Rua Helvétia, expulsou usuários e traficantes do antigo fluxo. Com a ação, os dependentes químicos se instalaram na Princesa Isabel, a 500 metros de distância do lugar original, onde montaram tendas e barracas. A revitalização afastou o fluxo da Praça, mas restauram os usuários eventuais e aqueles que estão no limbo entre escapar ou se afundar no vício.
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