Milícia formada por guardas-civis e PMs que atua na Cracolândia é alvo de operação no centro de SP

Megaoperação do Ministério Público prende dez e mostra que guardas e policiais montaram grupo para achacar comerciantes, enquanto PCC explora tráfico e receptação de celulares roubados; ‘Estadão’ não localiza acusados

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Foto do author Marcelo Godoy
Atualização:

Uma milícia que atua no centro de São Paulo para vender proteção a comerciantes da região contra a ação de bandidos e usuários de droga da Cracolândia é um dos principais alvos da Operação Salus et Dignitas (Segurança e Dignidade), do Grupo Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público Estadual (MPE), que pretende desarticular o que os promotores chamam de “ecossistema criminoso” na região controlada pelo Primeiro Comando da Capital (PCC).

Megaoperação do MP incluiu mais de mil policiais e dezenas de viaturas. Foto: Divulgação/Ministério Público de São Paulo

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A megaoperação deflagrada nesta terça-feira, dia 6, mobiliza 1,3 mil agentes, cerca de 400 viaturas e um helicóptero. Ao todo, 117 mandados de busca e apreensão estão sendo cumpridos pelos promotores, que contam também com a atuação de 105 policiais civis, mil policiais militares, 150 policiais rodoviários federais, 25 promotores e agentes do MPE, além de procuradores do Trabalho e fiscais das Receitas Estadual e Federal.

A Justiça ainda decretou o sequestro de 20 hotéis, cortiços e hospedarias, quatro estacionamentos, 15 ferros-velhos e oito lojas, bem como determinou a interdição de 44 estabelecimentos, que devem ser emparedados. A Receita Estadual deve cancelar a inscrição dos empreendimento. Além disso, decretou a prisão de cinco acusados de participar da milícia, formada por guardas municipais e policiais militares, e dois envolvidos com negócios do PCC na região.

Megaoperação do Ministério Público mira atuação do PCC no centro de São Paulo Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Até o começo da tarde, haviam sido presos dois acusados de participar da milícia: os guardas-civis Antônio Carlos Amorim de Oliveira e Renata Oliva de Freitas Scorsafava, além do homem apontado como o chefe do PCC no centro da cidade: Leonardo Monteiro Moja, o Leo do Moinho, e dois acusados de participar de seu grupo: Janaína da Conceição Cerqueira Xavier, que chegou a ser candidata a vereadora pelo PT em 2020, e Valdecy Messias de Souza. Além deles, outras cinco pessoas foram presas em flagrante. Ao todo 122 telefones celulares, 23 computadores, 78 veículos, R$ 155 mil e dez quilos de drogas foram apreendidos.

Dois guardas-civis permaneciam foragidos. A reportagem não conseguiu localizar os acusados nomeados pelos promotores ou seus defensores. Quando as primeiras suspeitas surgiram em 2022, tanto a Prefeitura quanto a secretaria informaram que iam apurar o caso.

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Em coletiva de imprensa nesta terça, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) afirmou que a operação mirou “o ecossistema criminoso” que atua no centro. Os mandados de prisão, segundo ele, não miravam o fluxo de usuários de drogas, mas o que o alimenta. “No curso da investigação, quando tem um problema generalizado de algum tempo, vai se deparar com situações de corrupção, de prevaricação e de falha no exercício do poder de polícia administrativa do Estado”, disse Tarcísio.

Questionado sobre a apuração relacionada a agentes da Guarda Civil Metropolitana, o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), afirmou que a pasta “desconhece milícia atuando” na cidade. “Não vão ser 1, 2, 3, 4 ou 5 que vão manchar a reputação de 7 mil guardas”, disse.

Ecossistema de atividades ilícitas

De acordo com o pedido de prisão e de buscas feito pelos promotores do Gaeco, a investigação constatou a existência de um “ecossistema de atividades ilícitas”. Além da milícia formada para impor a cobrança de segurança dos comerciantes e da distribuição de drogas na Cracolândia, ele inclui o comércio de peças de carros e de motos, a receptação de celulares roubados e a venda de armas em uma rede de hotéis, lojas, ferros-velhos e estacionamentos.

Por fim, foi detectada uma rede de prostituição em hotéis e uso pela indústria de reciclagem de produto fruto de trabalho infantil e de usuários de droga, que são pagos com pedras de crack e cachaça. Os promotores quebraram os sigilos telefônico e fiscal dos investigados e fizeram um histórico do enraizamento do crime na região.

“O estágio atual de deterioração e degradação moral, com violações sistêmicas a direitos humanos básicos e de numerosas práticas criminosas, constitui uma das questões mais complexas e desafiadoras ao Estado brasileiro”, afirmaram os promotores.

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Gráfico feito pelo Ministério Público explicando o chamado 'ecossistema do crime' no centro de São Paulo Foto: Ministério Público de São Paulo

Primeiro Comando da Capital e milícia praticam 13 tipos de crimes

A ação do PCC na região se iniciou com a Sintonia do Progresso 100%, o setor responsável na organização pelo tráfico de drogas doméstico. Durante as investigações, os promotores listaram 13 tipos diferentes de crimes praticados na região pelos integrantes da facção e da milícia, que vigiava até mesmo os passos da polícia, captando ilegalmente as comunicações da PM.

“A organização criminosa Primeiro Comando da Capital (...) controla não somente o fluxo de distribuição da droga na região central de São Paulo, como também influencia a dinâmica e o comportamento em relação ao uso e exploração do espaço físico, de modo a assegurar que as distintas atividades econômicas ilícitas se conectem e se retroalimentam”.

Trata-se de uma região que tem 8 vezes mais roubo do que a média da cidade. “Bem como 11 vezes mais furtos, 39 vezes mais casos de tráfico de drogas e 24 vezes mais registros de capturas de pessoas foragidas”, afirmou o promotor Lincoln Gakiya, do Gaeco.

O mais novo nicho de atuação do crime organizado descoberto pelos promotores é a milícia criada por PMs e guardas civis, que extorquiam comerciantes em troca de proteção contra a ação dos usuários de drogas da região, acusados de saques e de roubos.

Alvos iniciais

No começo, a apuração tinha como alvo o guarda civil Elisson de Assis. Ele teria montado uma empresa de segurança, a Stive Monitoramento, em nome de uma mulher. Para identificar a ligação dele com a empresa, o Gaeco usou multas de trânsito nas quais a mulher e ele apareciam como condutores do mesmo veículo. Na sede da empresa, o Gaeco apreendeu uma “lista de colaboradores de boa fé que pagaram a segurança” e a indicação da data limite para o pagamento.

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Analisando as movimentações financeiras da empresa e dos dois, os promotores identificaram a rede de guardas e policiais ligados ao grupo, com depósitos de até R$ 600 mil. Foi assim que outro personagem da suposta milícia foi identificado: o guarda civil Antônio Carlos Amorim de Oliveira, que teria movimentado recursos além de sua capacidade financeira em 2021 – cerca de R$ 3,6 milhões. Foram localizados 181 depósitos em espécie.

Para os promotores, “ele atuava no comando da milícia e que os guardas repassavam a ele o dinheiro recebido em espécie dos comerciantes”. Ao todo, foram identificados depósitos – crédito e débitos – para 23 guardas. “Verifica-se que o investigado amealhou patrimônio de todo incompatível com sua renda, incluindo um apartamento, em maio de 2020″, escreveram os promotores.

A investigação também se debruçou sobre as movimentações financeiras de outro suposto esquema de venda de proteção a comerciantes na região. “As movimentações atípicas realizadas por Renata Oliva de Freitas Scorsafava, guarda civil metropolitana, que era sócia de uma empresa de segurança com o seu marido, Luis Felipe Cavalcanti Scorsafava, soldado da Polícia Militar de São Paulo, sendo essa empresa fechada”, disseram os promotores. Aqui, o Gaeco listou depósitos para cinco GCMs, três PMs e um investigador.

“Tais condutas deixam clara que ela também é integrante da milícia encarregada por extorsões, com posterior lavagem de capitais por meio de depósitos pulverizados na sua própria conta e de terceiros”, concluíram os promotores. Os investigadores usaram ainda informações obtidas durante a Operação Corta Giro, de 2023, deflagrada para apurar a atuação de uma organização criminosa no comércio ilegal de peças de veículos e motocicletas.

Nela, os investigadores apreenderam um celular com o guarda civil aposentado Rubens Alexandre Bezerra no qual encontraram provas da participação dele na “milícia de agentes públicos que atuam na região”. Entre elas estavam imagens e mensagens relacionadas à venda de fuzis e outras armas para criminosos. Ele também venderia o dispositivo conhecido como “capeta”, usado por ladrões de carga para bloquear o sinal de rastreamento por satélite de caminhões.

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Imagem de fuzil repassada por guarda civil que oferecia a arma na região da Cracolândia Foto: Reprodução / Estadão

Ligações da milícia com o crime na Favela do Moinho

Bezerra venderia ainda detector de sinal de radiofrequência (RF), do tipo “vassourinha”. De acordo com as investigações, “tal dispositivo está sendo utilizado na Favela do Moinho, para obtenção da frequência do rádio utilizado pela Polícia Militar, possibilitando, assim, que criminosos consigam se antecipar a qualquer ação policial”. Entre os seus clientes estaria ainda o guarda civil Elias Silvestre da Silva.

“Rubens mantém com Elias uma relação estreita para a prática de crimes, o que evidencia que se conheciam da corporação e já agiam à margem da lei, valendo-se da condição de agentes de segurança para obter facilmente armas e outros objetos de crime”, dizem os procuradores. Para demonstrar a ligação deles com supostas atividades criminosas na região, os promotores transcreveram diálogos do WhatsApp.

“No dia 21 de fevereiro de 2021, Elias pergunta a Rubens se ele sabe quem faz ‘carro dublê’, respondendo este positivamente. Nos dias 3 de março, Elias volta a perguntar e, no dia 10, diz que tem um ‘cara’ que quer dar golpe de seguro e remarcar o dele. Rubens afirma que é possível, informando sobre os gastos com remarcação e documentação.” Ele disse ao colega que a operação ficaria em R$ 690. E alertou: “Mas só até o dia 28″.

Conversa entre os acusados sobre golpe no seguro e sobre remarcação de chassis de veículos Foto: Reprodução / Estadão

Rubens também venderia dispositivos para clonar o sinal de alarmes de carros e controles remotos de portões. Ele é apontado como o dono de dois estacionamentos na Avenida Rio Branco. Os promotores então concluem: “Há fundados indícios da existência de um grupo criminoso organizado, atuando na região central de São Paulo, dedicado ao comércio ilegal de armas e atividade de milícia, com a prática de extorsões contra comerciantes, cuja conexão está sustentada no relacionamento financeiro e comunicacional entre os investigados nominados.” E assim se encerra o capítulo sobre a milícia no caso.