- O que vai querer, sócio? - Uma de morango, sócio. - Saindo uma de morango, câmbio. O diálogo que embalou gerações de boêmios paulistanos que frequentaram o pequeno bar de Pinheiros especializado em batidas perdeu seu principal interlocutor. Morreu na semana passada, aos 81 anos, Narciso Moreno, fundador do folclórico boteco conhecido como "C. do padre". O nome oficial - "Bar das Batidas" - só mesmo numa pequena placa luminosa e - por formalismo ou pudor - nos guias de bares dos jornais e revistas. No mundo real, era mesmo conhecido pelo nome sacana, que (como todo bom apreciador dos prazeres etílicos da cidade sabia) se originou da localização do bar: uma esquina aos fundos da igreja do Largo de Pinheiros, que também ninguém chama pelo nome oficial, Nossa Senhora de Mont Serrat. Um dos bares mais antigos da cidade ainda em atividade tocado pelo mesmo dono, foi fundado em 1957, quando bondes e cavalos ainda circulavam pela região. Ao longo dos mais de 50 anos no balcão onde preparava as deliciosas batidas de frutas, o "Sócio", como chamava a todos os fregueses e como era chamado por todos, viu passar por ali boêmios de todas as espécies: universitários que ainda usavam gravatas, as primeiras minissaias, hippies com calças boca-de-sino e cabelos compridos, coloridos new-waves, playboys, mauricinhos e patricinhas. Seja pelo nome, pelas saborosas batidas, pela intimidade que concedida no tratamento aos fregueses, pelo cenário composto de velhas garrafas e peças de frios cobertos por uma espécie de lava vulcânica acumulada pelo tempo, como aqueles objetos achados nas ruínas de Pompeia, ou por tudo isso junto, tornou-se um clássico da noite de São Paulo. A preparação das bebidas - que por muitos anos foi feita junto com o irmão Mario, falecido há alguns anos - seguia um ritual. Após anotar mentalmente os pedidos de vários fregueses, sempre com "sócio" na pergunta e "câmbio", do jargão das conversas por rádio na resposta, seguia-se o enfileiramento dos copos para o início de um pequeno show. Primeiro um malabarismo com o gelo e as pedras sendo atiradas com precisão aos copos. Depois vinha a seleção dos ingredientes, que ficavam dispostos numa prateleira atrás do balcão: das garrafas plásticas saíam os sucos de frutas batidas previamente naqueles liquidificadores bem antigos. Das garrafas de bebidas alcoólicas estrategicamente viradas, de modo que o rótulo não ficasse visível, vinha a combinação que temperava as batidas. O mistério de não saber exatamente do que se tratava o coquetel era um dos charmes. Para finalizar, os canudinhos atirados no líquido consistente e a distribuição aos fregueses: "morango, câmbio..."; "côco, câmbio..."; "maracujá, câmbio..." Nos últimos tempos, por causa da idade e os problemas de saúde, já não havia mais a agilidade para o malabarismo e nem a rapidez para preparar várias batidas ao mesmo tempo. Mesmo com um câncer diagnosticado há cinco anos, o Sócio deu expediente no balcão até 15 dias antes da morte, na segunda-feira de carnaval. Fazia questão de preparar pessoalmente as batidas e os sanduíches - o de calabresa era o mais tradicional - que fizeram a fama do local. Apesar da proximidade, a missa de sétimo dia do Sócio, no domingo, 1º, não foi na igreja que serviu de batismo ao boteco, mas em outra pouco mais adiante: a da Nossa Senhora Mãe do Salvador, que também não é conhecida por seu nome oficial, mas pelo apelido, a "da Cruz Torta". Outros desses nomes que causam interrogação na primeira audição, mas que instantaneamente se incorporam ao vocabulário após a constatação de que não há nome mais apropriado. Assim como Sócio, que completaria 82 anos hoje. Câmbio final.
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