Uma operação da polícia ao longo do fim de semana deixou ao menos oito mortos em supostos confrontos no Guarujá, no litoral de São Paulo. A ação foi desencadeada após o assassinato na quinta-feira passada de um soldado da tropa de elite da PM do Estado. Para David Marques, pesquisador e coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, “fica bastante claro” que a operação teve por finalidade vingar a morte do soldado Patrick Bastos Reis, de 30 anos.
Marques ressalta que é “inadmissível” a morte de um agente de segurança, mas acrescenta que cabe à Justiça, e não aos colegas de farda, punir os responsáveis. O governo de São Paulo defendeu a legalidade das ações e disse que a operação seguirá. Um suspeito de ser o autor do disparo contra o soldado se entregou à polícia e foi preso neste domingo na cidade de São Paulo. Abaixo, leia a entrevista completa com Marques.
O governador Tarcísio de Freitas disse nesta segunda-feira que “não houve excesso” na operação da PM no Guarujá, que resultou em pelo menos oito mortes. Como você vê a ação?
Uma operação com um número tão elevado de mortes - que a gente ainda não sabe se são oito ou se são dez - com certeza é problemática; não pode ser considerada uma operação de sucesso. A gente sabe que ela foi desencadeada tendo em vista a morte do soldado Reis, só que isso (a operação) acontece na região em que ele foi vitimado, e o suspeito de ter sido o atirador, o assassino, foi preso na capital. Então, isso nada tem a ver com direcionamento de uma operação policial com foco no crime que foi cometido.
Fica bastante claro que a polícia estava querendo algum tipo de revanche ou de vingança com relação à morte do soldado Reis, e foi atrás de fazer isso por meio dessa operação, essa espécie de operação saturação.
A operação foi desencadeada após a morte de um policial da Rota na semana passada. A morte de agentes no exercício da função tem sido vista em diferentes estados. O que pode ser feito?
É evidente que a gente tem que lamentar muito a morte do policial em serviço, isso é algo inadmissível. Ele é representante do Estado, ele foi colocado pela sociedade nessa função, e não podemos esquecer isso. Mas também é importante lembrar que, dentro de um contexto democrático e de uma sociedade que possui um conjunto de leis que baliza a sua própria Justiça, não cabe espaço para operação vingança dentro da atuação das forças policiais do Estado. Cabe fazer o que houve com esse suspeito: ele se entregou, foi preso e vai ser entregue à Justiça para devida responsabilização. Vai ser apurado se foi de fato ele que fez o disparo, existe um devido processo legal a partir de agora.
Mortes ocorridas em confronto também devem passar por investigação da Polícia Civil. Essas apurações costumam ser efetivas?
A gente espera que sejam apuradas as condições dessas oito ou dez mortes que ocorreram nessa operação. E para que essa apuração, que precisa ser célere, funcione bem, ela precisa de um acompanhamento da Polícia Civil, a gente tem um papel da polícia técnico-científica do Estado, além do papel muito importante do Ministério Público nessa investigação.
O MP precisa estar muito a par dessas investigações, para que a sociedade paulista possa entender quais daquelas mortes ocorreram em confronto, o que dali é fruto de uso abusivo da força policial, ou eventualmente até de execuções extralegais.
Se a gente olhar retrospectivamente, no caso de São Paulo a gente tinha passado por um período de redução de mortes decorrentes de intervenção policial, sobretudo a partir de 2020, muito em função de um programa de controle do uso da força policial, que tinha entre seus principais veículos as câmeras nos uniformes policiais e a gravação ininterrupta de sua atuação, além de outros mecanismos, como comissões de apuração que envolviam oficiais de outros batalhões.
A gente fica muito preocupado que os números de 2023 apontem uma reversão nesses números, além de uma possível inflexão no discurso da atuação policial. A gente tinha na reta final da gestão anterior um discurso muito mais sóbrio.
Mas, historicamente, investigações sobre mortes decorrentes de intervenção policial têm sido efetivas?
Não. Historicamente a gente tem um grande problema com apuração dessas mortes, seja por problemas históricos que a gente tem sobre a apuração de homicídios em geral - por falta de efetivo, dificuldade da polícia técnica -, seja às vezes por dificuldades (impostas) pela própria Polícia Militar, por remover os corpos ou alterando a cena.
Além disso, não existe prioridade para isso; dentro de tudo o que a Polícia Civil tem pra fazer, isso acaba ficando de lado. Há uma desvalorização dessas mortes. Isso associado a um contexto em que o Ministério Público nem sempre está próximo a esses assuntos. Depende muito do interesse de algum promotor para que tenha condução mais rigorosa. E, eventualmente, quando chega ao Tribunal do Júri, muitos policiais acabam absolvidos por conta da defesa de sua ação com base no histórico pregresso das vítimas, dizendo que eram bandidos... É um contexto bem difícil a responsabilização de policiais
Nos últimos anos a região da Baixada Santista tem registrado forte presença de facções criminosas. O que tem levado esses grupos para lá?
Há um cenário no Estado de São Paulo que tem se caracterizado nos últimos 20 anos por uma certa hegemonia nas dinâmicas criminais e organizadas, sobretudo relacionadas com o narcotráfico, que são centralizadas pelo Primeiro Comando da Capital (PCC).
Nos territórios onde essa organização tem influência, eles fazem a gestão, além dos negócios criminais, do aspecto de disciplina. Especificamente em relação à baixada santista, o que tem de diferente é a proximidade com o Porto de Santos. É um equipamento que tem grande atratividade pela capacidade de trânsito de mercadorias para qualquer lugar do mundo, e para o PCC para fazer circular suas mercadorias, sobretudo drogas.
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