No semáforo, o motorista toma um susto ao ver passar por ele, em silêncio absoluto e alta velocidade, a moto de um entregador. O único ruído é a batida da tampa do baú. Pouco depois, ao desviar de um ciclista, se surpreende com o motor dois tempos que ressoa alto pela rua. Em São Paulo, o trânsito parece estar com os sinais trocados: bikes motorizadas roubam das motos e scooters, agora cada vez mais elétricas, o posto de campeãs do barulho.
A boa notícia para a qualidade do ar paulistano, e para a descarbonização da frota, é impulsionada por startups de mobilidade que promovem a adesão, principalmente, de entregadores.
Relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, de 2022, alerta para a necessidade de reduzir em 45% a emissão de gases de efeito estufa até 2030, para limitar o aquecimento global em 1,5ºC acima dos níveis pré-industriais. A descarbonização dos meios de transporte é parte fundamenta, diz o documento.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que 7 milhões de pessoas morram por ano no mundo por consequências da poluição do ar.
A frota de motos elétricas no Brasil, incluindo scooters, aumentou cerca de 346% em 2022, segundo a Fenabrave. No ano passado, cerca de 7 mil unidades foram emplacadas no País, percentual pequeno ante o 1,3 milhão do total de motos novas registradas no ano, mas crescente.
Isso explica porque é cada vez mais comum ver na cidade, entre as motos de empresas como as startups Vammo ou Mottu, os modelos elétricos. Ninguém pode comprar uma nessas empresas, apenas alugar -por valores de até menos de R$ 50 reais por dia.
Em seu primeiro ano de operação eram cerca de mil unidades da Mottu. Atualmente, são mais de 5 mil, entre elétricas e movidas a gasolina. Já a Vammo tem atualmente 200 unidades rodando por São Paulo, todas elétricas. A diferença para a outra plataforma é que as motos e scooters não podem ser recarregadas em casa, mas apenas em um dos oitos postos da empresa espalhados pela capital e Santo André, na região metropolitana.
Segundo o CEO da empresa, Billy Blaustein, a capital é um mercado enorme a ser explorado. “O mercado de motos está crescendo muito e este é um bom jeito de eletrificar a frota”, afirma.
Plataformas de entregas como o IFood também aderiram à eletrificação. A empresa facilita a compra do modelo EVS Works, da brasileira Volts, por entregadores. O valor chega a R$ 15 mil e tem autonomia de 180 quilômetros na cidade.
As facilidades aliadas ao preço do combustível também impulsionam o crescimento. “Facilita muito, só de não ter que pagar o combustível já é um ganho”, diz o entregador Admilson Conceição. “É dinheiro que sobre no fim do mês.”
Para Blaustein, os serviços de aluguel de motos elétricas são o primeiro passo para uma frota elétrica. “A plataforma oferece oportunidade para as pessoas saberem se um veículo elétrico funciona na vida deles. A eletrificação virá em duas rodas.”
O trânsito de São Paulo e sua vida
As vantagens ambientais das motos elétricas, no entanto, não são tão claras, afirma o professor da Faculdade de Medicina da USP Paulo Saldiva, referência nas pesquisas em saúde e poluição atmosférica. “Se analisar o clico de vida inteira do produto e quanto ele emite, a duração, a energia para produzir a bateria, o tipo de material, de onde vêm o lítio e os componentes da bateria, antes (de começar a rodar) teve muita emissão de CO2″, afirma. “De onde vai tirar essa eletricidade? Se vier de usina a carvão, será um motor a carvão.”
Outro problema é levantado pelos próprios profissionais das ruas. O mesmo motivo que surpreende os motoristas de carros, o silêncio, também os deixa com medo no trânsito de São Paulo. Embora entusiasta da tecnologia das motos elétricas, o entregador Willian Saledone diz que o risco pode ser maior.
”Ela (a moto elétrica) tem vantagens em relação ao preço dos combustíveis, mas a desvantagem é que uma moto convencional faz barulho, quando se aproxima é muito mais notada, não faz barulho algum, o que torna um risco para o próprio condutor”, diz Saledone. “Se a moto comum já tem riscos, imagine uma que não faz barulho?.”
Mais do que imaginar, o taxista Donato Ferenandes pagou por isso, apesar de querer ver mais motos elétricas nas ruas por terem velocidade máxima menor (algumas delas). “Eu estava sobre o viaduto da Lapa (zona oeste) e uma veio, não conseguiu parar a moto, que é dessa elétrica, e bateu no meu carro quebrando a minha lanterna. Fiquei no prejuízo, pois ele não me pagou”, afirma.
Entregas aumentaram
Se o problema fosse só o barulho, João Pereira Ananias, de 54 anos, estaria seguro. Entregador há três anos na região central de São Paulo, o peso das dez horas diárias de pedaladas começou a ficar demais. Há dois anos e meio, comprou um quadro de bicicleta de ferro por R$ 90, rodas, pneus e um kit de motorização, por R$ 650. Arrumou um pisca-pisca e saiu pedalando, ou melhor, pedalando de vez em quando para ajudar o motor de 25 cilindradas nas ruas mais íngremes.
O barulho que o protege é também o mesmo que irrita moradores da região central. “Essa ainda é silenciosa. As (bikes) que fazem barulho são aquelas que tiram o escapamento para andar mais”, diz Ananias. “Mas mesmo assim tem gente que reclama.”
Desde que começou a rodar com a bike com motor a combustão, o trabalho, a área coberta por Ananias e a renda do entregador cresceram. “Se pedalando faço dez entregas por dia, com a bicicleta motorizada, faço 17″, diz Ananias. “Minha meta é fazer R$ 230 por dia, quando faço R$ 200 está bom. Trocando um dia pelo outro, atinjo a meta no mês, gastando R$ 9 de gasolina por dia.”
De acordo com Saldiva, há problemas de saúde (ocupacional) associados ao uso das bikes motorizadas. “O tanque fica no rosto da pessoa”, afirma. “A queima incompleta libera hidorcarbonetos e particulas. Individualmente esse tipo de bicicleta emite mais do que um carro, que tem catalisador, regulagem eletrônica, etc... Há uma prolferação de motores a dois tempos, mas não foram feitos para para andar na rua ou ficar montado em cima deles.”
Além disso, não basta fazer como Ananias. As bicicletas motorizadas têm regras e prazo para que os condutores se regularizem. Dirigir um modelo com motor a combustão de até 25 cilindradas exige que ela esteja emplacada. Além disso, o ciclista precisa de Autorização para Condução de Ciclomotores (AAC) ou da Carteira Nacional de Habilitação (CNH).
A AAC tem custo menor do que a CNH, pois pode ser obtida com 20 horas/aula de curso teórico e 10 horas/aula de aprendizado prático a custo médio de R$ 1 mil. A habilitação categoria B exige 65 horas/aula entre teoria e prática, que custam praticamente o dobro da autorização para condução.
De acordo com o Detran-SP, as regras para esse tipo de veículo são estabelecidas pela resolução 996/2023 do Conselho Nacional de Trânsito (Contran), publicada em 15 de junho. As normas entraram em vigor em todo o País no início deste mês. A nova legislação trata sobre a regulamentação de ciclomotores, bikes elétricas e equipamentos de mobilidade individual autopropelidos.
“Importante ressaltar que compete aos fabricantes, órgão alfandegário e/ou importadores a realização de pré-cadastro no Registro Nacional de Veículos Automotores (Renavam) dos ciclomotores fabricados ou importados a partir da entrada em vigor da resolução”, diz o Detran-SP.
O órgão afirma que quanto ao registro e licenciamento dos ciclomotores, os documentos necessários são estabelecidos pelo Contran e a adequação às regras tem prazo. “Os que não possuem o Certificado de Adequação a Legislação de Trânsito (CAT) e código específico de marca/modelo/versão fabricados ou importados até a data de entrada em vigor da resolução devem providenciar a inclusão desses veículos junto ao Renavam, no período entre 1º de novembro de 2023 até 31 de dezembro de 2025″, afirma o Detran-SP. “Após essa data, os veículos que não fizerem o registro ficarão impedidos de circularem em via pública.”
A nova legislação definiu também que tanto bicicletas elétricas quanto equipamentos de mobilidade individual autopropelidos não necessitam de registro, licenciamento e emplacamento. Porém, estabelece equipamentos obrigatórios para a sua circulação nas vias.
“Ao pedalar, o ciclista não pode usar acessórios que atrapalhem seus sentidos, como, por exemplo, fone de ouvido, e deve sinalizar com o braço sempre que for mudar de faixa ou virar à esquerda ou à direita para entrar em outra via”, afirma o órgão. “Itens de segurança, como capacete (sempre afivelado), espelho retrovisor, olho de gato e sinalizador com luz piscante (para circular à noite), são obrigatórios. Além disso, o ciclista tem que circular no mesmo sentido do trânsito, nunca na contramão. Em calçadas ou na faixa de pedestres, tem que descer da bicicleta e empurrá-la.”
Valem também as regras para vias públicas, como respeitar a distância mínima de 1,5 m de outros veículos.
“Ao circular próximo a meios de transporte grandes, como caminhões ou ônibus, deve redobrar a atenção, pois esse tipo de veículo possui pontos cegos que, muitas vezes, impedem o motorista de visualizar a bicicleta durante o trajeto”, diz o Detran-SP.
Essas são as mesmas regras que valem para uma bike elétrica. Então por que não optar pelo modelo mais limpo? “Um amigo comprou uma por R$ 9 mil, não tem como”, diz Ananias. Seu colega, Saledone vai na mesma direção. “Essa questão do meio ambiente, pra falar a verdade, acaba ficando em segundo plano. A gente acaba escolhendo o que cabe no nosso bolso”, afirma.
Para Saldiva é impossível dissociar o fenômeno dos aspectos sociais e econômicos. “Aqueles que não alugam as bikes no centro da cidade, vem de suas casas pedalando. Muitas vezes, pedalam 80 km, 90 km 100 km por dia. É como se fosse uma etapa do Tour de France com uma cesta de comida nas costas”, diz, “O problema não é só de mobilidade, chama-se vulnerabilidade social e desemprego.”
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