O Ministério Público de São Paulo (MP-SP) ingressou com ação civil pública na terça-feira, 28, para que a Prefeitura da capital paulista suspenda temporariamente a política de incentivos urbanísticos e fiscais para a construção de apartamentos voltados à população de baixa renda. O pedido de liminar ocorre após mais de dois anos de investigação, na qual a Promotoria identificou indícios de fraude e “falta de controle” na disponibilização do benefício, com possível “enriquecimento ilícito” de construtoras.
A apuração do MP envolve a construção de edifícios voltados à Habitação de Interesse Social (HIS) — famílias de um a seis salários mínimos — e Habitação de Mercado Popular (HMP) — até dez salários mínimos —, incentivados em lei municipal.
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Ao Estadão, a gestão Ricardo Nunes (MDB) aponta ter instaurado 200 processos, os quais abrangeriam 24,6 mil unidades habitacionais, e diz que teria feito mais de 14 mil notificações. Também afirma que a revisão do Plano Diretor, em 2023, teria reforçado regras para garantir que essas habitações sejam destinadas a famílias de baixa renda, exigindo comprovação da faixa de renda e averbação da tipologia do imóvel por 10 anos.
Em setembro passado, contudo, o então secretário municipal de Habitação, Milton Vieira, admitiu ao MP que a pasta não teria “estrutura material e humana para desempenhar tal tarefa”.
“Há absoluta ineficiência administrativa em controlar fraudes”, avalia. A Promotoria tem ressaltado que nenhuma construtora foi punida em uma década de política de incentivo.
A gestão Nunes tem sido notificada sobre supostas irregularidades ao longo de todo o inquérito, aberto em 2022. Em dezembro, teria informado que iria deflagrar uma licitação para terceirizar a fiscalização.
Desde o Plano Diretor de 2014, empreendimentos voltados a esse tipo de apartamentos têm descontos e até isenção de outorga onerosa (principal taxa cobrada do mercado imobiliário, que pode chegar à casa de alguns milhões em bairros valorizados). Há, ainda, diversos incentivos construtivos atrativos para o setor — que favorecem, em especial, uma verticalização mais acentuada.
À imprensa, Nunes disse que irá atuar contra irregularidades nesse âmbito. “A gente está falando de ato criminoso, que deve ser apurado”, disse durante agenda pública nesta quarta-feira, 29. “A Prefeitura vai multar e cobrar, nem que seja judicialmente. Se vendeu para alguém fora da faixa, vai ter que pagar a outorga”, acrescentou.
Não há número total de quantos imóveis receberam o incentivo para HIS e HMP desde a lei de 2014. Levantamento parcial da Prefeitura indica que, de agosto de 2019 até outubro de 2024, foram mais de 446,5 mil unidades beneficiadas. O montante total abrange 143,3 mil construídas e 303,1 mil licenciadas ou em fase de construção, mas não se sabe o quanto não respeitou a legislação.
O MP identificou exemplos de provável destinação desses apartamentos para proprietários e locatários de maior renda. Há casos de microapartamentos construídos como HIS anunciados para aluguel mensal por mais de R$ 3 mil e vendidos a mais de R$ 600 mil em plataformas online, por exemplo.
“De forma deliberada ou não, (a Prefeitura) vem negligenciando seu dever legal de fiscalizar e controlar sua própria política habitacional, deixando de garantir que seu público-alvo seja atendido e de punir os infratores (construtoras e terceiros adquirentes)”, aponta o MP.
“A confessada falta de controle da política pública está possibilitando, por um lado, que construtoras que descumprem a legislação aplicável enriqueçam ilicitamente e, por outro, que as famílias vulneráveis (público-alvo) sejam preteridas no acesso à moradia.”
Não se sabe, também, o quanto de recursos públicos se abriu mão para o incentivo a esse tipo de construção. A Prefeitura disse nesta quarta que estaria fazendo os cálculos.
“A falta dessas informações impede ao gestor controlar a eficiência e o custo da própria política. (...) Não é possível saber até este momento se os incentivos concedidos às empresas privadas são proporcionais às moradias produzidas e efetivamente destinadas às famílias de baixa renda”, aponta o MP.
Parte dos casos em investigação envolve bairros nobres e de classes média e alta da cidade, como Vila Madalena e Itaim Bibi. Um exemplo destacado pela Promotoria, ao ingressar com a ação, é de unidades anunciadas a até quase R$ 1,5 milhão na Vila Olímpia — o que foi revelado pelo portal Uol.
“Essa privatização dos lucros e socialização dos prejuízos é resultado de uma política pública mal formulada e que pode estar gerando vultosos prejuízos ao erário, sendo também fruto, inexoravelmente, da falta de avaliação técnico financeira. Nesse contexto, questões como eficácia, economicidade e eficiência jamais foram verificadas pelo requerido”, diz o MP. “É certo que vem ocorrendo em larga medida”, também assinalou.
‘Fake HIS’ e ‘padrão reiterado de ilegalidades’
Também é mencionada uma expressão do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (Labcidade) da USP: “fake HIS”. Os pesquisadores da Faculdade de Arquitetura de Urbanismo têm falado em “social housing washing”, com possível maquiagem que daria indevida aparência de produção de moradia popular a uma política que incentivou imóveis utilizados por outra parcela da população.
Fala-se em “grande número de casos fraudulentos detectados pelos serviços extrajudiciais”. “O padrão reiterado de ilegalidades na implementação da política pública de produção privada de unidades HIS e HMP já foi detectado, inclusive, pelos Cartórios de Registro de Imóveis de São Paulo que, ao analisarem pedidos de registro de escrituras de compra e venda, verificaram a existência de fraudes”, aponta o MP.
No ano passado, após solicitar notificação dos cartórios paulistanos, a Promotoria recebeu, em menos de dois meses, mais de 560 casos de imóveis e empreendimentos suspeitos. Além disso, foram identificadas pessoas físicas e jurídicas com mais de um apartamento com esse incentivo, em desacordo com a lei.
“Unidades colocadas à venda pelo mercado imobiliário como HIS e HMP têm metragem (em geral) entre 24 e 30 m², não raras vezes por valor que ultrapassa R$ 20 mil por metro quadrado. Essa tipologia e preço evidenciam-se claramente, em princípio, como sendo incompatíveis com famílias que recebem de três a seis salários mínimos”, aponta o MP em um trecho da ação.
Na ação, o MP compara que o Plano Diretor de 2014 fez uma grande alteração na política de produção privada de HIS na cidade, ante a legislação anterior, de 2002. Se, antes, essa possibilidade envolvia convênios e consórcios junto ao poder público, passou a não ter uma exigência de regulação de oferta e demanda pelo Município e, ainda, ampliou a gama de incentivos.
“O desenho da política municipal destinou ao mercado a tarefa de controlar se indivíduos e famílias que adquirem as unidades de HIS estão ou não inseridos adequadamente nos critérios de renda estipulados pela legislação”, argumenta a Promotoria.
Também assinala que os incentivos atuais estariam “direcionados apenas ao agente produtor de HIS – e não aos beneficiários”. “Condicionam (viabilizam) a construção a um custo de empreitada bastante inferior, trazendo maior rentabilidade ao incorporador, nem sempre alcançando, porém, o objetivo da norma, que é o de aumentar a oferta de moradias a preços condizentes aos destinatários do citado programa social.”
O que o MP defende?
No texto, o Ministério Público aponta que a política de incentivo precisa ser suspensa temporariamente por ter sido “mal desenhada”. Descreve, também, a “precariedade no exercício de seu poder fiscalizatório” pela gestão municipal.
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Por isso, argumenta que a política deve ser suspensa até o desenvolvimento de um “sistema seguro e eficiente de fiscalização pública de adquirentes e locatários” e a definição de controle de preços de venda de unidades e locações.
“Não deve continuar sendo implementada até que o poder público adote novos mecanismos de controle e aferição de resultados, visando corrigir seu rumo ou, então, descontinuá-la”, destaca. “Quando o desenho da mesma política permite que desvirtuamentos passem desapercebidos como regra, é imperioso que todo esse desenho seja revisto com máxima presteza.”
A petição é assinada por Marcus Vinicius Monteiro dos Santos, Camila Mansour Magalhães da Silveira, Roberto Luís de Oliveira Pimentel e Moacir Tonani Junior, promotores de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital. Na avaliação deles, a situação resulta em danos sociais.
“Um universo indeterminado de famílias pobres foram impossibilitadas de ter acesso à moradia por conta dos valores exorbitantes estipulados, unilateralmente, pelo mercado imobiliário para aqueles imóveis”, assinalaram. “Está servindo para beneficiar (em grande parte) construtoras e pessoas de alta renda.”
Em resumo, o MP aponta os seguintes problemas em relação a essa política pública:
- inexistência de fiscalização se as unidades de HIS ou HMP estão sendo alienadas ou locadas para as famílias que se enquadram nas respectivas faixas de renda;
- falta de controle público dos preços das unidades habitacionais produzidas pelo setor privado a partir dos incentivos públicos concedidos;
- ausência de controle sobre o volume de incentivos públicos concedidos;
- não punição de infratores (empreendedores e adquirentes dos apartamentos);
- inexistência de indicadores de desempenho;
- desconhecimento sobre os efeitos da política municipal.