O Muralha Paulista, programa de câmeras de monitoramento do governo de São Paulo, prevê utilizar o recurso do reconhecimento facial para identificar foragidos e desaparecidos apenas em imagens captadas em eventos fechados e na região da Cracolândia, no centro da capital, segundo o desenho montado pela Secretaria da Segurança Pública (SSP) do Estado.
Em outros locais, também haverá captação de imagens por dispositivos públicos e privados incorporados no programa, mas sem a possibilidade de usar biometria facial. A ideia é ter em larga escala a inteligência artificial apenas para identificar placas de carros roubados e alertar sobre gestos suspeitos - se alguém, por exemplo, saca uma arma de fogo em via pública. Ainda não há estimativa de quantos equipamentos devem ser incorporados.
É um desenho diferente do que tem o programa Smart Sampa, da Prefeitura, em que o reconhecimento é usado de forma mais ampla. Como mostrou o Estadão, a iniciativa municipal já tem 14 mil câmeras, e o reconhecimento facial é usado nas imagens captadas por todas elas para tentar identificar desaparecidos ou procurados pela Justiça. A gestão municipal diz que a abordagem só ocorre quando há 90% de compatibilidade entre a captação e o banco de dados.
A minuta do decreto do Muralha, à qual o Estadão teve acesso, foi recém-finalizada, após cerca de um ano e meio de discussões. Trata-se de um trabalho conjunto do Centro Integrado de Comando e Controle (CICC) e da Subsecretaria de Acompanhamento de Projetos Estratégicos (Sape), ambos subordinados à SSP.
Tecnicamente, o Muralha está dentro do que a secretaria define como Política Estadual de Controle da Mobilidade Criminal, que, entre outros pontos, visa a combater o trânsito de condenados pela Justiça por São Paulo. A iniciativa mira 18 tipos de problemas criminais definidos pelo decreto, como crimes violentos e tráfico de pessoas.
Agora, o decreto espera aprovação do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), que ainda pode fazer ajustes finais. A expectativa é de que o programa seja apresentado ainda neste mês. Só depois é que definições mais técnicas, como formas de abordagem ou diretrizes para incorporar câmeras do setor privado, devem avançar por meio de resolução.
“O reconhecimento facial será usado só em ambientes fechados, em especial praças e eventos, em que as pessoas compram o ingresso ou tem algum nível de controle no acesso, já que a gente precisa informar que o evento vai ser feito, ou as áreas especiais de segurança pública assim definidas por lei, que é o caso da Cracolândia”, disse ao Estadão João Henrique Martins, coordenador-geral do CICC.
Ele afirma que a pasta montou essa definição com base na Lei Estadual 17.183 de 2019, a Política Estadual sobre Drogas, que determinou que o Executivo paulista deve fazer “o monitoramento ativo das cenas de uso de drogas”. Segundo Martins, trata-se de enquadramento que hoje, em maior grau, só poderia ser aplicado na Cracolândia, concentrada na Rua dos Protestantes, em Santa Ifigênia.
Teste foi feito no Autódromo de Interlagos
No caso dos ambientes fechados, a ideia é usar só imagens captadas em espaços que permitam anuência prévia das pessoas que lá estão. No fim do ano passado, com o Muralha em testes, a Polícia Civil prendeu dez foragidos em uma ação no Autódromo de Interlagos, na zona sul, durante o Grande Prêmio São Paulo de Fórmula 1. Os detidos eram alvo de ordens judiciais de prisão, tanto por condenação quanto por decisão cautelar, por crimes como roubo e até pedofilia.
Conforme a secretaria, as medidas levam em conta a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que define parâmetros técnicos para o reconhecimento de pessoas.
Martins diz que o projeto foi desenhado para que mesmo dados biométricos de suspeitos, por exemplo, não sejam salvos pelo sistema, uma vez que a prática que pode reforçar vieses racistas. Ele acrescenta que o reconhecimento só pode ser usado para tentar fazer correlação com registros no banco de dados de desaparecidos, de foragidos pela Justiça e de criminosos contra quem há alguma medida protetiva.
“O foco do Muralha Paulista não é expandir o reconhecimento facial, mas, sim, expandir a integração de dados sobre o mesmo evento”, diz Martins. Na avaliação dele, hoje há dispersão das informações, o que dificulta o trabalho das polícias. A ideia é unir dados, por exemplo, de chamados do 190, do Disque Denúncia e de boletins de ocorrência, até para definir mais precisamente os pontos de atenção.
Uma vez que o Muralha estiver em vigor, os alertas gerados pelas câmeras devem chegar às equipes do Centro Integrado de Comando e Controle, na região central de capital. Serão os profissionais que atuam por lá os responsáveis por avaliar e distribuir esses informações para equipes em atuação nas ruas ou de investigação.
“Se a câmera identificar um comportamento criminal, como alguém quebrando o vidro para pegar celular dentro de um carro ou sacando arma na saída do metrô, a imagem imediatamente vem para o CICC para um humano analisar”, diz Martins. Conforme a minuta, compõem as soluções de inteligência artificial do programa softwares e códigos fontes próprios, desenvolvidos sob demanda da secretaria.
O documento aponta ainda que, além da pasta da Segurança, podem ser usuários de informações geradas pelo programa, por meio de convênio ou termo de cooperação, outras secretarias ou órgãos públicos, além do Ministério Público de São Paulo. Os níveis de acesso dependerão dos termos firmados com cada órgão.
Na semana passada, a minuta do decreto foi apresentada a representantes de entidades que manifestaram preocupação com a criminalidade, como as federações das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e do Comércio de Bens, Serviços e Turismo de São Paulo (Fecomercio). Participaram também entidades que cobram melhorias nas buscas por desaparecidos e no combate ao tráfico de pessoas, como a Exodus.
‘Falso positivo’ é desafio no uso da inteligência artificial
Para Daniel Edler, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), ainda é difícil avaliar o uso do reconhecimento facial pelo Muralha Paulista sem entender em detalhes como o sistema funcionará na prática. “Mas, o que conheço de padrão do mercado, é que existem ainda muitos problemas quando a tecnologia não é usada em um espaço controlado”, diz ele. “Talvez seja por isso que estejam filtrando mais os locais.”
Além disso, o uso da inteligência artificial para identificar atividades suspeitas tem desafios técnicos, sobretudo pelas dimensão do projeto. “O padrão de comportamento para identificar um roubo de carro, por exemplo, não é tão óbvio. Em geral, o que esses sistemas fazem é gerar muito ‘falso positivo’.”
Como o programa deve envolver em várias frentes, incluindo a perspectiva de integração com as câmeras corporais dos policiais militares, também deve haver um trabalho para filtrar quais dados são úteis. Edler relembra que a inteligência artificial para reconhecer ações suspeitas era uma promessa já do Detecta, sistema de monitoramento implantado há uma década ainda na gestão Geraldo Alckmin (então no PSDB), mas que avançou em menos funcionalidades do que as previstas originalmente.
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