Quatro irmãos negros que sofreram um despejo na infância recebem o terreno de volta após quase 60 anos. Agora, reunidos no quintal da antiga moradia e embalados pelas lembranças, eles precisam decidir o que fazer. A peça Bom dia, Eternidade, em cartaz no Sesc Consolação, aborda a passagem do tempo com um recorte especial: o envelhecimento das pessoas negras.
Em cena, uma banda de quatro músicos com mais de 60 anos contracena com o elenco da companhia O Bonde. Com dramaturgia de Jhonny Salaberg e direção de Luiz Fernando Marques Lubi, o espetáculo vive o presente, olhando para as migrações, contos, teses, lutas e tudo o que constitui a sociabilidade dos corpos negros e velhos.
“A ideia do Bonde era fazer uma peça sobre a velhice das pessoas negras. A pesquisa trazia estatísticas de uma realidade dura. Aí nasce o desejo de uma resposta com utopia, uma vontade de mostrar as vitórias, possibilidades de outros percursos”, diz o diretor. “Estamos construindo uma grande utopia, em que os negros envelhecem de forma saudável e digna”, comenta o ator Filipe Celestino.
O título da peça, por sua vez, é uma referência direta ao filme de Rogério de Moura, produzido em 2010. “Criamos uma relação afetiva com essa produção, mas dela só pegamos emprestado o nome. Nossa dramaturgia não se assemelha com o que é contado na obra audiovisual”, detalha Lubi.
A realidade dura do envelhecimento negro no Brasil, citada por Lubi, está retratada, por exemplo, na pesquisa “Envelhecimento e desigualdades raciais”, realizada pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e o Itaú Viver Mais. Os dados apontam desigualdades no envelhecimento de pessoas negras e brancas em São Paulo, Salvador e Porto Alegre, capitais com altos índices de envelhecimento populacional.
Metade das pessoas negras com mais de 50 anos considera difícil ou muito difícil pagar as contas; entre as brancas, esse percentual é de 44%. Na saúde, negros acessam 16% menos os serviços privados. Há diferenças também na inclusão digital: negros acessam 14% menos a internet que os brancos.
A música como protagonista no palco
O texto de Bom dia, Eternidade é um conjunto de fragmentos, e o público gentilmente está convidado a juntá-los. Histórias reais e ficcionais se misturam, embaralhadas pelo tempo. Conforme redescobrem objetos afetivos, os personagens se descortinam. “Nossa intenção é coletivizar os sujeitos do espetáculo, estamos ressoando e representando muitas outras numa denúncia ampla: o não envelhecimento digno da população negra no Brasil”, afirma o diretor.
A música é protagonista. Canções de Fernando Alabê, Djavan, Tim Maia, Jorge Aragão, Roberto Mendes Barbosa, Luiz Alfredo Xavier, Jorge Ben Jor, Lupicínio Rodrigues e Johnny Alf norteiam a narrativa. “A musicalidade aponta o resgate de cancioneiro e gêneros musicais difundidos entre os anos 1950 e 1980 mais elementos da cultura afrodiaspórica”, explica Fernando Alabê, diretor musical do espetáculo.
A peça é a última parte da Trilogia da Morte do grupo O Bonde, iniciada com a peça infantil Quando eu morrer vou contar tudo a Deus, com dramaturgia de Maria Shu e direção de Ícaro Rodrigues. Em seguida veio Desfazenda - Me enterrem fora desse lugar, com texto de Lucas Moura e direção de Roberta Estrela D’Alva, premiada como Melhor Espetáculo Virtual pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e indicada a Melhor Dramaturgia pelo prêmio Shell, em 2020.
O Bonde é um coletivo criado em 2017 por artistas negros e periféricos, formados em diferentes períodos na Escola Livre de Teatro de Santo André. O grupo reúne Ailton Barros, Filipe Celestino, Jhonny Salaberg e Marina Esteves para investigar, nos trabalhos mais recentes, as experiências de quase morte do corpo negro, refletindo sobre as heranças do período escravocrata.
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Celestino afirma que momento atual da trajetória dos coletivos negros é a busca da subjetividade, a particularidade dos artistas e de suas linguagens únicas, e da projeção de novos horizontes simbólicos para a população negra. “Quando a gente fala que vive num sistema que unifica a gente, é um sistema que sempre nos coloca diante da morte, o corpo matável que vive sempre em constante relação com a morte imposta pelo sistema”, afirma.
“Nós, artistas negros, temos a necessidade de falar sobre horizonte utópico possível. Que futuro é esse que a gente está criando como sociedade e como artistas? A ideia é colocar essa narrativa, essa discussão e essa reflexão em cima do palco para que a gente possa começar a pensar, sobre novas possibilidades para a existência de corpos negros”.
* Este conteúdo foi produzido em parceria com o coletivo O Bonde, constituído por artistas negros e periféricos formados em diferentes períodos na Escola Livre de Teatro de Santo André (SP).
dividerServiço
- Peça de teatro: Bom dia, Eternidade
- Temporada: 20 de janeiro a 25 de fevereiro de 2024
- Dias: Sextas e sábados, às 20h, e, aos domingos, às 18h
- Sessões nas tardes de 15 e 22 de fevereiro, quintas, às 15h
- Local: Teatro Anchieta – Sesc Consolação – R. Dr. Vila Nova, 245 - Vila Buarque
- Ingresso: R$50 (inteira), R$25 (meia-entrada) e R$15 (credencial plena)
- Compre por este link a partir do dia 9 de janeiro: https://centralrelacionamento.sescsp.org.br e no app Credencial Sesc SP e a partir do dia 10 de janeiro na bilheteria das Unidades
- Duração: 120 min
- Classificação etária indicativa: 14 anos
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