De “Capota, mas não breca” a “Arremessamento de drogas”, a Polícia Militar de São Paulo passou a adotar nova linguagem para publicar vídeos de ocorrências no Youtube. Inicialmente captadas por canais privados ou mesmo com equipamentos próprios de agentes, fenômeno que chegou a impulsionar a popularidade dos envolvidos, as gravações agora se aproveitam das câmeras corporais nos uniformes dos policiais. Os equipamentos permitem retratar de perto abordagens, perseguições e até libertação de reféns.
A PM de São Paulo, que possui o programa nacional mais consolidado das chamadas bodycams, divulga regularmente resultados das ocorrências bem sucedidas em seu canal oficial, como no caso em que conseguiu interceptar um carro com suspeitos de adotar ilegalmente um bebê em Santa Catarina. Especialistas debatem o controle necessário a esse tipo de conteúdo, que transformou a PMTV em uma espécie de Netflix, e uma possível espetacularização da atividade policial por contas institucionais.
Os vídeos do perfil da PM de São Paulo no Youtube contam com músicas de ação de fundo e palavras de impacto na maioria dos títulos e thumbnails (imagens de capa das gravações). A nova “roupagem” do canal ganhou força em 2022 e se consolidou ao longo deste ano. Há publicações desse tipo que superam 1 milhão de visualizações.
Algumas das publicações mais recentes destacam frases como “Criou asas e voou”, para ilustrar caso em que um suspeito é lançado da moto na perseguição, e “Chamou a mamãe”, em alusão a um jovem que pede à polícia para falar com a mãe após ser detido. Essas duas publicações têm, cada uma, mais de 60 mil visualizações, ante pouco mais de 2 mil em vídeos recentes com tom mais institucional.
Especialistas alertam que é dever da polícia respeitar a integridade física, moral e psíquica de suspeitos. Também apontam riscos de violação à lei de proteção de dados. “A importância das câmeras é indiscutível, mas seria muito importante entender a regulamentação da custódia e do uso dessas imagens”, diz a pesquisadora Jéssica da Mata, advogada e mestre em direito penal pela Universidade de São Paulo (USP). “Ninguém antecipou que elas seriam utilizadas para marketing institucional.”
O perfil da PM ironiza algumas ocorrências até de forma mais explícita. “Nova modalidade olímpica?”, diz o título de um caso em que o suspeito arremessa a mochila com drogas ao ser abordado. O vídeo, com mais de 30 mil visualizações, recebeu quase cem comentários. “Ruim no arremesso, ruim na estratégia e ruim nos 200 metros rasos”, diz um deles, em alusão a provas de atletismo. Mais de 900 mil inscritos acompanham os conteúdos da PMTV no Youtube.
‘Barulho da algema é música para nossos ouvidos’
As frases usadas pela PM reproduzem linguagem já difundida para ironizar fugas, mas não em perfis institucionais. O fenômeno de acompanhar as ocorrências de perto ganhou força em canais privados da internet nos últimos anos, sobretudo com a ascensão da True Crime Community, que reúne interessados pelo universo das investigações policiais. “O barulho da algema é música para nossos ouvidos”, comenta um usuário em vídeo da PMTV.
Um dos perfis pioneiros em publicar conteúdos desse tipo no País foi o ‘Operação Policial’, que reúne mais de 1,2 milhão de inscritos no Youtube e se descreve como o “canal com o maior conteúdo de True Crime do Brasil”. “É um universo que tem crescido nos últimos anos, com usuários que muitas vezes assistem aos vídeos até mais de uma vez”, diz Carla Albuquerque, diretora executiva da Medialand, produtora por trás do canal.
A impressão, segundo ela, é que o interesse no tema se intensificou depois da pandemia. Recentemente, repercutiu o vídeo de uma longa perseguição de moto a um casal em Osasco, Grande São Paulo. O caso, de outubro de 2021, ocorreu após um guarda não ser atendido ao dar voz de parada ao motoqueiro. “Piloto e garupa estavam fazendo manobras de risco, como empinando a moto”, disse a prefeitura. A fuga foi gravada por uma câmera do próprio agente. A moto perseguida, apreendida após abordagem.
As ocorrências policiais começaram a ser acompanhadas de perto há algumas décadas por canais de TV ou, mais recentemente, de plataformas de vídeo, como o Youtube. Depois, antes de chegar à fase atual, o fenômeno teve um ‘boom’ mais informal, com gravações feitas pelos próprios agentes e divulgadas muitas vezes em perfis com os nomes dos policiais.
A publicação de conteúdos desse tipo já impulsionou agentes como do próprio capitão Guilherme Derrite, atual secretário de Segurança Pública de São Paulo. Ele já teve canal ativo no Youtube para falar sobre sua área de atuação e mostrar operações no período em que esteve nas Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (Rota), batalhão de elite da PM. A conta, com mais de 200 mil inscritos, não tem vídeos publicados há dez meses.
Outro caso é o do delegado Da Cunha, cujo canal tem mais de 3,6 milhões de inscritos no Youtube – praticamente quatro vezes mais do que o perfil oficial da PM de São Paulo. No ano passado, ele chegou a ter a demissão recomendada sob suspeita de simular operações, entre elas a prisão de um suposto líder do Primeiro Comando da Capital (PCC).
Também foi alvo de processo de demissão por declarações contra integrantes da cúpula da Polícia Civil. Ainda assim, o delegado se afastou do cargo para concorrer às eleições e foi eleito deputado federal por São Paulo. Conforme a Secretaria de Segurança Pública (SSP), as informações dos processos são sigilosas. Procurado, Da Cunha não respondeu até a conclusão da reportagem.
Publicações feitas por policiais receberam regras
Alan Fernandes, coronel da reserva da PM paulista e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, diz que o movimento de gravar as operações foi impulsionado pela popularização dos smartphones e das câmeras GoPro. “As polícias incentivaram os agentes que faziam isso a cada vez postarem mais. Havia um apoio institucional. Mas isso acabou saindo do controle, essas figuras acabaram indo para a política”, diz. A monetização dos vídeos também foi vista como um problema.
Diante disso, Fernandes afirma que as polícias tentaram “correr atrás do prejuízo”, definindo limites para as gravações. Há pouco mais de um ano, a PM de São Paulo editou norma que vedou “ao policial (da ativa, agregado ou veterano), por meio de contas pessoais em mídias sociais e aplicativos mensageiros, a criação, edição, postagem ou compartilhamento de conteúdos que se relacionem, direta ou indiretamente, com a Polícia Militar, a exemplo de vídeos, imagens, áudios, textos, mensagens e links.”
A medida é vista como positiva, mas a difusão das câmeras corporais, segundo Fernandes, parece ter impulsionado a produção desses conteúdos pela própria PM. “A polícia viu aí uma possibilidade avançar nesses vídeos de Youtube, de forma a ter views, likes, engajamento. Acho perigoso: que tipo de credibilidade e legitimidade você quer alcançar?”, diz. “É uma escolha institucional. Se ela quer, de fato, aprofundar essa ideia de ‘mocinhos’ versus ‘bandidos’, é um problema de imagem que se quer vender.”
No começo do mês, a polícia localizou um bebê desaparecido havia uma semana em Santa Catarina. O vídeo da abordagem, ocorrida no Tatuapé, zona leste paulistana, foi compartilhado no canal do YouTube da PM – com policiais empunhando armas para que passageiros de um Hyundai Creta branco se rendessem. A ação pode ser acompanhada pela câmera corporal de um dos agentes.
Em vídeo publicado na PMTV há dois meses, é possível acompanhar, pela câmera de um agente, o momento em que reféns são libertados após serem mantidas em cativeiro em um consultório odontológico. O material embaça o rosto das vítimas, mas mostra o choro de algumas delas ao serem encontradas. No fim da gravação, há ainda uma tomada com uma voz, por trás das câmeras, fazendo contagem regressiva e as vítimas dizendo em coro: “Obrigado, Polícia Militar.”
“Do ponto de vista jurídico, não tenho dúvidas de que esse canal viola desde o Estatuto da Polícia até a resolução recente da Polícia Militar sobre o uso de mídias sociais”, diz o professor da Faculdade de Direito da USP Mauricio Dieter. “As abordagens que ali aparecem, até as mais rotineiras: todas elas configuram transgressão da ética militar”, acrescenta. Ele afirma que é uma dinâmica diferente de repassar materiais para veículos de imprensa ou órgãos de controle.
Na avaliação do professor, a publicação das gravações no canal da PM viola mais de um artigo do Regulamento Disciplinar da Polícia Militar de São Paulo, como as determinações para “não solicitar ou provocar publicidade visando a própria promoção” e “respeitar a integridade física, moral e psíquica da pessoa do preso ou de quem seja objeto de incriminação”.
A exposição também pode ser vista como violação à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). “A hachura sobre o rosto não impede o conhecimento de quem é, em função do contexto”, afirma. “Você gostaria de ser retratado em situação humilhante, ainda que seu rosto tenha sido borrado? Sua voz e todos os sinais que poderiam te identificar foram alterados? E mesmo que fossem, qual é o sentido dessa comunicação? De que maneira ela aprimora o conteúdo técnico da polícia?”
PM afirma que canal valoriza trabalho e diz monitorar métricas
A PM afirma, em nota, que a divulgação de ocorrências captadas com câmeras corporais tem três objetivos: “mostrar a realidade, aproximando a população a medida em que conhecem mais as dificuldades enfrentadas pelos policiais”, estimular o alistamento de jovens vocacionados e reforçar “a narrativa sobre o retrabalho policial em face da reincidência criminal”.
“No Centro de Comunicação Social existem policiais militares que fazem a coleta e difusão de conteúdos audiovisuais no Youtube e outros que fazem a difusão desses conteúdos nas demais redes sociais, cada equipe com as respectivas capacitações técnicas para tal”, diz a corporação. A Polícia Militar afirma que o canal PMTV não é monetizado. A reportagem não encontrou publicidades externas apresentadas pelo YouTube ao longo das exibições dos vídeos.
Segundo a corporação, a triagem é feita “de forma técnica, sempre sob a premissa de preservar as pessoas, divulgando as boas ações, resolução de incidentes críticos, atuação em catástrofes e todo tipo de ocorrência”. “Adotamos as métricas de novos seguidores, inserções, visualizações, impressões e taxa de click, tudo isso fornecido pela própria plataforma.” Em 2022, continua, “houve evolução em todos esses critérios”.
Procurado pelo Estadão, o Youtube disse que analisaria os conteúdos dos vídeos enviados pela reportagem.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.