''Nunca vi cracolândia tão sociável'', diz expert

Philippe Bourgois, antropólogo americano

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Símbolo da degradação do centro de São Paulo, a cracolândia é uma área amistosa. Pelo menos quando comparada a locais de viciados de outros países. É o que garante o antropólogo americano Philippe Bourgois. Autor de dois livros sobre crack e estudioso de regiões tomadas pela droga nos Estados Unidos, França, Canadá e Colômbia, anteontem ele percorreu a cracolândia paulistana pela primeira vez por uma hora e meia. E concluiu que se trata da "mais sociável e amigável cena de crack" que já visitou e isso pode ser uma vantagem na solução do problema. Eram 15 horas quando Bourgois parou na frente de uma roda de samba formada por usuários com cachimbos no bolso e bumbo na mão, que comemoravam um aniversário. Intrigado, ele observou as 70 pessoas na esquina da Alameda Cleveland com a Rua Helvétia. Dançavam e fumavam crack.Bourgois pediu uma média com leite no bar da esquina, encostou na parede e, em pouco tempo, foi rodeado por usuários. Um deles falava inglês fluentemente."De quarta-feira em diante, o pessoal festeja para esquecer de tudo nesse sambão", contou Carlos, ex-gerente de restaurante em Porto Alegre, na cracolândia há dois meses. A espontaneidade do samba, os sorrisos e as piadas surpreenderam o antropólogo, que há 25 anos pesquisa o crack e se acostumou à violência de Três Esquinas, em Bogotá, na Colômbia, objeto de seu último estudo. Qual sua impressão sobre a cracolândia?É, com certeza, a mais sociável e amigável cena do crack que já presenciei. Nada do que vi parece com o que há aqui. Não se vê em outros lugares esse nível de relaxamento e sociabilidade, pessoas fazendo música, com prazer e alegria, enquanto fumam crack. Muito impressionante. Em Amsterdã, há algo parecido num espaço próprio para socialização, mas é local assistido, com enfermeiras. Aqui é espontâneo. Como isso pode ser benéfico?Qualquer ligação com a realidade que resgate humanidade ajuda o viciado a deixar o vício. Aqui parece claro que se deve usar a música e o caráter sociável do brasileiro. É realmente algo difícil de encontrar em outras cenas. Deve ser estudado e utilizado na busca por soluções. Uma estratégia de redução de danos é diminuir o ritmo do crack, fazer com que as pessoas fumem menos. É interessante perceber que aqui isso acontece quase naturalmente. É comum ficar completamente destrutivo fumando crack. Aqui, no meio de 70 pessoas, a maioria ainda era capaz de sorrir e conversar. Traz esperança de que o Brasil pode achar formas de lidar com o problema.Como fazer?Acredito em políticas de redução de danos, que criam ligações com a realidade fora do crack. Aqui parece claro que a música deve ser usada em um programa de ensino, que estimule a responsabilidade dos dependentes. Eles serão respeitados pelo que sabem, ensinarão a tocar. Aos poucos terão vontade de largar o vício. Defendo programas que levem trabalho, música, religião. Alivia o policiamento ostensivo e não sobrecarrega o sistema de saúde.Em outros países a violência é maior?Nos Estados Unidos, há menos usuários nas aglomerações de dependentes, mas eles são muito mais violentos. No Canadá também não há esse nível de sociabilidade. Isso é inédito em meus estudos e tem de ser estudado e usado para buscar soluções para o problema. Na Colômbia, eles são mais encurralados, ficam mais violentos, estão mais fora do controle. Em Três Esquinas, Bogotá, a polícia não entra, a não ser para invadir.Há modelo contra o problema?Existe uma crise no mundo. Ninguém sabe exatamente qual modelo usar. Se nem mesmo a biomedicina entende completamente o problema do crack, então é preciso usar a imaginação. Pensar de uma forma diferente, usar o contexto social e pensar em alternativas. Porque a tragédia do crack, embora as comunidades tenham características diferentes, é sempre parecida. Falamos em sociabilidade, mas claro que nem tudo é positivo. Se há pouca violência entre eles, isso também significa uma forma de sedução. E, apesar de parecer um local mais leve, a devastação causada pela droga está toda ali: os mesmos corpos magros, a prostituição, mulheres grávidas, crianças dependentes. Também há gente que carrega cartas de recomendação, certificados de empregado do mês, fotos da família, que tenta agarrar-se à vida que tinha antes carregando papéis que a representam. Isso é outra característica comum, que deve ser enxergada como oportunidade: perceber que muitos estão ali, querem sair, mas não conseguem. É preciso, então, criar um ambiente de auxílio.QUEM ÉPhilippe Bourgois, de 54 anos, nasceu em Upper East Side, bairro nobre de Nova York. Depois de se formar em Antropologia e viver na América Central, voltou ao seu país para estudar o problema das drogas. Viveu cinco anos no Harlem, então tomado por traficantes. Pós-doutorado na área, contou as experiências em dois livros.LÁ TEM...ColômbiaNum país em que a polícia chegou a ter carta branca para matar usuários de crack, o sistema de saúde atualmente é progressista e investe em redução de danos. Foram criados abrigos onde dependentes tomam banho, fazem refeições e frequentam sessões de terapia. Há sessões de ioga e até de xamanismo. É considerada experiência bem sucedida.FrançaEleito um dos três melhores trabalhos de redução de danos da Europa, a ONG Ego, da brasileira Lia Cavalcanti, criou grupo de teatro formado por dependentes para encenar peças à população.SuíçaPolíticas de redução de danos foram escolhidas por plebiscito popular no país. Um dos programas oferece heroína para usuários - 35% do grupo passou a negar a droga após um período.

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