Durante as atividades de monitoramento arqueológico das obras da Linha 6-Laranja do Metrô de São Paulo, um sítio histórico foi encontrado na área da futura estação 14 Bis, no Bixiga, na região central da capital. O local fica às margens do córrego Saracura (afluente hoje canalizado do Rio Anhangabaú), que, no século 19, abrigou quilombolas em seu entorno. Com a descoberta dos vestígios, o movimento negro e moradores do bairro organizaram uma mobilização que reivindica a criação de um memorial educativo permanente no local, além da mudança do nome da futura estação para “Saracura Vai-Vai”.
O sítio arqueológico Saracura/14 Bis foi cadastrado em abril deste ano no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) pela A Lasca – empresa contratada pela concessionária Linha Universidade para fazer o monitoramento arqueológico das obras da Linha 6-Laranja do Metrô. O sítio está localizado entre as Ruas Dr. Lourenço Granato e Manoel Dutra, e sua intersecção com a Praça 14 Bis. Inicialmente, foram encontrados objetos utilitários característicos de áreas de descarte, como garrafas e louças. Esses materiais datam da transição do século 19 para o 20 e primeira metade do último.
A empresa A Lasca classificou os primeiros vestígios do Saracura como de alta relevância e recebeu autorização do Iphan para resgatar o sítio emergencialmente. A previsão é que a escavação aconteça a partir do final de agosto e durante o mês de setembro. Como os materiais mapeados estão soterrados a partir de 3 metros de profundidade, neste momento, a Linha Uni está realizando obras de contenção para garantir a segurança do local.
Ao término da pesquisa arqueológica, será possível compreender em profundidade a relação do sítio descoberto com o Quilombo Saracura e com a ocupação do bairro do Bixiga. Em correspondência com o Iphan/SP, datada de 30 de junho, a empresa A Lasca disse tratar de "significativo local de memória para a história da cidade", sobretudo para as "comunidades africanas e afrodescendentes que passaram por sucessivos processos de invisibilização da sua história e cultura".
Essa não foi a primeira vez que vestígios foram descobertos durante o Programa de Arqueologia Preventiva da Linha 6 do Metrô de São Paulo. Em outras estações, como a Santa Marina e a SESC Pompeia, também foram cadastrados sítios arqueológicos. A Linha 6-Laranja vai abranger as regiões central e noroeste da capital, com 15,3km de extensão e 15 estações previstas.
Com a descoberta dos vestígios arqueológicos na região do antigo Quilombo Saracura, o movimento negro e moradores do Bixiga se organizaram no Mobiliza Saracura Vai-Vai. Em ato realizado no dia 2 de julho, o grupo carregou cartazes com os dizeres: "Não somos contra o metrô, somos contra o apagamento histórico". Dentre as reivindicações resumidas em abaixo-assinado, estão a mudança do nome da futura estação 14 Bis para “Saracura Vai-Vai” e a criação de um memorial educativo permanente para os achados arqueológicos.
Em manifesto, o movimento explica que a praça em frente à futura estação já é símbolo da "genialidade de Santos Dumont e seu 14 Bis" e prega agora uma homenagem à história de resistência do quilombo e da tradicional escola de samba Vai-Vai – ambos conectados à origem e ocupação do Bixiga. Além disso, defendem que os achados arqueológicos sejam mantidos expostos na própria estação ou no bairro, com a criação de um projeto de educação permanente que dê conhecimento à população sobre o quilombo Saracura.
"Não basta só resgatar o sítio do local e mandar para um arquivo ou mesmo para um museu de arqueologia da cidade, porque tiraria da comunidade a possibilidade de conhecer esse processo arqueológico", afirma Luciana Araujo, jornalista, moradora do Bixiga e integrante da mobilização. Para Luciana, o ideal seria que, no futuro, quem passar diariamente pela estação “Saracura Vai-Vai” possa refletir sobre os achados e sobre a memória dos negros em São Paulo e no Brasil.
Em 27 de junho, em reunião realizada com a concessionária Linha Uni e aA Lasca, o Mobiliza Saracura Vai-Vai apresentou suas principais demandas. Segundo Luciana, as empresas afirmaram não se opor e se mostraram abertas a que a comunidade do bairro envie uma proposta de projeto educacional diante do que for encontrado. "Vamos desenhar esse projeto e esperamos que eles concordem, porque é uma responsabilidade da concessionária."
A Portaria nº 230/2002 do Iphan estabelece que, para obtenção de uma licença de operação, os empreendimentos potencialmente capazes de afetar patrimônio arqueológico precisam apresentar um "programa de educação patrimonial" a respeito dos sítios resgatados durante as obras, além de garantir a devida guarda dos materiais retirados. "É absolutamente legítimo, recomendável e ético que essa estação fale sobre o povo negro", afirma Rossano Bastos, arqueólogo que foi servidor do Iphan por 35 anos.
"Assim como já vem fazendo, a Concessionária Linha Universidade segue aberta ao diálogo com as partes interessadas para, após a identificação da origem dos achados, apoiar a comunidade em futuros projetos educativos e de preservação do patrimônio", disse a empresa em nota ao Estadão.
Para ex-servidor do Iphan, tanto o movimento negro quanto o Metrô de São Paulo poderão ser beneficiados. "Tem tudo para ser um lugar visitado pelo mundo inteiro", afirma. No último dia 5 de julho, Bastos e a também arqueóloga Marília Oliveira Calazans visitaram as obras da futura estação pela primeira vez. "Queremos acompanhar de perto porque é o chão da nossa história que está sendo investigado e escavado aqui", resume Marília.
Com relação à mudança do nome da futura estação 14 Bis para “Saracura Vai-Vai”, a Secretaria de Transportes Metropolitanos do Estado afirmou à reportagem que solicitações como essa devem ser formalizadas através de ofício, pedido via SIC ou carta entregue no expediente, para que passem por "análises técnicas". Segundo a secretaria, o Mobiliza Saracura Vai-Vai ainda não solicitou nenhum pedido do tipo.
Quilombo Saracura
O sítio arqueológico Saracura/14 Bis foi identificado na baixa e média vertente do córrego Saracura, um afluente direto do ribeirão Anhangabaú. Ambos foram canalizados e soterrados durante as obras de urbanização do Vale do Anhangabaú e do bairro do Bixiga. No século 19, porém, o córrego era o assentamento do Quilombo Saracura – um dos maiores e mais antigos de São Paulo.
Na época localizado na periferia da cidade, o vale do Saracura era um local estratégico para se esconder e ocupar. Não somente pelas nascentes de água, mas também porque havia uma vegetação muito densa, a do Caaguaçu, que servia como fonte de alimento para os quilombolas. Uma ata da Câmara Municipal datada de 1831 pedia repressão e fechamento dos caminhos por onde corria o Rio Anhangabaú e seus afluentes, porque em suas margens habitavam "ladrões e escravizados foragidos".
"Esse é o primeiro registro do Quilombo Saracura em documentação escrita oficial", conta o historiador e arqueólogo Alessandro Luís Lopes de Lima. No início do século 20, de acordo com publicação do jornal Correio Paulistano, de 3 de outubro de 1907, a região da Saracura era conhecida como a "pequena África", com habitações nas margens do córrego, animais soltos, crianças brincando e idosos com seus cachimbos.
A região do quilombo também foi um dos berços paulistanos do samba de bumbo e do batuque. Segundo Lima, é provável que da torcida do antigo time de futebol da Saracura, o Cai-Cai, tenha surgido o cordão carnavalesco Vai-Vai. A tradicional escola de samba da região é herdeira direta desse legado e teve sua quadra deslocada em razão das obras da Linha 6-Laranja do Metrô. Por meio de um acordo, a Vai-Vai ganhou do Poder Público outros dois terrenos: um para ensaios e grandes eventos na Marginal Tietê e outro para reuniões sociais e culturais na Rua Almirante Marques de Leão, na Bela Vista.
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