A Operação Escudo, realizada pela Polícia Militar no Guarujá, no litoral de São Paulo, é a ação policial mais letal do Estado desde a onde de ataques de maio de 2006, segundo levantamento do Estadão. O balanço oficial mais recente, atualizado nesta quarta-feira, 2, aponta 16 mortes confirmadas. Esses óbitos, cujas circunstâncias são investigadas, aconteceram após o assassinato de um soldado da Rota na última semana.
A operação policial na Baixada Santista, apontam especialistas, possui uma dinâmica similar à de 2006: trata-se de uma reação a uma ofensiva contra policiais. Ao mesmo tempo, assim como agora, PMs foram alvo de denúncias por supostas agressões e execuções arbitrárias.
Entre as diferenças, especialistas apontam que, em 2006, a proporção da operação foi mais generalizada e as ações se espalharam por todo o Estado. Além de ter havido uma ofensiva – a princípio, maior do que se vê hoje – do Primeiro Comando da Capital (PCC).
Embora não haja uma contabilização oficial dos mortos pela polícia naquela oportunidade, estudiosos falam em centenas de vítimas. Relatórios chegaram a apontam mais de 500 civis mortos por armas de fogo em um período de dez dias, mas o peso da participação de policiais em ações oficiais nesse total nunca foi juridicamente esclarecido.
Na Operação Escudo, denúncias de agressões e torturas ainda estão sendo apuradas, mas a quantidade de relatos chama a atenção de órgãos de controle. Nesta semana, a Defensoria Pública do Estado pediu o “fim imediato” da ação policial no Guarujá. Solicitou também que todos os agentes envolvidos nas mortes de civis sejam temporariamente afastados.
“A situação é avassaladora, do ponto de vista do nível de tensão e de aterrorizamento que as pessoas estão”, disse o ouvidor da Polícia do Estado de São Paulo, Cláudio Silva, que esteve no Guarujá nesta quarta. Entre os relatos que o órgão tem recebido, está o de uma pessoa que afirma que o marido teve que tirar o filho de oito meses do colo antes de ser morto.
Conforme boletins de ocorrência aos quais o Estadão teve acesso, houve uso de fuzis por policiais em boa parte das ações. O número de disparos também é considerado motivo de alerta. Em um dos casos, policiais relataram ter desferido nove tiros de pistola em ocorrência envolvendo um só suspeito.
“O que me chama atenção é que, segundo a Secretaria da Segurança Pública, houve 16 ocorrências com policiais sendo atacados e não resta um policial ferido (nesses casos específicos)”, disse o ouvidor. Dois policiais militares foram baleados em Santos nesta semana, mas em dinâmica que não se deu no momento da morte de outros suspeitos.
A Secretaria da Segurança Pública (SSP) afirma que “todas as ocorrências com morte durante a operação resultaram da ação dos criminosos que optam pelo confronto” e que os casos são investigados. “As imagens das câmeras corporais serão anexadas aos inquéritos em curso e estão disponíveis para consulta irrestrita pelo Ministério Público, Poder Judiciário e a Corregedoria da PM”, disse o órgão.
Para especialistas, a quantidade de denúncias torna a apuração das circunstâncias ainda mais urgente. “Especialmente agora, com o uso das câmeras corporais, é preciso cobrar transparência, saber melhor em que contexto se deram os homicídios praticados por policiais”, disse Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
De acordo com a pesquisadora, é necessário ter uma “investigação séria” por parte do Estado, que avalie criteriosamente se o uso da força na Operação Escudo tem sido ou não legítimo. “Se cidadãos estão dizendo que houve ilegalidades, execuções e armas sendo plantadas, isso tudo precisa ser levado tão a sério quanto a palavra dos policiais”, acrescentou Samira.
Em 2006, ataque do PCC a policiais desencadeou operação violenta
Mortes não esclarecidas de 2006 deram origem ao movimento Mães de Maio, formado por amigos e familiares das vítimas para cobrar Justiça. Nesta quarta-feira, 2, representantes do grupo participaram de um protesto no Guarujá, que denunciou supostos abusos policiais na operação desta semana.
Especialistas ouvidos pelo Estadão divergem quanto a definir o que aconteceu em 2006 como uma operação policial oficial. Enquanto parte deles afirma que a ação dos PMs na época se enquadra nessa classificação, ainda que tenha sido uma reação mais difusa do que se vê agora, outra parcela acredita que a reação policial naquele ano não foi coordenada o suficiente para ser entendida como tal.
Coronel da reserva da Polícia Militar de São Paulo, Alan Fernandes é um dos que entendem que o que houve em 2006 não foi efetivamente uma operação policial. “Diferentemente desse contexto de agora, em há uma concentração de esforços e logística em um território de atuação definido, com um nome que defina a operação (Escudo), em 2006 não havia isso”, disse.
Morto em março de 2021, o ex-deputado federal Major Olímpio, que estava na ativa da Polícia Militar em 2006, também corroborava com essa tese. “O Estado perdeu completamente o pulso (em maio de 2006). Nós tivemos, sim, a iniciativa, não sob coordenação do governo, de ir para cima dos marginais e das situações”, disse, em entrevista ao Estadão em 2016. Fenômeno parecido ocorreu em 2012, quando praticamente o ano todo foi marcado por confrontos.
Em 1992, Massacre do Carandiru deixou 111 presos mortos
Para quem defende a interpretação de que o que houve em 2006 não foi uma operação policial coordenada, a ofensiva que ocorre agora no Guarujá pode ser considerada a operação mais letal desde o Massacre do Carandiru (1992), que resultou na morte de 111 presos na zona norte de São Paulo. Até hoje, nenhum dos 74 policiais condenados pelos assassinatos foi preso.
Independentemente da interpretação, Samira Bueno afirma que possíveis excessos devem ser investigados e combatidos. “Tanto Carandiru quanto maio de 2006 são exemplos do que não fazer, de não responsabilização de policiais que abusaram do uso da força e fizeram o trabalho de justiceiros, em vez de atuar como agentes do Estado em defesa da lei”, disse a pesquisadora.
No começo desta semana, quando havia confirmação oficial de oito mortes no Guarujá, o governador Tarcísio de Freitas disse que “não houve excesso” por parte da polícia. Nesta terça-feira, 1º, afirmou que os responsáveis por possíveis abusos serão punidos. “Todas as condutas serão investigadas. Se houver excesso, se houver falhas, nós vamos punir os responsáveis”, disse.
De acordo com a Secretaria da Segurança Pública, 84 suspeitos de praticar crimes na Baixada Santista foram presos nos últimos dias (sendo 54 em flagrante). Ainda conforme a pasta, desde que começou a operação, também foram apreendidos quase 400 kg de drogas e 21 armas de fogo, entre pistolas e fuzis. A previsão é que a Operação Escudo, que reúne cerca de 600 agentes, tenha um mês de duração.
O Estadão mostrou que operações oficiais e não oficiais realizadas por policiais costumam repetir a lógica da vingança. Um outro caso que não é contabilizado como operação oficial foi a chacina de Osasco e Barueri, em 2015, que deixou 17 mortos e 7 feridos.
O Ministério Público acusou policiais de se reunirem para vingar a morte de dois agentes que tinha acontecido nos dias anteriores. A ação, no entanto, não ocorreu com uso de viaturas oficiais sob o escopo de uma operação e, portanto, não é contabilizada neste levantamento. Dois agentes foram condenados e outros dois foram absolvidos em júri popular. Em indenização à família de uma das vítimas, a Justiça reconheceu o papel do Estado no crime.
Relembre as operações policiais mais letais da história de São Paulo
- Carandiru (outubro, 1992): 111 pessoas morreram na intervenção policial na Casa de Detenção, localizada na zona norte de São Paulo. A ação foi feita para desmobilizar uma rebelião de presos. 30 anos depois, ninguém foi preso;
- Castelinho (março, 2002): uma ação da PM resultou na morte de 12 pessoas em uma praça de pedágio da Rodovia Senador José Ermírio de Moraes, a Castelinho. Os 53 policiais envolvidos foram absolvidos;
- Crimes de maio (maio, 2006): 505 civis e 59 agentes públicos foram mortos por arma de fogo em um intervalo de dez dias, segundo levantamento da Conectas Direitos Humanos em parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Período foi marcado por escalada de violência do PCC;
- Morumbi (dezembro, 2017): Dez pessoas, suspeitas de integrar uma quadrilha de roubo a residências, morreram em um tiroteio com policiais civis no Jardim Guedala, região do Morumbi. Quatro policiais ficaram feridos por estilhaços;
- Guararema (abril, 2019): Onze suspeitos foram mortos pela polícia durante tentativa de assalto a dois bancos em Guararema, na região metropolitana de São Paulo.
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