Pai relembra caminho até encontrar estudante de Medicina baleado pela PM: ‘Filme de terror’

Júlio Cesar Acosta Navarro foi o único membro da família que conseguiu encontrar Marco Aurélio ainda com vida; SSP diz que caso é investigado e que os policiais envolvidos foram afastados

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Foto do author Ítalo Lo Re
Atualização:

“Tem sido um filme de terror, um pesadelo desde o início. E continua sendo.” É assim que o médico Júlio Cesar Acosta Navarro, de 59 anos, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), descreve o que tem vivido sua família nas últimas horas.

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Na madrugada da última quarta-feira, 20, o filho caçula do médico, o estudante Marco Aurélio Cardenas Acosta, de 22 anos, foi morto após ser baleado em abordagem policial dentro de um hotel na Vila Mariana, na zona sul de São Paulo. Ele chegou a ser socorrido, mas não resistiu.

Em nota, a Secretaria da Segurança Pública informou que o “jovem golpeou uma viatura policial e tentou fugir”. O Estadão apurou que Marco Aurélio Acosta teria acertado o retrovisor do automóvel da PM. Ainda de acordo com a SSP, ao ser abordado, ele investiu contra os policiais e foi baleado. A pasta informou também que o caso é investigado e que os policiais envolvidos foram afastados.

Júlio Cesar Acosta Navarro pede investigação sobre a morte do filho: 'É preciso responsabilizar desde os policiais até os agentes que depois não quiseram me dar informações'. Foto: Werther Santana/Estadão

Prestes a ingressar no 6.º ano de Medicina da Universidade Anhembi Morumbi, Marco Aurélio seria o quinto médico da família. Ele morava com os pais e os dois irmãos em uma casa na Vila Mariana, a poucas quadras de onde o caso ocorreu. Foi lá que a família, de raízes peruanas e há 30 anos no Brasil, recebeu a reportagem do Estadão.

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Ainda bastante emocionado, Júlio contou que estava dormindo em casa na madrugada da última quarta quando foi avisado por volta das 3h que o filho havia sido baleado ali perto – a esposa estava fora, de plantão. Ele, então, se vestiu às pressas e foi com um cunhado até o hotel onde Marco Antônio foi atingido.

“Quando chegamos, havia uns 16 policiais parados, com quatro viaturas com luzes acesas”, disse. Ao perguntar onde estava o filho, ele disse que não teve colaboração dos agentes que estavam por lá. “Todo mundo me olhou como se não fosse nada”, disse.

Depois de insistência, Júlio disse que um dos policiais contou que houve um incidente e que Marco Aurélio foi baleado, mas sem dar mais detalhes sobre o ocorrido. “Em dado momento até quis entrar no hotel para perguntar o que tinha acontecido, mas dois policiais pararam na frente e me impediram de entrar”, contou ainda.

Quando finalmente descobriu onde o filho estava, ele foi de táxi até o Hospital Ipiranga – disse que os policiais não quiseram levá-lo – e finalmente conseguiu ter mais notícias do filho. Júlio foi o único que teria conseguido encontrar Marco Aurélio ainda com vida.

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“Falei que era médico, que era pai, e, quando entrei, finalmente vi meu filho. Ele estava pálido e agitado”, disse. Marco Aurélio foi baleado na altura do peito e perdia muito sangue. “Foi aí que soube que tinham atirado numa das áreas mais perigosas, por onde passam artérias.”

Médico intensivista, Júlio disse que tentou orientar a equipe médica do hospital sobre possíveis procedimentos, enquanto tentava acalmar o filho antes de ele ser encaminhado ao centro cirúrgico. “‘Pai, me ajuda’, ele ficava repetindo”, disse o médico.

Quando o filho foi levado pela equipe, o pai disse que novamente se deparou com o mesmo grupo de policiais que estava no hotel, desta vez parados na recepção do hospital.

“Me falavam o mesmo que tinham dito no hotel, não me davam informação. A proximidade do tiro, qual arma... Tinha uma infinidade de detalhes que poderiam ter ajudado até na cirurgia”, disse o professor e médico intensivista.

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Marco Aurélio morreu às 6h45 após sofrer paradas cardiorrespiratórias no centro cirúrgico do Hospital Ipiranga. A mãe, que estava de plantão em um hospital na zona leste, não conseguiu ver o filho ainda com vida.

“Mesmo depois que terminou tudo isso, não chegou ninguém para dar uma satisfação do que tinha acontecido. Nada, absolutamente nada”, disse.

O enterro está previsto para a tarde desta sexta-feira, 22, na região do Morumbi, zona sul de São Paulo.

Governador diz que abusos serão severamente punidos

Quando viu o vídeo gravado pela câmera de segurança, Júlio disse que a família se revoltou. “Ele corre para escapar, tenta se defender, batem nele e ainda por cima atiram nele”, disse. “Um caso em que um policial que deveria defender (a sociedade) mata uma pessoa. Isso é maldade, é sadismo.”

No X, antigo Twitter, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), disse lamentar a morte de Marco Aurélio. “Essa não é a conduta que a polícia do Estado de São Paulo deve ter com nenhum cidadão, sob nenhuma circunstância. A Polícia Militar é uma instituição de quase 200 anos, é a polícia mais preparada do País e está nas ruas para proteger. Abusos nunca vão ser tolerados e serão severamente punidos”, escreveu.

O estudante universitário Marco Aurélio Acosta, de 22 anos, morreu após ser baleado em uma abordagem policial; pais do jovem cobram explicações. Foto: Werther Santana/Estadão

Júlio disse que ainda não sabe se irá judicializar o caso ou algo do tipo. Agora, o foco é sepultar o filho de forma digna – alguns familiares estão vindo do Peru só para acompanhar o enterro. “Não tenho alma, não tenho forças”, disse o professor, emocionado. “Acima de tudo, estamos buscando viver hora a hora.”

O pai cobra responsabilização não só dos agentes que atenderam à ocorrência inicialmente. “É preciso responsabilizar desde os policiais até os agentes que depois não quiseram me dar informações para ajudar meu filho em suas últimas chances. E depois seus superiores, porque agora ninguém nos dá a cara, ninguém nos dá um consolo”, disse Júlio.

Já a mãe do jovem, a médica intensivista Silvia Mônica Cardenas Prado, de 57 anos, disse que o vídeo da câmera de hotel revelou despreparo dos policiais. “Se eu tivesse visto que meu filho tinha pulado para tentar tirar a arma do policial eu estaria chorando, mas até envergonhada. Só que não é isso”, disse. “Meu filho não era bandido e, mesmo se tivesse sido, não é possível que a polícia brasileira dispare contra um ser humano desarmado.”

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Ela relembra do caçula com carinho. “Era um menino que estudava em tempo integral, que tinha por paixão inventar música – sabe essas músicas de jovem? – e que jogava futebol muito bem, tanto é que era da Atlética do Anhembi Morumbi”, disse. “Acima de tudo, ainda era um filho extremamente amoroso, que todos os dias me mandava mensagem.”

Silvia mostrou à reportagem algumas das mensagens mandadas por ele. Em uma delas, Marco Aurélio, que nasceu prematuro, disse ter se lembrado da mãe ao ver crianças na mesma condição durante um estágio. “Eu te amo. Obrigado por ter acreditado em mim quando eu era um bebê prematuro de 1,5kg. Eu vi alguns bebês muito pequenos que parecem até bonecos”, disse ele em uma mensagem.

“Você daria um bom neonatologista”, respondeu a mãe, já sabendo das intenções do filho em se especializar em pediatria. Marco Aurélio seria o quinto médico da família. Os pais, de origem peruana, chegaram no Brasil há quase 30 anos. Eles têm outros dois filhos homens mais velhos, ambos já formados em Medicina.

“Nós somos uma família feliz, eu sou uma mulher forte, vou me reerguer”, disse Silvia. “Mas eu quero o cadáver do meu filho para poder abraçá-lo por uma última vez e para poder chorar a morte dele”, acrescentou. Quando falou com a reportagem, no começo da tarde desta quinta, a família ainda esperava a liberação do corpo do filho caçula.

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