A enfermeira Jaquelini Santos, de 40 anos, passou uma noite agradável ao lado do marido no último 12 de fevereiro. “A gente teve uma conversa muito boa no jantar”, diz. Como ele precisava trabalhar cedo, resolveram retomar o papo no almoço do dia seguinte, uma quinta-feira. “Na hora em que ele saiu (pela manhã), me deu um beijo, e ainda falei: ‘nossa, você está bonito’.”
Minutos depois, o marido dela, o ciclista Vitor Medrado, de 46 anos, foi morto com um tiro à queima-roupa perto do Parque do Povo, no Itaim-Bibi, zona sul de São Paulo. Ele havia ido até lá para ver um aluno de sua mentoria de ciclismo.
Câmeras de segurança mostram que a vítima sequer reagiu, em abordagem que choca pela brutalidade. O ladrão atirou no pescoço de Vitor, pegou o celular dele, e logo fugiu de moto com um comparsa.
Na última semana, foram presos dois suspeitos de cometer o crime. Antes, já havia sido detida uma mulher, a ’Mainha do Crime’, apontada como possível financiadora de bandidos que se disfarçam de motoboys e agem armados na região.
A Secretaria da Segurança Pública diz que reforçou o policiamento no Itaim-Bibi e tem afirmado reorientar o policiamento preventivo e ostensivo conforme as estatísticas criminais (mais abaixo).
“Estou aliviada (pelas prisões)”, afirma Jaquelini ao Estadão. “As pessoas estavam realmente cobrando (...) Como não dá uma resposta para a população sobre um crime tão horroroso?”
Ao mesmo tempo, afirma que nada preenche a lacuna deixada pela tragédia. “Tudo na minha vida mudou, porque tudo que eu tinha de planejamento incluía o Vitor”, diz. O casal estava junto havia dois anos.

Após a morte do marido, Jaquelini deixou a casa em que moravam, na zona sul, e voltou para a cidade do interior onde cresceu, até para ter mais suporte da família. Em São Paulo, diz, não encontrava paz: “Passava um motoqueiro do meu lado e eu achava que ia ser abordada”, diz.
“Podia ser qualquer pessoa ali (no local do crime). Foi aleatório, parece uma roleta-russa o tempo todo”, continua a enfermeira. Na série Vítimas da violência, o Estadão conta histórias de quem sofreu – e ainda sofre – os efeitos da escalada de insegurança em São Paulo.
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No ano passado, a capital registrou alta de 23% nos latrocínios (roubos seguidos de morte), na contramão da redução dos crimes patrimoniais, que tiveram quedas puxadas principalmente por áreas do centro, como Sé e Campos Elíseos.
‘(Ladrão) não teve coragem nem de olhar no olho dele’
Quando recebeu o telefonema dizendo que Vitor havia sido baleado, Jaquelini ainda tinha poucas informações. No caminho até o hospital, achava que ele havia reagido ao assalto. “Pensava: ‘Meu Deus, por que esse menino foi reagir?’”, diz. Vitor havia sido alvo de furto recentemente na mesma região, relembra ela. Na ocasião, ele até tentou ir atrás do ladrão de bicicleta, mas não conseguiu recuperar o celular.
Assim que chegou no hospital, ela recebeu a notícia da morte do marido. “Eu me lembro da sensação física: formigamento do corpo todo. E todas as vezes em que ouvia falar sobre isso, sentia a mesma sensação”, conta.
Já quando viu a gravação da abordagem, foi tomada por revolta. “É muito cruel, covardia. Falta humanidade naquilo ali”, diz. “A pessoa (assaltante) não teve coragem nem de olhar no olho dele para falar ‘me entrega o celular’.”
Na época, colegas organizaram atos em homenagem a Vitor nos arredores do Parque do Povo, região onde a segurança de ciclistas já era uma preocupação. “Sabia que o Vitor era querido, mas não que tanta gente gostava dele”, afirma Jaquelini.

‘Minha vida foi revirada do avesso’
Desde a tragédia, Jaquelini afirma ter passado dias muito difíceis. “Minha vida foi revirada do avesso.” Mas ela busca se apegar às boas memórias do marido para seguir em frente.
“Era uma pessoa amável, amigável, amistosa... Que apoiava as pessoas, que tentava acolher as pessoas, que cuidava das pessoas.”
Ela gosta de se lembrar, por exemplo, da dedicação dele nos treinos com os alunos. “Eu me lembro de uma vez que, enquanto passava orientações para alguém por áudio, ele se movimentava como se a pessoa visse. Ele se envolvia muito”, relata.
Era um cuidado parecido, relembra, ao que ele demonstrava na relação dos dois, que se conheceram justamente por conta do ciclismo. “Ele fazia o café da manhã, tomava, deixava minha vitamina pronta e ia trabalhar. Ele cuidava de mim o tempo todo”, afirma. “Eu sentia o Vitor o dia todo comigo.”
Jaquelini lembra que, na véspera da morte do marido, uma quarta-feira, ele chegou com a bike da mulher após levá-la para um “upgrade” (melhoria). “Ele disse: ‘quero muito te ver sábado com essa bicicleta’”, conta.
Esse não foi o único plano interrompido. O casal planejava ir para a França, em outubro, para participar uma competição de ciclismo e ainda passear por lá. Falava também em oficializar a relação com um casamento.
‘Quantos mais vão ter de morrer?’
Para Jaquelini, mais do que a perda pessoal, a morte de Vitor serviu como alerta para a insegurança na cidade. “Ele estava com uma ferramenta de trabalho, mexendo no celular, e foi morto”, diz. “Quantos mais trabalhadores vão ter de morrer para abrir os olhos dessa população?”, questiona.
O constante estado de alerta por medo da violência foi um dos motivos que a fizeram deixar São Paulo. Para ela, não são apenas os ciclistas expostos ao risco, mas todo mundo. “A gente está rendido.”
Por outro lado, Jaquelini afirma que foi inundada por uma rede de carinho. “Como não tenho família em São Paulo, e ele também não, eu tinha a falsa sensação de que éramos só nós dois. Mas não: tínhamos amigos, e eles vieram me abraçar”, afirma. Esse apoio tem sido fundamental para que, aos poucos, ela volte a pedalar. E a solidariedade não se limitou ao círculo de conhecidos. “Recebi mensagem do Brasil inteiro.”
PM diz que intensificou rondas na área
Conforme a Secretaria da Segurança Pública do Estado, a região do Itaim-Bibi, onde Vitor foi morto, recebeu reforço no policiamento depois do latrocínio que vitimou o ciclista, com a intensificação de rondas e de ações preventivas por parte da Polícia Militar.
“A Polícia Civil também atua com equipes especializadas na investigação de crimes, utilizando tecnologia e inteligência policial para identificar e prender criminosos”, diz, em nota.

A pasta afirma que os roubos na área da 3ª Delegacia Seccional (Oeste), que abrange o bairro, caíram 3,32% em janeiro, ante o mesmo período de 2024.
Ainda segundo a secretaria, no mesmo mês, 543 suspeitos de cometer infrações foram presos ou apreendidos na região – aumento de 14% em relação ao ano anterior, com 67 detenções a mais. “Além disso, 36 armas de fogo foram retiradas das ruas, reduzindo o risco de crimes violentos.”