PCC no Tatuapé: a vida de luxo, festas e execuções dos traficantes na zona leste de SP

Mais de 40 apartamentos no bairro e no Jardim Anália Franco, avaliados em até R$ 20 milhões, teriam sido usados para a lavagem de dinheiro; citados negam relação com o tráfico

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Foto do author Marcelo Godoy

O entregador chegou no meio da tarde ao apartamento do prédio da Rua Americana. Trazia caixas de vinho Pêra Manca, de champanhe Dom Pérignon e Louis Roederer Cristal e de uísque blue label, além de duas garrafas de cognac Louis XIII.

No Tatuapé, prédios foram alvo de investigações da polícia e do Ministério Público. Foto: Felipe Rau/Estadão

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O jovem deixou a encomenda de R$ 300 mil em bebidas feita pelo cliente, um empresário que enriquecera com postos de gasolina suspeitos de lavar dinheiro do traficante Gilberto Aparecido dos Santos, o Fuminho, ligado à cúpula do Primeiro Comando da Capital (PCC) e preso pela DEA, a agência antidrogas dos EUA, em Moçambique.

“As meninas estão chegando”, disse o dono do imóvel a um amigo, enquanto dava a gorjeta de R$ 200 e um pacote de notas de R$ 100 ao entregador. A festa ia começar – a hidromassagem estava cheia.

E a bebida foi paga em dinheiro vivo, que cheirava a naftalina. No dia seguinte, a Polícia Federal bateu na porta do empresário. Era a Operação Rei do Crime. No imóvel, os federais encontraram caixas de bebida ainda fechadas.

O Estadão não localizou a defesa de Fuminho. Em depoimento, ele negou elo com o PCC.

Fuminho é preso em Maputo, em abril de 2020; seu 'faz-tudo', conhecido como Alemão, foi detido seis meses depois pela PF no Tatuapé. Foto: Polícia Federal

O prédio da Rua Americana seria visitado ainda em outras três operações policiais. A última delas foi em 9 de abril, quando agentes da Receita Federal e do Ministério Público de São Paulo bateram em quatro unidades do prédio.

Quatro dos 52 alvos da Operação Fim da Linha moravam no mesmo edifício visitado pela PF em 2020. Desta vez, eles estavam ligados à lavagem de dinheiro do crime organizado na empresa de ônibus UPBus, uma das que teriam sido capturadas pelo PCC no transporte público de São Paulo.

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Pouco depois de ser relacionada ao alvo da PF, o mesmo apartamento apareceu em uma investigação do Grupo de Atuação Especial e Combate ao Crime Organizado (Gaeco), que tinha como alvo Sílvio Luiz Ferreira, o Cebola, da Sintonia Final das Ruas do PCC.

Desde que teve a prisão decretada por tráfico de drogas, Cebola está foragido. Já são dez anos escapando da polícia. A defesa de Cebola nega envolvimento com o tráfico ou com lavagem de dinheiro (leia mais abaixo).

É assim que os promotores descreveram a situação do chefão responsável pela lavagem de dinheiro do tráfico. “Ostentando a situação de foragido, que perdura por anos, Silvio (Cebola) utiliza várias manobras para a ocultação de sua verdadeira identidade, o que contribui para mantê-lo distante do cárcere, mas não impede o desfrute da liberdade em elevado padrão patrimonial”, aponta a investigação do MP.

Durante esta apuração, que mais tarde iria compor a Operação Fim da Linha, o Gaeco constatou que Cebola viveu com sua companheira e o filho em dois endereços “que foram alvos de cumprimento de mandados de busca e apreensão em 14 de setembro de 2020″. Nesses locais, Cebola se apresentava com a identidade de Rodrigo Augusto de Lima.

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“Os imóveis são repassados para parentes, amigos e integrantes do segundo escalão da facção”, afirmou o promotor Fábio Bechara. Foi seguindo a identidade falsa de Cebola que os investigadores chegaram a uma CNH tirada pelo traficante no Distrito Federal e a outras duas pessoas, ambas ligadas à UPBus, assim como a mulher do acusado, ela mesma acionista da empresa.

Cebola havia sido preso em 2012 pelo Departamento Estadual de Investigações sobre Narcóticos (Denarc), na sede da UPBus, com meia tonelada de maconha.

Além do apartamento da Rua Americana revistado duas vezes em 2020 – uma vez por ordem da Justiça Federal e outra por mandado de busca da 1.ª Vara de Crimes Tributários, Organização Criminosa e Lavagem de Bens e Valores da Capital –, a reportagem do Estadão encontrou outros 40 listados em 12 investigações da PF, da Polícia Civil, da Receita Federal e do Gaeco em endereços nobres do Tatuapé, do Jardim Anália Franco e da Vila Regente Feijó.

Trata-se de patrimônio de R$ 150 milhões a R$ 200 milhões.

O documento falso usado pelo traficante de drogas Sílvio Luiz Ferreira, o Cebola: ele foi usado para registrar apartamento no Tatuapé. Foto: Reprodução / Estadão

Alguns desses endereços se tornaram conhecidos das investigações policiais. É o caso de um edifício na Rua Marechal Barbacena. Um dos apartamentos do prédio foi relacionado ao empresário Admar de Carvalho Martins, apontado pelo Gaeco como um dos principais nomes dos esquemas de lavagem de dinheiro utilizados pela facção na região.

Carvalho é o maior acionista individual da UPBus, com R$ 7,1 milhões em cotas da empresa, que teria sido usada por ele para justificar o aumento de seu patrimônio - a defesa não foi localizada pela reportagem. Em depoimento, Carvalho negou elo com o PCC.

É o que dizem os promotores: “Admar declarou que recebeu, entre 2015 e 2022, rendimentos isentos decorrentes do suposto lucro da UPBus Qualidade em Transporte S.A. no importe de R$ 14.880.852,63. Entretanto, no mesmo período a empresa teve um prejuízo acumulado de R$ 5.031.195,80.”

O investigado usou metade de seu patrimônio declarado (R$ 20 milhões) em 2021 para constituir a empresa SPE 7.

Admar de Carvalho Martins é investigado sob a suspeita de lavagem de dinheiro do PCC no Tatuapé e na UPBus. Foto: Reprodução / Estadão

Em 3 de dezembro de 2020, a SPE 7 vendeu a uma empresa de um sócio de Admar um apartamento que havia sido adquirido da companheira do traficante internacional Ygor Daniel Zago, o Hulk, detido em 2021 com uma Ferrari na Riviera de São Lourenço, litoral norte de São Paulo.

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A prisão ocorreu durante a Operação Netuno, do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic). O departamento flagrou uma série de apartamentos da Rua Eunice Weaver, no Tatuapé, cujos verdadeiros donos estariam ocultos.

Um comerciante conta já ter levado ao Guarujá (SP) uma picape cheia de bebidas, encomenda feita por um corretor de imóveis que vendia apartamentos de alto padrão no Tatuapé. O entregador da adega ganhou R$ 600 de gorjeta.

É atrás da vida de luxo proporcionada pelos condomínios erguidos na área rica da zona leste que circula o dinheiro do tráfico transatlântico de drogas.

Os donos desse dinheiro levaram suas festas para coberturas e seus carros de luxo para as garagens. Tudo com muita ostentação. Trata-se de um estilo de vida que começa a incomodar moradores que sabem quem são os novos vizinhos.

As histórias circulam no bairro. É o caso da que envolve o executivo de uma empresa que decidiu vender o apartamento e se mudar depois que a esposa passou a ser cortejada por um novo morador do prédio, um traficante da facção que passou a deixar bilhetes no carro de sua mulher.

“Antes, a facção alugava casas-cofre para esconder o dinheiro do tráfico. Agora, compra imóveis que servem para abrigar seus integrantes e clientes. Eles são ainda usados como moeda em todo tipo de transação. Assim também com os carros de luxo. E com postos de gasolina, estacionamentos e restaurantes. Eles precisavam lavar o dinheiro do tráfico”, afirmou o delegado Marcos Casseb, do 30.º Distrito Policial, a delegacia do Tatuapé.

A maioria dos empreendimentos cobiçados pelos traficantes no Tatuapé fica próxima do Ceret, o antigo Centro Esportivo Recreativo Educativo do Trabalhador, parque planejado pelo jogador de futebol Leônidas da Silva, então funcionário da Secretaria do Trabalho do governo do Estado.

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Foi o Diamante Negro quem convenceu o governador Abreu Sodré a desapropriar a área de 286 mil m² e, depois, iniciar a construção do parque, que passou em 2008 para o Município.

Tiros de fuzil e enforcamentos: a morte no bairro

Ao mesmo tempo em que vivem e dão festas no bairro, os integrantes do PCC também acertam as contas nas disputas dentro da cúpula da facção. Foi a partir de 2018 que o bairro se transformou no palco das principais execuções de líderes do tráfico em São Paulo.

Tudo começou após os assassinatos de dois chefes da facção: Rogério Jeremias de Simone, o Gegê do Mangue e Fabiano Alves de Souza, o Paca, atraídos para uma emboscada e assassinados em Fortaleza.

Os responsáveis pelas mortes eram ligados a Fuminho e viviam no Tatuapé. Fuminho foi absolvido da acusação de mandar matar Gegê do Mangue e Paca.

O crime abriu uma disputa na facção e os autores dos assassinatos tiveram sua sentença de morte decretada. O primeiro a ser executado foi o traficante Wagner Ferreira da Silva, o Cabelo Duro, executado a tiros de fuzil em frente ao Blue Tree Tower, no Jardim Anália Franco, em fevereiro de 2018.

No dia 23 de julho foi a vez de Cláudio Roberto Ferreira, o Galo Cego, de 38 anos, também implicado na execução de Gegê do Mangue. Galo foi atacado por dois homens que dispararam cerca de 70 tiros de fuzil em seu carro, estacionado na Rua Coelho Lisboa, também no Tatuapé.

Os fuzilamentos se sucederiam na região. Foi na Praça 20 de Janeiro, a poucos metros de onde hoje está um dos principais pontos das baladas do bairro, o Bar do Bololô, empreendimento do funkeiro MC Ryan, que o narcotraficante Anselmo Santa Fausta, o Cara Preta, e seu motorista Antonio Corona Neto, o Sem Sangue, foram assassinados em 27 de dezembro de 2021.

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A facção decidiu vingar a morte de Cara Preta: levou ao tribunal do crime o pistoleiro responsável pela execução: Noé Alves Schaum foi decapitado em 2022 e sua cabeça deixada na mesma praça onde o traficante fora assassinado. O corpo esquartejado foi deixado com um bilhete em Mogi das Cruzes.

Bilhetes deixados pelo PCC ao lado do corpo esquartejado de Noé Alves Schaum, o homem acusado de ter sido contratado para matar Anselmo Santa Fausta, o Cara Preta. Foto: Reprodução/Polícia Civil

Não parou aí. Outro traficante ligado aos negócios da facção no bairro, Cláudio Marcos de Almeida, o Django, apareceu enforcado embaixo de um viaduto. “Normalmente, essas pessoas são induzidas a se matar. Ou fazem isso ou matam seus familiares”, afirmou o delegado Luis Storni.

Além de Django, um importante integrante da facção foi obrigado a se matar no bairro. Era 4 de maio de 2023 quando Rafael Maeda Pires, o Japonês do PCC, mandou uma mensagem para a mulher: “Cuida bem da nenê. Eu te amo”.

Maeda era apontado pela polícia como um dos chefes do tráfico de drogas da comunidade Caixa D’Água, em Cangaíba. Era ainda responsável pelo tribunal do crime da facção, que atuava na zona leste. Horas depois da mensagem para a mulher, Maeda foi encontrado morto com um tiro de pistola dentro de seu Corolla, no estacionamento de um prédio comercial, na região do Tatuapé.

Ao lado do carro, os peritos encontraram 18 bitucas de cigarro. Ninguém foi até agora condenado por esses crimes.

Defesa de Cebola nega elo com o tráfico

Ao Estadão, o criminalista Anderson Minichillo, que defende Cebola, afirmou que seu cliente nunca teve nenhum imóvel no Tatuapé nem morou na região. Também negou que a UPBus tenha usado dinheiro do tráfico de drogas e lavado dinheiro da facção.

A reportagem não conseguiu localizar a defesa de Admar de Carvalho Martins e a de Gilberto Aparecidos Dos Santos. Em seus depoimentos, eles negaram qualquer relação com o PCC.

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