Pinheiros e Ipiranga: mais construtoras terão multa milionária por desvirtuar prédio de baixa renda

MP denunciou Prefeitura de SP na Justiça por indícios de fraude em benefício fiscal autorizado para quase meio milhão de apartamentos. Gestão Nunes afirma atuar para punir fraudes; empresas dizem seguir legislação

PUBLICIDADE

Foto do author Priscila Mengue
Atualização:

Além das duas primeiras multas milionárias divulgadas nessa quinta-feira, 30, mais três empreendimentos paulistanos foram notificados de que receberão “sanções de cancelamento da isenção ou redução do fator de interesse social, bem como a sua cobrança em dobro a título de multa”, entre o fim de dezembro e janeiro deste ano. Os casos envolvem uma investigação de mais de dois anos do Ministério Público de São Paulo (MP-SP), que acionou a Prefeitura da capital por “negligência” na fiscalização de possíveis fraudes na destinação de milhares de apartamentos que receberam incentivos municipais para a habitação de baixa renda.

PUBLICIDADE

Os valores das novas penalidades ainda não foram divulgados. As sanções envolvem o Houx Pinheiros (da Tecnisa) e o Viva Benx Pinheiros, ambos na zona oeste paulistana, além do Famile Gentil 300 (da Consthruir), no Alto do Ipiranga, zona sul. Os imóveis em investigação são majoritariamente microapartamentos (grande parte com menos de 30 m²) em bairros de classe média, tipo de construção que teve “boom” nos últimos anos.

Os responsáveis pelo Viva Benx Pinheiros (e pelo Viva Benx Lapa, multado em R$ 13,3 milhões na quinta) afirmaram ter “compromisso com o cumprimento da lei e com as necessidades habitacionais da população”. Dizem ainda seguir “rigorosamente a legislação vigente no desenvolvimento das unidades habitacionais de interesse social, atendendo aos critérios e normas estabelecidas pela Prefeitura, permitindo a venda para pessoas enquadradas nos critérios do HIS / HMP, bem como a venda para locação social”.

Em nota, a Tecnisa afirmou que as “unidades foram destinadas regularmente” e acrescentou que apresentará defesa no processo no prazo legal e adotará “medidas legais cabíveis”. O Estadão não conseguiu contato com a Consthruir. A gestão Ricardo Nunes (MDB) vem afirmando que atua para punir fraudes (leia mais abaixo).

Publicidade

Viva Benx Pinheiros fica na Avenida Eusébio Matoso, em frente ao Shopping Eldorado Foto: Taba Benedicto/Estadão

Em ação civil pública na terça-feira, 28, a Promotoria requereu a suspensão da política de incentivos fiscais e urbanísticos municipais para a construção de edifícios com apartamentos para a Habitação de Interesse Social (HIS) — famílias com renda mensal de um a seis salários mínimos — e Habitação de Mercado Popular (HMP) — até dez salários mínimos.

O pedido de liminar ocorreu após a Promotoria identificar indícios de fraude e “falta de controle” na disponibilização do benefício, com possível “enriquecimento ilícito” de construtoras. Os incentivos para a construção desse tipo de moradia foram autorizados pela Prefeitura para mais de 446,5 mil unidades entre agosto de 2019 e outubro de 2024 (não há números sobre o período anterior, embora parte do benefício tenha sido criada no Plano Diretor de 2014).

Desse montante, ao menos 143,3 mil estão prontas e 303,1 mil foram licenciadas ou estão em construção. Não se sabe, contudo, o número de unidades que não respeitaram a legislação, tampouco o valor estimado de incentivos urbanísticos e fiscais concedidos aos empreendimentos.

A Prefeitura tem destacado que instaurou 200 processos sobre possíveis irregularidades desde o ano passado, com ao menos 14 mil notificações. Também salientou que a revisão do Plano Diretor, em 2023, teria reforçado regras para garantir que essas habitações sejam destinadas a famílias de baixa renda, exigindo comprovação da faixa de renda e averbação da tipologia do imóvel por 10 anos.

Publicidade

Na quinta, Nunes chamou os casos penalizados de “ato criminoso”. Destacou, ainda, que a gestão apura outros casos denunciados pelo MP e disse que pedirá à Procuradoria Geral do Município para entrar com ação de danos morais contra os empreendimentos. “Temos uma política pública e eles, de certa forma, por uma conduta ilegal, acabaram atrapalhando a política habitacional. Também devem responder criminalmente sobre isso”, afirmou em agenda pública sobre outro tema.

As penalidades já anunciadas envolvem os empreendimentos B.Side Faria Lima, na Avenida Eusébio Matoso, em frente ao Shopping Eldorado, e Viva Benx Lapa, na Avenida José Maria de Faria, nas proximidades da Marginal do Tietê. Ao todo, somam mais de R$ 31 milhões, mas os valores devem aumentar, visto que ainda deve ser calculada a parte de ISS (Imposto sobre Serviços), feita pela Fazenda.

Desde o Plano Diretor de 2014, empreendimentos voltados a esse tipo de apartamentos têm descontos e até isenção de outorga onerosa (principal taxa cobrada do mercado imobiliário, que pode chegar à casa de alguns milhões em bairros valorizados). Há, ainda, diversos incentivos construtivos atrativos para o setor — que favorecem, em especial, uma verticalização mais acentuada.

O procedimento de fiscalização do Município oficialmente foi estabelecido em portaria publicada em outubro do ano passado. Os casos multados começaram a ser apurados, contudo, alguns meses antes, a partir de encaminhamentos do MP-SP. “É certo que vem ocorrendo em larga medida”, tem apontado.

Publicidade

PUBLICIDADE

Ao ingressar com a ação, a Promotoria apontou a falta de punição a casos suspeitos durante uma década da lei que criou os novos incentivos. “Há absoluta ineficiência administrativa em controlar fraudes”, avalia. “A confessada falta de controle da política pública está possibilitando, por um lado, que construtoras que descumprem a legislação aplicável enriqueçam ilicitamente e, por outro, que as famílias vulneráveis (público-alvo) sejam preteridas no acesso à moradia.”

A gestão Nunes tem sido informada sobre supostas irregularidades desde a abertura do inquérito no MP, em 2022. Em dezembro, segundo consta do processo, comunicado interno da Prefeitura disse que iria deflagrar uma licitação para possivelmente terceirizar a fiscalização.

A ação judicial é pela suspensão da política municipal até que seja revista. “Essa privatização dos lucros e socialização dos prejuízos é resultado de uma política pública mal formulada e que pode estar gerando vultosos prejuízos ao erário, sendo também fruto, inexoravelmente, da falta de avaliação técnico-financeira. Nesse contexto, questões como eficácia, economicidade e eficiência jamais foram verificadas pelo requerido”, argumenta.

B.Side Faria Lima foi multado pela Prefeitura Foto: Taba Benedicto/Estadão

Quais são os empreendimentos que receberam aviso de sanção?

As sanções têm sido determinadas com a explicação de que receberam “diversas vantagens (isenção tributária de ISS e isenção urbanística referente à outorga onerosa) para, em contrapartida, alienar as unidades para famílias de baixa renda”. “Sem que o público-alvo tenha sido atendido, não se justifica a subsistência das benesses legais, como corolário do princípio da proporcionalidade e razoabilidade”, completa a justificativa.

Publicidade

As situações envolvem a venda de unidades para pessoas acima da faixa de renda e, também, de mais de um apartamento para a mesma família. Nos processos, há, ainda, a apuração de aluguel (tradicional e de curta temporada) e venda pelos proprietários por valores muito acima dos equivalentes a uma habitação de interesse social, os quais são anunciados em plataformas virtuais especializadas.

Uma das novas sanções é para o Fernão Dias Empreendimentos Imobiliários, cujo nome fantasia é Houx Pinheiros, na Rua Fernão Dias. O empreendimento é da Tecnisa, nas proximidades do Largo da Batata e da Estação de Metrô Faria Lima.

O prédio tem cerca de 25 andares. Ao todo, é composto por 271 unidades habitacionais, das quais 217 são HIS-2, 26 são HMP e 28 são apartamentos sem restrição de renda.

À esquerda, o empreendimento Houx Pinheiros Foto: Google Street View/Reprodução

No Houx Pinheiros, identificou-se ao menos dois casos de venda para famílias com renda superior, além de uma mesma família ter comprado mais de um imóvel e outros dois terem sido adquiridos por pessoa jurídica. No processo, também há sete exemplos de anúncios de apartamentos em plataformas virtuais, com aluguel próximo de R$ 5 mil e venda que chega a R$ 750 mil.

Publicidade

Já o Viva Benx Pinheiros fica na Avenida Eusébio Matoso, em frente ao Shopping Eldorado. O nome oficial do empreendimento é M.A.R. Evora. Segundo informações da Prefeitura, teria recebido incentivos para a construção de 177 apartamentos para HIS-2 (três a seis salários mínimos) e 19 para HMP (até 10 salários mínimos).

À Prefeitura, os responsáveis pelo empreendimento responderam que os comprados assinam termo em que declaram renda familiar mensal bruta de até R$ 6 mil. Os documentos entregues foram, contudo, considerados insuficientes. Foram identificados ao menos dezesseis apartamentos HIS-2 com indícios de comercialização para famílias com renda superior ao previsto pela lei municipal, além de dois imóveis vendidos para a mesma família.

Ao menos outros três empreendimentos Viva Benx estão em apuração em inquérito do MP-SP: o Viva Benx Vila Olímpia, o Viva Benx Vila Leopoldina e o Viva Benx Faria Lima. Na quinta, o Viva Benx Lapa foi penalizado em R$ 13,3 milhões como um dos casos que se “beneficiaram de isenção de impostos para construir unidades habitacionais à população de baixa renda, mas desvirtuaram o processo comercializando moradias a pessoas que não se encaixavam”, segundo comunicado da Prefeitura.

A Consthruir foi notificada, por sua vez, por um empreendimento na Avenida Doutor Gentil de Moura, em frente à Estação de Metrô Alto do Ipiranga. O edifício tem sido anunciado com o nome de Famile Gentil 300, com unidades de cerca de 35 m².

Publicidade

O empreendimento tem licença para 72 apartamentos HIS e outros 81 no perfil HMP. “Não foram apresentados dados passíveis de comprovação da destinação correta das faixas de renda”, diz relatório da Prefeitura. No processo, são mencionadas unidades anunciadas para venda com valores de mais de R$ 400 mil e aluguel acima de R$ 3 mil mensais.

À direita, o empreendimento Famile Gentil 300, no Alto do Ipiranga Foto: Google Street View/Reprodução

‘Fake HIS’ e ‘padrão reiterado de ilegalidades’

No processo aberto pelo MP, é mencionada uma expressão do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (Labcidade) da USP: “fake HIS”. Os pesquisadores da Faculdade de Arquitetura de Urbanismo têm falado em “social housing washing”, com possível maquiagem que daria indevida aparência de produção de moradia popular a uma política que incentivou imóveis utilizados por outra parcela da população.

Fala-se em “grande número de casos fraudulentos detectados pelos serviços extrajudiciais”. No ano passado, após solicitar notificação dos cartórios paulistanos, a Promotoria recebeu, em menos de dois meses, mais de 560 casos de imóveis e empreendimentos suspeitos.

“De forma deliberada ou não, (a Prefeitura) vem negligenciando seu dever legal de fiscalizar e controlar sua própria política habitacional, deixando de garantir que seu público-alvo seja atendido e de punir os infratores (construtoras e terceiros adquirentes)”, aponta o MP.

Publicidade

“Unidades colocadas à venda pelo mercado imobiliário como HIS e HMP têm metragem (em geral) entre 24 e 30 m², não raras vezes por valor que ultrapassa R$ 20 mil por metro quadrado. Essa tipologia e preço evidenciam-se claramente, em princípio, como sendo incompatíveis com famílias que recebem de três a seis salários mínimos”, também destaca.

Na ação, o MP compara que o Plano Diretor de 2014 fez grande alteração na política de produção privada de HIS na cidade, ante a legislação anterior, de 2002. Se antes essa possibilidade envolvia convênios e consórcios junto ao poder público, passou a não ter exigência de regulação de oferta e demanda pelo Município e ainda ampliou a gama de incentivos.

“O desenho da política municipal destinou ao mercado a tarefa de controlar se indivíduos e famílias que adquirem as unidades de HIS estão ou não inseridos adequadamente nos critérios de renda estipulados pela legislação”, argumenta a Promotoria.

Também assinala que os incentivos atuais estariam “direcionados apenas ao agente produtor de HIS – e não aos beneficiários”. “Condicionam (viabilizam) a construção a um custo de empreitada bastante inferior, trazendo maior rentabilidade ao incorporador, nem sempre alcançando, porém, o objetivo da norma, que é o de aumentar a oferta de moradias a preços condizentes aos destinatários do citado programa social.”

Publicidade

O que o MP defende?

Na ação, o Ministério Público aponta que a política de incentivo precisa ser suspensa temporariamente por ter sido “mal desenhada”. Descreve, também, a “precariedade no exercício de seu poder fiscalizatório” pela gestão municipal.

Por isso, defende que a suspensão deveria ocorrer até o desenvolvimento de um “sistema seguro e eficiente de fiscalização pública de adquirentes e locatários”. Além disso, aponta a necessidade de definir controle de preços de venda de unidades e locações.

“Não deve continuar sendo implementada até que o poder público adote novos mecanismos de controle e aferição de resultados, visando corrigir seu rumo ou, então, descontinuá-la”, destaca. “Quando o desenho da mesma política permite que desvirtuamentos passem desapercebidos como regra, é imperioso que todo esse desenho seja revisto com máxima presteza.”

A petição é assinada por Marcus Vinicius Monteiro dos Santos, Camila Mansour Magalhães da Silveira, Roberto Luís de Oliveira Pimentel e Moacir Tonani Junior, promotores de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital. Na avaliação deles, a situação resulta em danos sociais.

“Um universo indeterminado de famílias pobres foram impossibilitadas de ter acesso à moradia por conta dos valores exorbitantes estipulados, unilateralmente, pelo mercado imobiliário para aqueles imóveis”, assinalaram. “Está servindo para beneficiar (em grande parte) construtoras e pessoas de alta renda.”

Em resumo, o MP aponta os seguintes problemas em relação a essa política pública:

  • inexistência de fiscalização se as unidades de HIS ou HMP estão sendo alienadas ou locadas para as famílias que se enquadram nas respectivas faixas de renda;
  • falta de controle público dos preços das unidades habitacionais produzidas pelo setor privado a partir dos incentivos públicos concedidos;
  • ausência de controle sobre o volume de incentivos públicos concedidos;
  • não punição de infratores (empreendedores e adquirentes dos apartamentos);
  • inexistência de indicadores de desempenho;
  • desconhecimento sobre os efeitos da política municipal.