A transformação de bairros da zona sul de São Paulo pode entrar na pauta da próxima semana na Câmara Municipal. Há expectativa de que os vereadores aprovem em 2.ª votação projeto de lei que prevê incentivos para a verticalização de Santo Amaro, Interlagos e da Vila Andrade.
A proposta ainda inclui a criação e o prolongamento de vias, a implantação de cinco parques e a remoção de famílias de áreas de risco para habitação de interesse social. A estimativa é captar cerca de R$ 1,9 bilhão para obras na região. Um dos objetivos é um aumento populacional de 56,2% em 30 anos, de 135 mil para 211 mil habitantes.
Na paisagem urbana, a proposta impulsionará o avanço de prédios mais altos onde hoje há pequenos comércios, antigas indústrias, terrenos considerados subutilizados e casas. A lista de locais com mais incentivos para serem transformados inclui o centrinho de Santo Amaro, algumas quadras das Avenidas das Nações Unidas, João Dias e Guido Caloi e as proximidades da Estação Autódromo, da Linha 9-Esmeralda, dentre outros.
Enviado aos vereadores em 2018 pelo então prefeito Bruno Covas (PSDB), o chamado Projeto de Intervenção Urbana (PIU) Arco Jurubatuba iria passar pela última audiência pública na Câmara na manhã desta quinta-feira, 18, mas a atividade foi cancelada na véspera. Há a discussão entre os vereadores sobre apresentar um novo texto, o qual seria submetido para apreciação final na próxima quarta-feira, 24. A aprovação em primeira votação pelos vereadores ocorreu em abril do ano passado, com 42 votos favoráveis, seis contrários (da bancada do PSOL) e uma abstenção.
A retomada do projeto de lei ocorre no momento em que o prefeito Ricardo Nunes (MDB) busca acelerar investimentos e obras, com a proximidade do pleito em que tentará reeleição e o atraso no cumprimento das metas. O prefeito tem conseguido ampla maioria na Câmara para aprovar projetos urbanísticos, como o PIU do centro, mas o projeto foi contestado pela remoção da população de baixa renda sem encaminhamento imediato para moradia definitiva e a falta de estudo de impacto ambiental
O projeto de lei do PIU Arco Jurubatuba esteve parado no último ano em parte pela judicialização. Com o argumento de que o PIU se encaixa em regra federal que exige Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (Eia/Rima) para projetos de grandes dimensões, o Ministério Público de São Paulo obteve liminar para suspender a tramitação na Câmara. Esse tipo de levantamento é feito há décadas para as operações urbanas, por exemplo, como as da Água Branca e Faria Lima.
Em março, contudo, o Supremo Tribunal Federal (STF) apontou que a Justiça não poderia barrar o andamento de um PL, mas não entrou no mérito do motivo do ajuizamento da ação. A Prefeitura tem argumentado que os PIUs são planos, não projetos, o que é refutado por uma parte de urbanistas. Além disso, a Secretaria do Verde e do Meio Ambiente destacou, em nota, que o PIU Arco Jurubatuba ajudará na recuperação da “qualidade dos sistemas ambientais existentes e qualificar o ambiente urbano por intermédio da preservação e recuperação das APPs dos rios e represas”.
Ao Estadão, Nunes argumentou que o PIU terá impacto positivo para facilitar a mobilidade no entorno das represas Billings e Guarapiranga. Também citou reunião com a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Rosa Weber, na qual havia pedido posicionamento sobre a judicialização do projeto de lei.
“Vamos fazer a reurbanização de muitas favelas. Vai ter ganho na qualidade habitacional. Vamos melhorar a questão da logística e da mobilidade, com interligação de um patrimônio enorme da cidade, que é a Represa Billings, com o Rio Pinheiros”, disse o prefeito. “Vamos melhorar e garantir o emprego. As áreas industriais (marcadas no zoneamento como tal) serão preservadas e vai se incentivar mais empregos na região”, descreveu.
Nas audiências públicas, um dos pontos mais criticados por moradores e associações foi a remoção de famílias sem definição sobre se serão destinadas diretamente a moradias definitivas. Isso porque há recusa em sair de casa para receber auxílio-aluguel enquanto se aguarda a construção de unidades por um tempo indeterminado.
A vereadora Luana Alves (PSOL) avalia que esse é o principal problema: o PIU não garante que a remoção das famílias será “chave a chave” e, portanto, poderá gerar o deslocamento de milhares de pessoas para outras áreas de risco enquanto estão na fila pelo atendimento habitacional. Hoje, cerca de 40 favelas estão na área de abrangência do projeto.
Em nota, a Secretaria Municipal de Habitação apontou que “todas as famílias que se encontrarem no perímetro do PIU, independentemente de qual seja, terão direito ao atendimento provisório e definitivo, desde que sofram com eventuais intervenções e estejam de acordo com as disposições legais e o consequente atendimento de todos os critérios para inclusão no auxilio-aluguel e posterior atendimento habitacional definitivo”.
Na prática, algumas das transformações associadas ao PIU Arco Jurubatuba foram autorizadas em projetos de lei à parte – como o que libera a concessão do complexo do autódromo e o que facilita prolongar a Marginal do Pinheiros, às margens do Rio Jurubatuba. Também há propostas ligadas ao projeto em desenvolvimento pela Prefeitura há mais de um ano, como a futura reforma das calçadas, praças e áreas públicas do eixo histórico de Santo Amaro.
Projeto de lei incentiva prédios e parque junto à autódromo de Interlagos
O PL também instituirá o Projeto Estratégico Interlagos, com regras específicas para a área do complexo que inclui o autódromo, o que tem gerado resistência por parte de associações ligadas ao automobilismo, principalmente por permitir o encerramento do kartódromo (ligado à história de Ayrton Senna). Entre as mudanças, estão a liberação para construir prédios e a implantação de um parque em parte do local.
A princípio, essas mudanças seriam viabilizadas por meio de concessão pública, aprovada em projeto de lei em 2019. Ao Estadão, a gestão Nunes confirmou ter desistido desse modelo de parceria público-privada, mas não há impedimento de que a medida seja retomada por outro prefeito.
No PIU, há um trecho que destaca que a a realização de esportes a motor será mantida, mas “associada à implantação de parque público e à promoção da urbanização e regularização das áreas demarcadas como ZEIS-1 (Zona Especial de Interesse Social) em seu entorno”, com “a interconectividade dos empreendimentos do autódromo por intermédio de passagens acessíveis (para pedestres e ciclistas) sobre ou sob a pista”.
Estudo de referência feito pela Prefeitura em 2018 sugere, por exemplo, um centro comercial e um complexo empresarial em áreas hoje consideradas subutilizadas. No lugar do kartódromo, a projeção sugere um “novo bairro” residencial. Ao todo, são 135 mil m² de área edificável.
Também é destacado no PL que a visibilidade da pista pelos expectadores deve ser preservada, “manejando as cotas altimétricas de empreendimentos que venham a se instalar no perímetro do autódromo”. Além disso, a criação do Parque Interlagos deve envolver a recuperação de cursos d’água.
Os prazos para as mudanças deverão ser definidos em contrato ou lei específica, com exigência de que ao menos 40% dos recursos obtidos pela Prefeitura sejam voltados à urbanização e regularização das áreas de habitação de interesse social. Além disso, o projeto autoriza prédios de até 48 metros na vizinhança.
Projeto propõe verticalizar áreas que somam 1,4 hectare
A implementação desse e outros PIUs é prevista no Plano Diretor, de 2014. O Arco do Jurubatuba abarca área de 2,1 hectares - 1,41% do território paulistano. Desse total, 1,4 hectare é voltado à verticalização, enquanto o restante contempla vias públicas, áreas de preservação e afins.
Em geral, não há edificações com mais 28 metros de altura no perímetro do projeto. Com a aprovação, grande parte das áreas permitirá construções de 48 metros e até sem limite de gabarito, a depender da quadra.
Um dos pontos mais defendidos pela Prefeitura é que os PIUs atrairão o interesse do mercado imobiliário, hoje concentrado no entorno de estações de metrô, acessos de trem e corredores de ônibus. Em áreas de PIUs, incentivos para esses “eixos de transporte” dependem da aprovação do projeto de lei, o que tem travado a verticalização.
Entre os objetivos do PIU, estão mudanças em “porções do território com grande potencial de transformação econômica e dos padrões de ocupação do solo”, o estímulo à produção habitacional (preferencialmente para a população de baixa e média renda), o “desenvolvimento de novas centralidades em áreas de usos predominantemente residenciais e industriais” e o direcionamento dos investimentos públicos e privados para “incrementar a oferta de empregos”, reduzindo os deslocamento na cidade.
A proposta é dividida em três áreas de intervenção, com regramentos, conselhos gestores e subdivisões distintas: Vila Andrade, Jurubatuba (que inclui Santo Amaro e é a maior área do PIU) e Interlagos. Uma estimativa da Prefeitura prevê aumento construtivo de 5,3 milhões de metros quadrados, dos quais 2,2 milhões concentrados nos subsetores Santo Amaro e Eusébio Stevaux (entorno da avenida de mesmo nome).
Da mesma forma, a previsão de arrecadação com venda de outorga onerosa (cobrada para construir acima do limite básico) é maior nesses mesmos subsetores. Juntos, ambos concentram cerca de 62,8% da estimativa de arrecadação de R$ 1,9 bilhão, que está na “perspectiva conservadora”.
Segundo relatório da Prefeitura, a concentração na região de Santo Amaro e arredores se deve aos “poucos terrenos para transformação” na Vila Andrade, “devido à grande atividade imobiliária que ocorreu nos anos recentes” no bairro, vizinho do Morumbi. No distrito, também há famílias em área de risco no entorno do “linhão”, por onde passa a transmissão de energia da CTEEP. Em Interlagos, a explicação é a “pouca possibilidade de transformação” dos terrenos “dada a estrutura de formação da região”.
Os valores arrecadados serão destinados ao Fundo de Desenvolvimento Urbano (Fundurb), que destina 30% dos recursos da habitação para a população de baixa renda e outros 30% para mobilidade urbana. A gestão Nunes defende mudanças, para investir parte do total em asfalto, o que foi suspenso na Justiça.
Além de aumento populacional, o PIU também prevê transformar algumas áreas da região em espaços verdes de lazer, com seis novas praças e cinco parques. Os novos parques são:
- Parque na Rua Clemente Rocha, com 19,8 mil metros quadrados;
- Orla Guarapiranga - Core Guarapiranga: entre as Rua Domingos Jorge e Ptolomeu, com 14 mil metros quadrados;
- Orla Jurubatuba: com sete trechos, que somam cerca de 662 metros quadrados de parque linear;
- Parque Telefunken (lote da antiga fábrica da Telefunken): em terreno na Avenida Nossa Senhora de Sabará, com 153,7 mil metros quadrados;
- Parque do Aterro: entre a linha do trem e o Rio Jurubatuba, com acesso pela Rua Zacarias Daça.
O PIU também prevê prolongar e implantar mais de 60 vias, duas pontes e quatro ciclopassarelas. Segundo a Prefeitura, essas mudanças melhoram a comunicação entre os bairros do entorno, dificultada em parte pelos grandes lotes industriais e terrenos subutilizados, principalmente com as novas travessias sobre os Rios Guarapiuranga e Jurubatuba. Entre as mudanças de viário previstas, estão:
- implantação de via estrutural e ponte sobre o Rio Guarapiranga – desde a Avenida Guido Caloi, nas proximidades da Estação Santo Amaro;
- implantação de ponte (em sentido oposto à Ponte Transamérica) na direção da Avenida Mario Lopes Leão, desde a Rua Engenheiro Francisco Pitta Brito até a Avenida Guido Caloi;
- implantação de ciclopassarela sobre o Rio Guarapiranga, como prolongamento da R. Ptolomeu;
- implantação de três ciclopassarelas sobre o Rio Jurubatuba, junto à Estação Socorro, da CPTM, junto à Estação Jurubatuba, da CPTM e nas proximidades do Parque do Aterro;
- implantação da Via Parque, com o prolongamento da Avenida Atlântica, desde o Largo do Socorro até a Avenida Guido Caloi;
- prolongamento da Rua Amador Bueno – desde a Rua Engenheiro Francisco Pitta Brito até a Avenida das Nações Unidas.
No caso das famílias removidas de áreas demarcadas como de interesse social, o PIU deverá realocá-las dentro de seu perímetro expandido. Há, ainda, a previsão de incentivos para a permanência e implantação de indústrias em áreas cujo zoneamento sugere esse uso, com a objetivo municipal de que apostem em inovação tecnológica, dentre outras mudanças.
Perto de eixo corporativo, região deve atrair mercado imobiliário
Presidente da Câmara e um dos proponentes da inclusão do PIU Arco Jurubatuba no Plano Diretor, Milton Leite (União Brasil) disse ao Estadão que o texto substitutivo do PL da gestão Covas terá apenas “pequenas alterações”, como no desenho de alguns perímetros. Ele defende que o projeto é “fundamental” para a região, a fim de promover melhorias na habitação e no sistema viário.
“É a região mais atrativa da cidade e o PIU permitirá que possamos investir recursos em regiões carentes”, afirma. “Temos de entender que São Paulo não é mais uma cidade de indústria, é de serviços entretenimento e turismo. Temos de incentivar isso a todo instante”, diz.
Assessor executivo do Secovi-SP (que representa o setor das incorporadoras), Eduardo Della Manna comenta que o avanço do setor corporativo a partir das Avenidas Engenheiro Luiz Carlos Berrini e Chucri Zaidan deve se espalhar para partes do PIU. “Está se estendendo para aquele vetor”, pontua. “Mas isso não impede de gerar alternativas de mais emprego em outros setores, como na prestação de serviços.” Como o Estadão mostrou, o entorno desses locais é um dos que mais foi transformado na cidade nos últimos anos, como no Brokllin.
Della Manna avalia que a região pode sofrer grande transformação como na Água Branca (também de passado industrial). “Os lotes de grandes dimensões impedem isso e, com o PIU, o reparcelamento (divisão em vários lotes) e a abertura novos viários melhoram essa situação.”
Na prática, as transformações esperadas pelo PIU devem vir inicialmente do setor privado até chegar ao investimento público, que dependerá do avanço do mercado para arrecadar recursos via outorga onerosa, por exemplo. Não há prazos para a realização das obras viárias e a implantação dos parques.
Urbanista e doutoranda na USP, Simone Gueresi avalia que o texto do projeto é mais detalhado nesse campo do que, por exemplo, a destinação das famílias que serão removidas. “Os parâmetros vão ser mudados, ou seja, o mercado vai ser mais estimulado. Isso é bem detalhado e negociado na lei”, diz. “O poder público nesses arranjos fica responsável pelas obras de interesse coletivo, como de espaços públicos. A alteração no tecido urbano é de responsabilidade do mercado”, explica.
Simone compara que o PIU Jurubatuba é quase como se fosse composto de três operações urbanas consorciadas, pelas diferentes características dos locais e desenho da lei. A grande dimensão, diz ela, dificulta a identificação de demandas e necessidades mais locais. “Propõe a transformação para uma área da cidade com base na flexibilização nas regras que são gerais pra cidade, muda índices, padrões uso do solo.”
Além disso, por abarcar área grande e diversa, o PIU inclui normas que envolvem uma série de atores públicos, criando o que a pesquisadora chama de “matrioskas” urbanísticas. O principal exemplo são as regras para o complexo do autódromo, cujos parâmetros específicos deverão ser objeto de outra lei. “É um instrumento dentro do outro. Isso dificulta saber o que será feito exatamente.”
Pesquisadora do PIU Jurubatuba no mestrado pela Mackenzie, a urbanista Raquel Chaves avalia que o PIU tem potencial para melhorar gargalos da região, como nas dificuldades de mobilidade e em problemas ambientais, ao incentivar a descontaminação do solo e prever a implantação de parques lineares. Ela também avalia que a região é hoje “muito segregada” por conter grandes lotes industriais, que não necessitam mais de tanta área.
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