PM de São Paulo vai usar a partir deste mês câmera que permite ao policial interromper gravação

Edital da gestão Tarcísio prevê uso de tecnologia diferente da atual. Especialistas veem risco à investigação de eventuais abusos; governo diz que novas bodycams são mais modernas e afirma se basear em estudos

PUBLICIDADE

Foto do author José Maria Tomazela
Foto do author Ítalo Lo Re
Atualização:

A Polícia Militar de São Paulo passa a usar neste mês um novo modelo de câmeras nas fardas que permite ao agente de segurança interromper a gravação durante uma ocorrência. Esses equipamentos foram comprados após edital da gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) publicado em maio. A tecnologia anterior, adotada no Estado desde 2020, não permite pausas na gravação.

Especialistas apontam que a brecha pode prejudicar a qualidade e a eficácia do registro da ocorrência. A Secretaria da Segurança Pública, por sua vez, afirma que os equipamentos são mais modernos e têm novas funcionalidades, como reconhecimento facial e leitura de placas.

Modelo atual será substituído por câmera que permite interromper gravação Foto: Taba Benedicto/Estadão

PUBLICIDADE

Na época do lançamento do edital, a pasta disse ter levado em conta estudos técnicos. Afirmou ainda que avaliações apontaram problemas relativos à autonomia da bateria do modelo atual e à capacidade de armazenamento no cenário da gravação contínua.

O Estado tem registrado alta da letalidade policial – 496 mortes por PMs de janeiro a setembro, o maior número desde 2020. Uma série de casos no último mês, além disso, reforçou o alerta.

Publicidade

Entre eles, estão a morte de uma criança de 4 anos em Santos, de um estudante de Medicina em um hotel da capital e o flagra de um PM atirando um homem de uma ponte na zona sul da capital. O governo diz investigar todos os casos e afirma não tolerar abusos.

Apesar da crise, Tarcísio afirmou nesta quarta-feira, 4, que vai manter Guilherme Derrite à frente da Secretaria da Segurança Pública. O governador justificou que os índices criminais – como roubos e furtos – têm melhorado.

A pasta prevê adquirir 12 mil novos equipamentos para substituir as 10.125 câmeras portáteis já usadas nas fardas, “incremento de 18,5%”. A primeira fase de implementação, até o fim do ano, prevê uso de 2,5 mil equipamentos, conforme a própria pasta.

Para especialistas ouvidos pelo Estadão, um dos principais erros do governo foi não ter fortalecido o programa de câmeras. Tarcísio chegou a questionar a efetividade dos equipamentos, mas depois disse que manteria o modelo.

Publicidade

Em ação no Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Luís Roberto Barroso deu ao governo paulista até esta semana para detalhar o contrato de fornecimento das chamadas bodycams.

As diretrizes do Ministério da Justiça preveem que os equipamentos sejam acionados preferencialmente de forma automática e realizar gravações ininterruptamente.

Segundo a gestão Tarcísio, por sua vez, boa parte das imagens geradas pela gravação ininterrupta não interessam às investigações, elevando o custo com armazenamento e o tempo para que fiquem disponíveis no sistema.

O novo edital foi vencido pela Motorola Solutions. Procurada pela reportagem, a empresa não falou.

Publicidade

O custo do programa para o governo será de R$ 4,3 milhões mensais – um total de R$ 105 milhões, com duração de 30 meses, contados a partir de 18 de setembro deste ano.

Em novembro, a Defensoria Pública de São Paulo pediu ao STF que obrigue o governo a adotar câmeras em fardas de policiais militares envolvidos em operações. Os PMs que agiam na operação que terminou com a morte de Ryan Andrade, de 4 anos, em Santos, não usavam câmeras, por exemplo.

“O governador, na época da campanha, uma hora falava que acabaria com o programa de câmeras; outra hora falava em manter. Não tinha posicionamento firme”, disse Leonardo Carvalho, pesquisador sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Além de fortalecer o programa de bodycams, especialistas defendem preparar melhor a tropa – sobretudo para ocorrências cotidianas, como brigas –, incrementar mecanismos de controle e investir em armas não letais (como tasers) para abordagens em que isso é possível.

Publicidade

Destacam ainda que a letalidade policial maior não leva ao combate mais eficaz ao crime organizado e pode criar confrontos ainda mais violentos, com risco para moradores de áreas dominadas pelo narcotráfico.

“Além de posicionamentos dúbios do governador, o secretário da Segurança, sempre que indagado (sobre um caso de violência policial), sai com resposta quase padrão, sem negar o direito de defesa dos policiais, mas também em postura pouco indicativa de averiguação. A posição das lideranças, tudo que falam ou deixam de falar, chega aos agentes no policiamento cotidiano”, acrescenta o pesquisador.

Para Daniel Edler, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), uma das preocupações é que o novo modelo das câmeras diminua os resultados positivos em relação a possíveis acusações contra policiais que agem conforme a lei, por exemplo. “Há um efeito menor sobre o controle do uso da força e sobre a transparência da atividade policial”, afirma.

Operações na Baixada Santista aumentaram letalidade policial

Grande parte dos óbitos da letalidade policial tem ocorrido durante operações na Baixada Santista – como a Verão e a Escudo –, feitas sob a justificativa de reprimir o crime organizado na região. A área é estratégica para o Primeiro Comando da Capital (PCC), que usa o Porto de Santos para enviar drogas escondidas em navios para o exterior.

Publicidade

Conforme a PM, vários dos mortos têm conexão com o tráfico ou passagens pela polícia, além de terem entrado em confronto com as forças de segurança.

Ministério Público, Ouvidoria das Polícias e entidades denunciaram supostos abusos em parte das ações da polícia, o que é negado pela gestão Tarcísio, que diz investigar os casos.

Dois PMs da Rota se tornaram réus acusados de forjar provas e sabotar câmeras corporais após matarem um homem na Operação Escudo. À época, a SSP disse que a denúncia não desqualificava o trabalho da polícia na região.

Em março, após entidades denunciarem à Organização das Nações Unidas (ONU) abusos nas operações na Baixada, Tarcísio minimizou. “Temos muita tranquilidade com relação ao que está sendo feito (na Baixada Santista). A pessoa pode ir para a ONU, para a Liga da Justiça, para o raio que o parta, eu não estou nem aí”, disse à época.

Publicidade

Sobre a morte do homem jogado da ponte, o comandante-geral da PM, Cássio Araújo Freitas, afirmou ter sido um “erro individual”. Ele negou, porém, que seja um problema sistêmico. “Se colocar na ponta do lápis o número de ocorrências que atendemos, de confrontos que enfrentamos, de pessoas que salvamos, vai ver que isso aí é uma taxa pequena”, disse em entrevista à GloboNews.

A hesitação de gestores do governo em condenar suspeitas de abuso policial tem se repetido desde o começo do governo. Em julho do ano passado, Derrite evitou repudiar agentes envolvidos no caso de um homem que foi amarrado pelos pés e pelas mãos, suspeito de furtar comida em um mercado na Vila Mariana, zona sul da capital.

“O bom policial não vai ser condenado previamente por pressão da mídia ou por pressão da imprensa”, afirmou na época.

No começo do ano passado, o secretário defendeu os PMs da Rota envolvidos na morte de um jovem de 20 anos em abordagem na Avenida Cecília Lottenberg, zona sul da capital. “Nenhum policial que sai de casa para defender a sociedade será injustiçado. Confrontos sempre serão apurados, mas ninguém será afastado”, escreveu Derrite. “Até que se prove o contrário, a ação ocorreu dentro da lei.”

Publicidade

Em outubro deste ano, o Ministério Público denunciou os dois policiais que participaram diretamente da ação. A promotora Luiza Favaro Batista entendeu que os agentes atiraram na vítima, identificada como Luiz Fernando Alves de Jesus, mesmo ela estando “sem a possibilidade de se defender e sem portar qualquer arma de fogo”. Uma pedestre também ficou ferida após ser atingida por um tiro de raspão.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.