O dinheiro do tráfico de drogas da Cracolândia é lavado em uma rede de empresas que inclui um banco, casas de câmbio e um conglomerado de empresas no Brasil e no Uruguai que envolve até uma offshore ligada à Mossack Fonseca, o escritório de advocacia panamenho no centro de um dos maiores escândalos financeiros do século: o Panamá Papers. A descoberta está no centro da 5.ª fase da Operação Downtown, deflagrada nesta sexta-feira, 23, pela Polícia Civil de São Paulo.
Trata-se de uma rede chamada pelo delegado Fernando José Santiago, do Departamento Estadual de Investigações sobre Narcóticos (Denarc), responsável pelas investigações, de “sistema bancário do PCC”. Ao todo, 31 mandados de busca e apreensão estão sendo cumpridos – 26 em São Paulo, quatro no Paraná e um no Rio Grande do Sul. Além disso, 41 contas bancárias foram bloqueadas pela Justiça.
Foram apreendidos dólares, euros, libras e dois carros de luxo. A Justiça decretou o bloqueio de até R$ 150 milhões dos acusados.
“Estamos subindo degrau por degrau a escada da organização criminosa. Chegamos agora à lavagem do dinheiro da Cracolândia. Mas, o trabalho não termina aqui”, afirmou o diretor do Denarc, delegado Ronaldo Sayeg.
A ação de hoje é um desdobramento da operação que mirou a rede de 78 hotéis e hospedarias montada pelo PCC no centro da cidade, além de ferros velhos e empresas de reciclagem. Os imóveis comprados pela facção criminosa serviam de ponto de apoio logístico para o tráfico de drogas no centro de São Paulo.
Com a ajuda de relatórios de inteligência do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), os investigadores montaram o caminho do dinheiro desde a Cracolândia até a rede de doleiros e offshores que atuam no Brasil, nas Ilhas Virgens Britânicas e no Uruguai.
Os policiais conseguiram detectar que “boa parte dos investigados está interligada por meio de transferências bancárias realizadas em suas contas correntes”. A começar por Marcelo Carames, acusado de ser um dos principais homens do PCC na região.
Carames administra o Hotel Tupy, que foi interditado e sequestrado pela Justiça. Por meio dele, a polícia chegou aos negócios de Sheila Costa, apontada pelo Denarc como dona de uma rede de hospedarias no centro, como a Nosso Lar, que foi alvo da 4ª fase da Operação Downtown.
Carames manteria ainda relação com Ricardo Galian, o Jean Gordo, um dos acusados de participar do furto de três toneladas de notas de R$ 50 no Banco Central de Fortaleza, em 2005, quando R$ 164 milhões foram levados pelos ladrões (R$ 240 milhões em valores atualizados). Carames fazia depósitos para Galian por meio das empresas Hortifruti Galian e Spina & Spina, que, por sua vez, enviavam recursos para a empresa Vemax. A defesa de Galian afirma que ele é inocente.
Já Sheila se relacionava com Daniela Romano e Andressa Borges, ambas acusadas de tráfico de drogas. Estas duas se relacionavam com a Vemax. “Sendo que boa parte desses valores foi depositada em agência bancária situada na área da Cracolândia por meio de cédulas de pequeno valor (R$ 2, R$ 5, R$ 10 e R$ 20) com mau estado de conservação (velhas e amassadas), logo, cédulas com as mesmas características daquelas utilizadas por dependentes químicos.”
A Vemax foi aberta em nome de duas pessoas que não sabiam de sua existência – uma das quais era uma moradora de rua.
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A empresa foi usada para fazer pagamentos para uma grupo de empresas, entre as quais a Via Neman ou Banco Bidu, registrado em nome de Caio Neman, um banqueiro que era amigo do piloto de helicóptero Felipe Morais, o homem que transportou os líderes do PCC Rogério Jeremias de Simone, o Gegê do Mangue, e Fabiano Alves de Souza, o Paca, para uma armadilha onde ambos foram executados no Ceará, em 2018.
Segundo o Denarc, tanto as contas de empresas de Caio Neman quanto as de seu pai, o banqueiro Dalton Baptista Neman, foram usadas para a lavagem de valores de origem criminosa, “o que sugere que o esquema de lavagem de capitais dos Neman também favorecia traficantes que atuam na Cracolândia”. Estas se relacionavam com outras empresas dessa rede, a Suprema Gestão e o Guardiões Câmbio. Os Neman sempre negaram as acusações de envolvimento com a lavagem de capitais.
Os policiais seguiram as empresas que mais interagiam com a Vemax e com os Neman. Foi assim que surgiram as empresas ligadas a Danilo Pechin, um empresário com negócios no Tatuapé, na zona leste de São Paulo, acusado de ser o mandante da morte de um advogado em companhia do doleiro Wilson Decaria Junior, o Tio.
Neman e os Decaria já foram investigados nas Operações Tempestade, de 2021, que tratou da lavagem de valores da cúpula do PCC e de recursos para o combate à covid-19, e a Laços de Família, de 2016, que apurou o envolvimento do ex-presidente do Paraguai Horácio Cartes com o contrabando de cigarros para o Brasil. A Tempestade seria anulada em 2023 depois que a PM de Goiás matou o piloto Morais, que delatara os Neman em um acordo de colaboração com a Polícia Federal.
Ainda, segundo a investigação, os nomes de Dalton e Caio Neman “aparecem ligados a uma offshore estabelecida nas Ilhas Virgens Britânicas, cujo nome é Farlow Development S.A”. “A empresa teria sido agenciada pelo famigerado escritório Mossack Fonseca”, escreveu o delegado.
Ao todo, 13 empresas interagiam entre elas para a dissimulação de capitais, entre elas empresas de fachada ligadas à família Khaled Mustafa, responsável pelo recebimento de recursos em São Paulo e em Chuí, no Rio Grande do Sul, na fronteira com o Uruguai.
Para chegar ao esquema na fronteira, os policiais seguiram os depósitos feitos pela empresa Guardiões do Câmbio, de propriedade de Valdecy Soares Coelho, apontado como laranja do esquema. Esta se relacionaria com a Suprema Gestão e a Vemax, que também se relacionava com a VWM, empresa de Aiman Khaled Mustafa.
A VWM seria uma empresa fantasma que foi beneficiada por 32 operações feitas pela Guardiões do câmbio que totalizaram R$ 2,3 milhões. A Suprema Gestão, também ligada a Valdecy Coelho, enviou mais R$ 3,2 milhões à VWM.
Os policiais ainda detectaram movimentações de R$ 130 milhões feitas pela empresa Valzer, de Danilo Pechin, em um espaço de dez dias. A suspeita dos policiais é que a Valzer tenha sido usada como conta de passagem em outro período, quando passaram por ela outros R$ 90 milhões, dos quais R$ 5 milhões teriam origem nas empresas que movimentaram dinheiro da Cracolândia.
Outra empresa que teria se beneficiado da rede ligada à região central, a ALL Center, movimentou R$ 30 milhões. A quantia é a mesma de outra empresa investigada, a TWS, que está registrada em um endereço inexistente em Osasco, na Grande São Paulo. Seu titular, Ricardo Fernandes, já foi preso por tráfico de drogas , quando portava, segundo o Denarc, oito pedras de crack, “o que indica que ele exercia a mera função de ‘vapor’ no narcotráfico”. “Suas características não são compatíveis com uma empresa que movimentou R$ 30 milhões e menos de três meses (entre 01/03/2019 até 28/05/2019)”.
O relatório do delegado conclui, por fim, que “os traficantes de drogas que atuam no centro histórico de São Paulo fazem uso de um sofisticado esquema de lavagem de capitais, oferecido pelos Neman e outros associados à organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC)”.
Anderson Minichillo, advogado de Ricardo Galian, o Jean Gordo, afirma que o cliente é inocente. Segundo ele, o Hortifruti Galian, empresa que opera no Paraná e é mencionada na investigação, é legalmente constituída. “Todo dinheiro transacionado é direcionado para compra e venda das frutas, legumes e outros produtos”, afirma. Ele diz ainda que a Spina & Spina, que seria responsável pelo fornecimento de alho ao hortifruti, também opera regularmente.
O Estadão não conseguiu contato com a defesa dos Neman e de suas empresas mesmo após tentativas por telefone e e-mail. Também não conseguiu localizar as defesas de Carames, Decaria, Fernandes, Coelho, Mustafa, Daniela, Andressa e Sheila e das empresas citadas. Durante a Operação Tempestade, os Neman alegaram inocência, bem como Decaria das acusações lavagem de capitais para o PCC. /COLABOROU ÍTALO LO RE
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