A polícia de São Paulo matou neste ano 496 pessoas entre janeiro e setembro, o maior número para o período desde 2020, quando houve 575 óbitos desse tipo. Desde o ano passado, a alta da letalidade pelas forças de segurança foi impulsionada por operações policiais na Baixada Santista e, neste mês, chamaram a atenção os casos de Ryan Andrade, de 4 anos, e do estudante de Medicina Marco Aurélio Acosta, de 22, baleado na Vila Mariana, zona sul da capital, no feriado.
A Secretaria da Segurança Pública (SSP) afirma, em nota, não tolerar desvios de conduta dos seus agentes e diz apurar todas as mortes por policiais, “com acompanhamento das respectivas corregedorias, Ministério Público e Judiciário”. A pasta, porém, não aponta razões para o aumento (leia mais abaixo).
Esse crescimento interrompeu a curva de redução de mortes pela PM que havia sido registrada a partir de 2021, com a implementação das câmeras corporais nas fardas dos agentes. Em 2022, o número de óbitos do tipo foi o menor da série histórica, iniciada em 2001.
Segundo especialistas, falta prioridade do governo para o fortalecimento das câmeras. O governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) chegou a colocar em xeque a efetividade dos equipamentos, mas depois disse que manteria o programa. O Estado também reiterou a continuidade do programa ao Supremo Tribunal Federal (STF) após ser cobrado sobre o tema - são 10.125 câmeras em funcionamento no Estado.
Ainda segundo analistas, os casos reforçam a necessidade de preparar melhor as polícias - sobretudo para ocorrências cotidianas, como brigas -, reforçar mecanismos de controle sobre as tropas e investir em armas não letais sobre ocorrências em que isso é possível. A letalidade policial maior, acrescentam, não necessariamente leva ao combate mais eficaz ao crime organizado.
Esse cenário pode resultar até em confrontos ainda mais violentos, com perigo para moradores de áreas dominadas pelo narcotráfico, como o garoto Ryan. Também eleva o risco para os próprios PMs, que encontram bandidos mais dispostos a atirar durante ações policiais nas comunidades.
Estudos mostram que moradores da periferia são a maioria entre os mortos pela polícia. Dentre os casos em São Paulo neste ano, 317 (63,9%) eram pretos ou pardos e 154 (31%), brancos, conforme dados oficiais da SSP. Em relação ao local dos registros, 109 (22%) ocorreram na Baixada Santista.
PM fez operações em área estratégica para o PCC
Entre 2023 e este ano, a polícia repetiu incursões na Baixada Santista sob a justificativa de reprimir o crime organizado na região. A área é estratégica para o Primeiro Comando da Capital (PCC), que usa o Porto de Santos para enviar drogas escondidas em navios para o exterior, sobretudo a Europa.
A primeira operação (Escudo) foi deflagrada em julho de 2023 após o assassinato de um soldado da Rota no Guarujá. Meses depois, uma ação semelhante (Verão) foi replicada na Baixada. Segundo a PM, vários dos mortos têm conexão com o tráfico ou passagens pela polícia, além de terem entrado em confronto com as forças de segurança.
Ministério Público, Ouvidoria das Polícias e entidades denunciaram supostos abusos em parte das ações da polícia, o que é negado pela gestão Tarcísio, que diz investigar os casos.
Dois PMs da Rota se tornaram réus acusados de forjar provas e sabotar câmeras corporais após matarem um homem na Operação Escudo. À época, a SSP disse que a denúncia não desqualificava o trabalho da polícia na região.
Para um terceiro caso investigado, houve arquivamento, uma vez que foram identificados indícios de confronto. A Promotoria apura outras 25 mortes da Operação Verão.
Somadas, as operações Escudo e Verão tiveram 84 mortos.
Em março, Tarcísio ironizou uma denúncia de entidades ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas sobre o alto número de óbitos na ação na Baixada Santista. “Temos muita tranquilidade com relação ao que está sendo feito. A pessoa pode ir para a ONU, para a Liga da Justiça, para o raio que o parta: eu não estou nem aí”, disse.
Estudos acadêmicos já investigaram esse padrão de mortes em série após o assassinato de um policial ou guarda. Chamadas de “operações vingança”, elas têm caráter de revanche em reação à violência contra um agente de segurança.
Para especialistas, ações nesse perfil costumam contrariar leis, por comunidades inteiras sob medo e ameaça de tiroteios, além de minar a confiança da população na PM. O governo tem refutado essas críticas e defendido a legalidade das ações.
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Criança de 4 anos foi baleada enquanto brincava
Ryan Andrade morreu com um tiro na barriga no dia 5. Ele brincava com mais crianças em uma calçada do Morro São Bento, em Santos, e foi atingido durante confronto entre PMs e suspeitos, diz o boletim de ocorrência. A corporação reconheceu que “provavelmente” o projétil partiu da arma de um policial.
A PM afirmou ainda que os agentes foram recebidos por dez suspeitos no local, que atiraram. Os sete policiais envolvidos foram afastados das ruas. Um adolescente de 17 anos também morreu na ocasião e outro adolescente e uma mulher também foram feridos.
Cerca de nove meses antes, o pai de Ryan, Leonel Andrade, também havia sido morto pela polícia na Operação Verão. A polícia afirmou que ele era ligado ao tráfico e apontou arma contra os policiais. Já a família rebate a versão, destacando que ele tinha deficiência física e usava muletas.
Universitário foi assassinado em hotel
Na última quarta-feira, 20, o estudante Marco Aurélio Cárdenas Acosta, de 22 anos, morreu após ser baleado durante uma abordagem policial em um hotel na Vila Mariana, zona sul de São Paulo. Imagens de câmeras de segurança mostram o jovem entrando no hotel, onde estava hospedado com uma garota de programa. Ele é seguido por um PM que o puxa pelo braço, empunhando a arma.
Um segundo agente aparece chutando Acosta, que segura seu pé e o faz cair. Em seguida, o policial de arma em punho dispara na altura do peito da vítima. A mulher afirma que Acosta estava bêbado e tentou agredi-la. A PM diz que havia sido chamada no local e que o jovem resistiu à abordagem. Os policiais foram afastados.
No X, antigo Twitter, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), disse lamentar a morte de Marco Aurélio. “Essa não é a conduta que a polícia do Estado de São Paulo deve ter com nenhum cidadão, sob nenhuma circunstância. A Polícia Militar é uma instituição de quase 200 anos, é a polícia mais preparada do País e está nas ruas para proteger. Abusos nunca vão ser tolerados e serão severamente punidos”, escreveu.
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Morte de mãe de 6 filhos e tensão em velório
- Em março, a cabeleireira Edneia Fernandes, de 31 anos, foi morta com tiro na cabeça durante confronto entre PMs e suspeitos em outra comunidade de Santos, segundo a Secretaria da Segurança. Familiares e amigos contestam a versão e dizem que ela foi atingida quando três motos da PM patrulhavam a região.
- No mês passado, PMs se tornaram alvo de investigação após serem filmados agredindo pessoas em um velório em Bauru (SP). Eram velados dois jovens que morreram em confronto com a PM. Nas imagens, os agentes desferem golpes de cassetetes e empurram familiares dos mortos.
Outros casos não tiveram desfechos trágicos, mas expuseram problemas de conduta de agentes da corporação.
- Neste mês, PMs apostaram um racha na zona sul paulistana, e bateram em um veículo estacionado na rua. A cena foi flagrada pelas câmeras corporais dos PMs.
Como a PM deveria agir?
Especialistas apontam a necessidade de melhorar o treinamento das forças de segurança, fiscalizar possíveis abusos e aumentar os mecanismos de controle.
Em julho do ano passado, o coronel Cássio Araújo de Freitas, chefe da PM paulista, chegou a pedir, em vídeo publicado numa rede social, que a tropa não hesitasse em usar a legítima defesa a seu favor.
“Estamos bastante preocupados com algumas ocorrências onde o policial militar tem hesitado em utilizar as suas ferramentas de trabalho” afirmou. “E aí vai o meu pedido para vocês e para todos esses amigos aqui que estão aqui presentes: não hesite, não hesite em cumprir a lei, não hesite em utilizar a legítima defesa a seu favor”, continuou Freitas.
“Quando os gestores deixam de ter a letalidade policial como um dos focos, passam mensagem para todas as instituições de segurança pública, que vão se comportar segundo as mensagens que refletem a posição do governo, independentemente do local onde atuam”, afirma Leonardo Carvalho, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
José Vicente da Silva Filho diz que a preparação dos PMs deve envolver todos os níveis hierárquicos. “É necessária a presença gerencial dos capitães, que têm contato mais direto com os PMs. E os capitães precisam da orientação que vem de cima para que exerçam o controle direto, que é feito por retreinamento para cada grupo que entra e sai de serviço no dia a dia”, acrescenta.
- O método Giraldi, desenvolvido em 1998 pelo coronel Nilson Giraldi, estabelece padrões de atuação segura do policial em situações de alto risco, tanto para o PM como para as pessoas abordadas. Por esse método, usar a arma é o último recurso.
“Esse método estabelece regras de comportamento, de como sacar a arma, se proteger, evita risco maior. É um método de preservação da vida, incluindo as das pessoas com que o policial se confronta, deixando o tiro para último caso”, continua Silva Filho, ex-secretário nacional de Segurança Pública.
Para Carvalho, do Fórum de Segurança, há três estratégias principais para reduzir o problema:
- Comissões de Mitigação de Risco; mecanismos criados por norma de 2020 para analisar as condutas de casos de letalidade policial, sem fins investigativos, e sugerir eventuais reforços ou ajustes de treinamento profissional
- Aquisição de armas de Arma de Incapacitação Neuromuscular, como os tasers;
- Câmeras corporais
Por ser uma profissão submetida a forte carga emocional, especialistas também defendem atenção às políticas de saúde mental dos policiais, categoria em que há elevados índices de problemas psicológicos e suicídio.
Polícia diz seguir a lei, apurar casos e treinar agentes
A PM informou, por meio da SSP, que é uma instituição legalista que atua com rigor e não tolera nenhum desvio de conduta dos seus agentes. Em razão disso, afastou os policiais envolvidos na ocorrência que vitimou o estudante de Medicina e “investiga, por meio de Inquérito Policial Militar (IPM), todas as circunstâncias do ocorrido, bem como a Polícia Civil, por meio do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP)”.
Ainda segundo a PM, todos os casos de morte decorrente de intervenção policial que ocorrem em São Paulo são rigorosamente investigados pelas forças de segurança. “Desde a formação e ao longo de toda carreira, os policiais paulistas passam por cursos de formação e atualização que contemplam disciplinas de direitos humanos, igualdade social, diversidade de gênero, ações antirracistas, entre outras”, acrescenta
A SSP não se posicionou especificamente sobre as causas do aumento na letalidade policial este ano.
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