Somente no ano passado, mergulhadores da Marinha apreenderam 1,68 tonelada de cocaína em cascos de navios em ações de vistoria realizadas no Porto de Santos, o maior do hemisfério sul. A quantidade equivale a mais do que o triplo do que os 483 quilos interceptados em 2020, segundo informações exclusivas obtidas pelo Estadão.
A alta expressiva dessa modalidade, que se junta a outras táticas mais tradicionais, como esconder drogas em contêineres, desafia autoridades no combate ao tráfico. Hoje, a atuação do Primeiro Comando da Capital (PCC) extrapola fronteiras, com lucro que supera US$ 1 bilhão ao ano.
Na tentativa de frear o crime organizado, o governo federal editou, em novembro, decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) em portos e aeroportos de Rio e São Paulo, que prevê reforço militar até maio – ainda não está definido se haverá prorrogação. Já a Autoridade Portuária de Santos (APS) prevê lançar edital ainda neste semestre para implementar um pacote de tecnologia no porto, inclusive com a compra de drones submarinos.
“Hoje, os mergulhadores precisam monitorar 24,6 quilômetros de canal. Ou seja, precisaria ter milhares de mergulhadores para monitorar todo o canal ao mesmo tempo”, diz Anderson Pomini, presidente da APS. Atualmente, a Guarda Portuária não tem mergulhadores, enquanto há quatro profissionais da Marinha em atuação.
Após análise de tecnologias usadas no exterior, houve um estudo interno para contratar os drones submarinos, segundo Pomini. “Há uma tecnologia chinesa, que já é implementada em alguns rios lá fora, para fazer esse tipo de vistoria, acompanhamento, batimetria, dragagem. Quereremos copiar essa tecnologia.”
O plano é de que essa contratação faça parte de um pacote de tecnologia para auxiliar na entrada e saída de navios que acessam o Porto de Santos. Segundo ele, R$ 140 milhões estão reservados para a medida no orçamento deste ano. Também é previsto concurso para admitir 60 novos guardas portuários – hoje são 350.
A Guarda Portuária conta ainda com dois drones aéreos, além de uma rede que inclui 600 câmeras, algumas delas com sensor de movimento. As imagens são compartilhadas em tempo real com a Marinha. “É algo para ter imediatismo maior nas operações”, afirma o guarda portuário Felipy Nunes, que destaca a integração entre os agentes do porto para o sucesso da operação de GLO.
Dados da Alfândega de Santos obtidos pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP mostram como o tráfico submarino tem crescido. Em 2020, a proporção de droga achada em cascos de navios era de 2,3% do montante. Em 2023, só até agosto, a fatia saltou para 13,5%.
“Eles (integrante do crime organizado) preferem atuar principalmente à noite e em zonas onde há menos patrulhamento e alcance das câmeras. Esse é o caso da zona de fundeio, que é bem distante e fica já em área marítima”, explica Gabriel Patriarca, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP. Por isso e diante da dificuldade de vistoriar todas as embarcações, ele defende investir em tecnologia.
As investigações apontam que, em geral, os pacotes com cocaína são levados aos navios de duas formas: por pequenas lanchas, que se movimentam principalmente à noite com luzes apagadas, ou por mergulhadores, que saem de áreas de mata ou de embarcações mais afastadas. Além de içar os pacotes, também os acoplam nos cascos.
O pesquisador indica que, para mapear essa movimentação, outros portos internacionais já começam a adotar drones submarinos. Um exemplo é o de Rotterdã, na Holanda. Além de investir em redes mais sofisticadas de tecnologia, como o Sistema de Gerenciamento e Informação do Tráfego de Embarcações (VTMIS, na sigla em inglês).
Em Santos, o plano da Autoridade Portuária é justamente adotar monitoramento mais robusto. Como mostrou o Estadão, o Porto de Santos vai receber R$ 21,28 bilhões em investimentos entre 2024 e 2028, em ações que envolvem desde melhorias em infraestrutura até um novo sistema para acompanhar o tráfego de navios.
“Essa pode ser uma maneira mais efetiva de ter o controle de embarcações suspeitas que se aproximam dos navios na área de fundeio”, afirma Patriarca, da USP.
É na área de fundeio, por exemplo, que costuma ocorrer o içamento de pacotes com droga para integrantes da tripulação cooptados pelo crime organizado, como já indicaram investigações policiais. Não à toa, a Polícia Federal tem como um dos focos as inspeções de navios nesse espaço.
Ação conjunta da corporação com Receita e Marinha no início de 2023, por exemplo, apreendeu cerca de 290 kg de cocaína achados no casco de navio carregado de celulose. Os traficantes usaram até anilhas de academia para fixar os pacotes no recipiente. O barco ia para o Porto de Martas, na Turquia.
Para tentar auxiliar na fiscalização da área de fundeio durante o período da operação de GLO, a Marinha enviou cerca de 400 militares para atuar em Santos. A equipe conta com uma lancha blindada, conhecida como “Caveirão do mar”.
A lancha DGS 888 Raptor “Mangangá” é usada para a inspeção de embarcações que oferecem risco em potencial às equipes de fiscalização. A embarcação tem capacidade para transportar até 10 tripulantes e chega a uma velocidade de 30 nós, além de comportar uma metralhadora 7,62 mm.
“A gente entende que os números (de efetivo) são acanhados dado o tamanho do Porto de Santos, mas o que a gente procura fazer é utilizar informações de inteligência de forma a poder atuar pontualmente, mas de forma precisa”, diz o capitão dos Portos de São Paulo, Marcus André de Souza e Silva.
Nos quatro meses de GLO, houve duas apreensões mais expressivas de cocaína em Santos com ajuda da Marinha: uma de 10 kg, localizadas junto aos corpos de dois tripulantes estrangeiros de uma embarcação, e outra de 31 kg, escondidos em compartimento no alto do banheiro de um navio.
Além da lancha blindada, a Marinha enviou um blindado Mowag “Piranha”, tanque que chegou a ser usado em operações das Forças Armadas no Haiti e no Rio de Janeiro. Para reforçar as operações, a instituição dispõe também de dois drones e três navios-patrulha, com destaque para o “Maracanã”, embarcação da classe Macaé que possui canhão de calibre 40mm e duas metralhadoras.
“Não deixamos de atuar nas outras áreas que são de nossa responsabilidade, mas, atualmente, devido a essa demanda crescente da GLO, temos direcionado grande parte dos nossos esforços para a área de Santos, que é onde nós estamos sediados”, afirma o capitão de Corveta Bernardo Dias, chefe de Estado-Maior do Comando de Grupamento de Patrulha Naval do Sul-Sudeste.
É atribuição do grupamento atuar, por exemplo, no Porto de Paranaguá (PR), que, apesar de ser um dos maiores do País, não foi incluído no decreto de GLO. Segundo Dias, o remanejamento foi feito de forma a não prejudicar outros portos.
Apesar da previsão inicial de a operação ir até maio, fontes internas da Marinha afirmam que o governo federal estuda uma extensão até dezembro. Avalia também a inclusão no decreto do Porto de Paranaguá, que costuma ser o 2º colocado em apreensão de cocaína, atrás apenas de Santos.
Por ano, mais de 5 mil navios chegam a ficar atracados no Porto de Santos, que se destaca pela exportação de soja, açúcar e carne bovina. Os principais destinos das embarcações são Ásia e Europa, também alguns dos locais de revenda de droga pelo Primeiro Comando da Capital.
PCC envia entre 4 e 5 toneladas de cocaína por ano ao exterior
Investigações do MP indicam que a facção paga de US$ 1,2 mil a US$ 1,4 mil (entre R$ 6 mil e R$ 7 mil) pelo quilo de cocaína para fornecedores de países vizinhos, como Colômbia, Peru e Bolívia. Na Europa, vende por cerca de € 35 mil.
Como mostrou o Estadão, a estimativa é que o PCC envie de 4 a 5 toneladas de cocaína para outros países por mês, em especial por meio dos portos. E, pelos cálculos do MP, a facção lucra cerca de US$ 1 bilhão (quase R$ 5 bilhões) anuais, com destaque para a venda internacional de cocaína.
Conforme a Marinha, nos quatro primeiros meses de operação, foram mais de 27 mil abordagens em veículos, 7,4 mil fiscalizações em embarcações e 17,5 mil inspeções em pessoas e bagagens.
Além disso, foram inspecionados mais de 4,5 mil contêineres em cooperação com outros órgãos, sendo apreendidas mais de 30 embarcações por irregularidades administrativas. Outras 215 embarcações foram notificadas.
A Polícia Civil afirmou, em nota, que deflagrou as operações “Navegação Segura” e “Pérola do Atlântico” na Baixada Santista, em outubro e novembro, com apoio de agentes da Marinha e da Capitania dos Portos.
Um homem de 38 anos, procurado por tráfico de drogas, foi preso. Já um adolescente, de 15 anos, foi apreendido em flagrante por ato infracional equivalente à associação criminosa.
“Quatro jet skis produtos de furto foram recuperados e uma lancha com dados adulterados apreendida, em Santos. Em Guarujá, quatro jet skis com sinais de irregularidade e outros quatro sem documentação foram recolhidos”, afirmou.
Procurados pela reportagem, Ministério da Justiça e Polícia Federal não falaram.
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