PPP prevê despejar ocupações no centro de SP para criar prédios de aluguel

Proposta da Prefeitura para o Largo do Paiçandu, que inclui polo cultural, foi colocada em consulta pública com participação exclusiva por e-mail; gestão diz que houve ‘ampla divulgação’

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Foto do author Priscila Mengue
Atualização:

Uma Parceria Público-Privada (PPP) proposta pela gestão Ricardo Nunes (MDB) para o centro da cidade de São Paulo permitirá o despejo de cerca de 400 pessoas que vivem em imóveis ocupados por movimentos de moradia – um deles há quase 11 anos. A proposta prevê a concessão dos espaços e outros do entorno do Largo do Paiçandu por 25 anos, com a transformação pela iniciativa privada dos imóveis ocupados em apartamentos de aluguel para estudantes, no que chama de “ativação de imóveis ociosos”.

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A nova PPP está em fase de consulta pública até 15 de janeiro, com sugestões exclusivamente por e-mail (paicandu@prefeitura.sp.gov.br), sem a possibilidade de contribuições pela plataforma municipal ParticipeMais, geralmente utilizada nesses procedimentos. Moradores e coordenadores de movimentos envolvidos souberam da proposta ao serem contatados pelo Estadão.

A Prefeitura argumenta que a consulta foi “amplamente divulgada”, o que ocorreu em parte dos perfis e páginas do Município, como da Secretaria Executiva de Desestatização e Parcerias – à frente da proposta – e da campanha Todos Pelo Centro, lançada pela gestão Nunes no fim de 2022, além de publicações oficiais. Uma audiência pública exclusivamente virtual sobre o tema está marcada para terça-feira, 10, às 10 horas, mediante inscrição na plataforma Zoom.

Em nota, a Prefeitura diz que as contribuições propostas na consulta e na audiência pública serão analisadas e, caso se opte pela continuidade, a Secretaria Municipal de Habitação tomará as “providências cabíveis” para atender as famílias. O edital diz que os imóveis serão entregues para as concessionárias “livres e desimpedidos”.

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Ao Estadão, o secretário da Habitação, João Farias, promete algum tipo de assistência aos moradores da Ocupação Rio Branco, datada de 2011, e diz aguardar decisão judicial favorável para fazer o despejo do grupo que vive no antigo Art Palácio, na Avenida São João, desde outubro.

Meriane vive com os três filhos e o marido na Ocupação Rio Branco  Foto: Werther Santana/Estadão

O secretário também argumenta ao Estadão que tem mantido “diálogo estreito com movimentos de moradia”, por meio do programa Pode Entrar, e que, por isso, não reconhece como legítima a ocupação de imóveis como forma de pressionar o Município. Também destacou que 45 mil unidades habitacionais serão entregues até o fim da gestão.

“Várias obras estão em andamento”, diz ele, ao citar a que transformará a antiga ocupação Prestes Maia, em outro ponto do centro, em edifício habitacional. “A Prefeitura tem produzido como nunca se produziu. Mas não dá para achar que vamos resolver um problema de décadas.”

A proposta de edital da PPP cita que há ocupações entre os imóveis só quando apresenta as características de cada um e, mesmo assim, informa apenas sobre a Ocupação Rio Branco - há pelo menos mais duas áreas com ocupações no perímetro.

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O conteúdo da proposta pode passar por modificações até a publicação da licitação, ainda sem data divulgada. As obras têm previsão de conclusão em período de 12 a 18 meses após iniciadas.

Ocupação Rio Branco engloba três imóveis que antes funcionavam como hotéis e cinema Foto: Werther Santana/Estadão

A área de atuação está centralizada em cinco pontos: o Largo do Paiçandu em si, que poderá receber quiosques móveis; a Galeria Olido, que viraria um centro educacional; o antigo Art Palácio, cuja parte do cinema seria adaptada como anfiteatro e a do hotel para residências de aluguel; o Edifício Independência (pavimentos acima do Bar Brahma), para “hub de inovação”; e o Complexo Boticário, onde há ocupações hoje, com construção de edifícios para locação.

A Ocupação Rio Branco está no “Complexo Boticário”, de 2,3 mil m² e que inclui um centro de acolhida à população de rua – a ser transferido para outro endereço na mesma quadra –, um antigo estacionamento invadido há cerca de um ano por um grupo não ligado a movimentos por moradia conhecidos e cinco comércios na esquina da Avenida Rio Branco com o Largo, como salão de beleza e lanchonete. O local será transformado em condomínio residencial com 308 apartamentos, de 28 m² cada, com comércio no térreo.

Imagens do resultado projetado para esquina do Largo do Paiçandu com a Avenida Rio Branco, onde hoje há comércios e uma ocupação Foto: Prefeitura de São Paulo/Reprodução

O centro é uma das prioridades da gestão Nunes, que deve disputar a reeleição ano que vem. Parte das propostas envolve incentivos e parcerias público-privadas. “A PPP Paiçandu Núcleo Cultural vai requalificar edifícios ociosos com viés cultural, para estimular a ocupação noturna e nos fim de semana”, disse ao Estadão o secretário municipal da Casa Civil, Fabrício Cobra, em dezembro, sem comentar à época que a proposta envolve áreas hoje de ocupações.

A PPP do Paiçandu prevê obras de restauro, reforma, construção e readequação, além da manutenção, zeladoria e operação de atividades. Os investimentos obrigatórios são avaliados em cerca de R$ 189 milhões, para 25 anos. A contraprestação e o aporte pagos pela Prefeitura à concessionária são estimados em R$ 372,5 milhões. Uma das obrigações apontadas no edital em consulta pública é “não permitir que terceiros se apossem da área de concessão”.

Antigo Art Palácio foi ocupado em 2022 Foto: Werther Santana/Estadão

Vídeo divulgado pela campanha municipal Todos Pelo Centro mostra imagens de como ficaria o Complexo do Boticário, com um condomínio vertical onde hoje existem a Ocupação Rio Branco, o estacionamento invadido, o centro de atendimento à população de rua e cinco comércios.

No caso do prédio Olido, cuja ideia é de desapropriação, os quatro primeiros pavimentos serão de gestão da Secretaria de Cultura, enquanto o objetivo é transformar o restante em centro educacional. Já o Edifício Independência, segundo a Prefeitura, é notificado há mais de seis anos por não cumprir função social e está em IPTU progressivo desde 2018.

Cobrança por moradia

A PPP afeta especialmente a Ocupação Rio Branco, instalada em 2011 em imóveis originalmente de até três pavimentos e nos quais funcionavam os hotéis Lincoln e Visconde e o Cine América. É ligada ao Movimento de Moradia Central e Regional (MMCR).

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Segundo a coordenadora do movimento, Jomarina Fonseca, de 65 anos, cerca de 300 pessoas (um total de 58 famílias) vivem no local, de crianças a idosos. Os moradores colaboram com a manutenção com contribuição de R$ 220 mensais.

Em vistoria feita por técnicos da Prefeitura em 2018, destaca o documento da consulta pública, identificou-se que a ocupação tem instalações elétricas em “desconformidade com os padrões de segurança”, com fiação exposta, inclusive nos chuveiros. Também consta que não há alarme de incêndio, iluminação de emergência, hidrantes e corrimões em todas as escadas.

Dois dos três imóveis da ocupação são alvo há mais de 10 anos de ações de desapropriação, assim como os comércios da esquina, e estão ainda em tramitação ou em suspenso na Justiça.

Eliane diz que o espaço é seguro e que um grupo de moradores participou de treinamento para brigadista em caso de incêndio. “Algumas coisas são quase impossíveis, como auto de vistoria dos bombeiros”, afirma. Também avalia que a ocupação deveria ter sido ouvida sobre a PPP. “Acho que ninguém sabia. A gente tinha de estar participando.”

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Eliane vive na Ocupação Rio Branco desde 2011 Foto: Werther Santana/Estadão

A camareira Eliane Saldanha, de 57 anos, e o pedreiro José Saldanha, de 62, estão entre os primeiros moradores da ocupação, para a qual se mudaram após ela ser dispensada de um trabalho em Higienópolis, na região central. “A gente alugava quitinete na Sé, por R$ 830, quando a patroa me dispensou”, relata. “A gente começou a trabalhar na rua, vendendo café.”

A unidade onde o casal vive foi construída aos poucos na laje do último pavimento da ocupação. Na maioria dos andares, as famílias vivem no que antes eram quartos de hotel, enquanto parte das habitações com divisão improvisada divide banheiros coletivos.

Eliane conta que ficou preocupada inicialmente ao se mudar para uma ocupação, mas que a “necessidade falou mais alto”. Hoje, após 11 anos, se diz cansada de reivindicar moradia, ainda mais pelo avanço da idade e o problema de ácido úrico do marido, que, em momentos de crise, precisa ser carregado escadas abaixo até o nível da rua.

Antonia Pereira também vive na Ocupação Rio Branco Foto: Werther Santana/Estadão

Como outros moradores, Eliane conta que outra ocupação seria o provável destino caso precise sair. “Quando (o poder público) mexe com uma coisa, tem de ter preparado pra onde vai enviar essas pessoas. Tirar daqui e colocar na rua vai tornar um caos”, diz. “Aqui não tem vagabundos. Estamos lutando pela nossa moradia.”

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Na mesma ocupação, vive uma filha de Eliane e Saldanha, Meriane, de 33 anos, que voltou a morar no local em 2022 após o sogro destinar o imóvel em que vivia a outro parente. Ela está em uma unidade improvisada de dois cômodos, com três filhos, de 2, 7 e 9 anos, e o marido. “Aumentou o preço das coisas. Está R$ 600, R$ 700 ou aí em diante (para alugar uma moradia formal).”

Outra moradora é a dona de casa Antônia Ferreira de Lima, de 63 anos, que mora em uma unidade de poucos metros e um único cômodo, dividido com dois gatos. Antes da Rio Branco, viveu a metros dali, no Edifício Wilton Paes de Almeida, que desabou após um incêndio há quase quatro anos e pelo qual diz receber auxílio-aluguel de cerca de R$ 400, insuficiente para uma realocação formal.

“A ocupação é mais em conta”, relata. Questionado, o secretário municipal de Habitação, João Farias, diz que o auxílio é um complemento, mas não tem o objetivo de cobrir o custo integral de um aluguel e que a Prefeitura não planeja rever o valor.

Já a Ocupação São João 407 ocupa o antigo Art Palácio, originalmente o Hotel Plaza e um cinema (tombado na esfera municipal), ao lado da Galeria do Rock. O espaço tem 5,8 mil m² de área construída, de 1936. Nos últimos anos, projetos variados da Prefeitura propuseram novos usos para o local, declarado de utilidade pública em 2008.

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O Estadão procurou responsáveis pelo Movimento Sem Teto pela Reforma Urbana (MSTRU), mas não conseguiu confirmar o número atual de moradores até o fechamento desta reportagem. No fim de 2022, o grupo divulgou que cerca de 100 pessoas viviam no endereço. A ocupação do imóvel em outubro motivou reações do poder público a fim de estimular a saída dos recém-chegados, como o corte do fornecimento de água e a restrição de acesso a mulheres e crianças, o que foi revogado após decisão judicial.