Apesar da proibição imposta pela Prefeitura de São Paulo, a plataforma 99 deu início às operações de transporte de passageiros por motocicleta, a 99Moto, em partes da capital paulista, na terça-feira, 14. Um decreto municipal (62.144/2023) proíbe esse tipo de atividade nas ruas e avenidas paulistanas.
O prefeito Ricardo Nunes (MDB) disse que o transporte por moto é um risco para a população, uma vez que há altas taxas de mortes e acidentes de motociclistas. Ele diz que pretende fiscalizar as motos que circulam em nome do aplicativo.
A 99, por sua vez, diz que há respaldo pela Política Nacional de Mobilidade, que permite o serviço de transporte individual privado de passageiros mediado por aplicativos, incluindo carros e motocicletas (veja mais mais abaixo). As operações da 99Moto se concentram, por ora, fora do centro expandido. A ideia é ampliar gradualmente a modalidade pela capital.
A empresa argumenta que os municípios têm competência para regulamentar e fiscalizar a atividade, mas não proibi-la. Mais de 3,3 mil cidades, incluindo municípios da Grande São Paulo, têm a modalidade de transporte individual por motocicleta da 99, segundo a plataforma.
Em janeiro de 2023, quando a 99 tentou implantar o modal na capital, Nunes publicou o decreto que suspendeu as operações. Na ocasião, a prefeitura formou um Grupo de Trabalho (GT) para discutir sobre como a atividade pode ser oferecida de forma legal e com a maior segurança, haja vista que esse tipo de serviço não é regulamentado na cidade. A recomendação do GT foi de não implantação da modalidade na cidade.
Nesta quarta, 15, a Justiça negou um pedido de liminar da 99 contra a ordem da Prefeitura para suspender o serviço. A decisão reconhece o direito do poder municipal de barrar o serviço, uma vez que a modalidade já havia sido proibida em decreto de 2023. A empresa diz que vai recorrer e manter o 99Moto em funcionamento.
Três especialistas em Direito Administrativo ouvidos pelo Estadão entendem que, nessa queda de braço, as determinações do município devem prevalecer e dizem que o serviço oferecido pela plataforma é irregular. Acrescentam ainda que a Prefeitura, por lei, ter autonomia e competência para barrar o serviço da 99, conforme previsto no artigo 11 da mesma Política Nacional de Mobilidade.
Já outro especialista entende que a Prefeitura não pode impedir o modal por decreto, uma vez que só a União pode legislar sobre trânsito na cidade. Outro argumento a favor da 99 é a existência de Lei Federal (12.009/2009), que regulamenta a profissão do mototaxista no Brasil.
Vitor Rhein Schirato, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), diz que o município tem competência para falar que não pode ter serviço compartilhado por moto “por uma questão de interesse local”.
Ele explica que o artigo 22 da Constituição dá à União a competência para criar regras de trânsito e transporte em uma cidade, mas o município também tem poder de legislar em favor de seus interesses.
Ele exemplifica: “As marginais (Tietê e Pinheiros) e a (Avenida) 23 de Maio, por exemplo, poderiam ter limite de velocidade maior, mas o município, por questão de interesse local, decidiu estabelecer um limite de velocidade menor para essas vias. A mesma coisa acontece neste assunto”, defende.
Já o professor de Direito da Universidade de Araraquara Silvio Maciel discorda. “A Prefeitura está errada, a Justiça está errada e a 99 está certa”, diz. Segundo ele, ações de inconstitucionalidade foram movidas contra a lei que regulamenta a profissão de mototaxista, mas foram negadas pelo Supremo Tribunal Federal.
“Em outra ação de inconstitucionalidade, o Supremo decidiu que a Prefeitura sequer pode editar uma norma proibindo a profissão de mototaxista. O artigo 22, inciso 11, da Constituição, diz que só a União pode legislar sobre o trânsito”, acrescenta.
99 faz uma leitura ‘ampliada da Lei, diz especialista
Schirato entende ainda que a 99 não faz uma leitura correta da Política Nacional de Mobilidade (Lei n° 12.587/2012).
Para defender a atividade e respaldar o seu serviço, a plataforma tem se baseado no inciso 10 do artigo 4°, incluído na Política Nacional de Mobilidade pela Lei 13.640/2018, que regulamenta o transporte remunerado privado individual de passageiros. A empresa entende que a União autoriza o transporte por app no País, seja o realizado por carros, seja o praticado por motocicletas.
A Política Nacional de Mobilidade Urbana, no entanto, não faz menção explícita ao tipo de veículo autorizado.
- Transporte remunerado privado individual de passageiros: serviço remunerado de transporte de passageiros, não aberto ao público, para a realização de viagens individualizadas ou compartilhadas solicitadas exclusivamente por usuários previamente cadastrados em aplicativos ou outras plataformas de comunicação em rede.
Por esse motivo, Vitor Schirato entende que a empresa não faz leitura precisa da legislação.
“(A Política Nacional de Mobilidade Urbana) tem um dispositivo que permite viagem compartilhada por plataformas, mas não tem nada que diga expressamente que isso vale para motos”, diz o especialista. “A 99 está usando as diretrizes da lei em uma interpretação bastante ampliada.”
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Nesta quarta, a administração informou que vai “intensificar a fiscalização” em todas as áreas da cidades para checar existência de alguma irregularidade. As ações serão reforçadas pela Prefeitura, por meio do Departamento de Transportes Públicos (DTP), e pela Polícia Militar.
Atividade pode trazer mais riscos à segurança e aumentar número de acidentes
Para Lilian Moreira Pires, professora de Direito Administrativo do Mackenzie, a permissão para o transporte de caronas por motos em São Paulo não deve ser baseada apenas “na letra fria da Lei”. “É necessário ter bom senso e ver as particularidades de cada município.”
Se a prefeitura de uma cidade de menor porte entender que o serviço pode beneficiar a população e sua administração dar conta de fazer controle da atividade, o serviço pode ser liberado, segundo ela. “Mas, em São Paulo é um risco muito grande. Há muitos acidentes de moto. Isso colocaria a população ainda mais em risco”, diz Lilian.
Conforme dados do Infosiga, plataforma do Departamento de Trânsito do Estado (Detran), a capital registrou no ano passado 935 mortes por acidentes nas ruas e avenidas da cidade - o maior número desde 2015. Deste total de óbitos, 384 (41%) foram de condutores ou passageiros em motocicletas, mais de um por dia.
A Prefeitura diz que se esforça para diminuir o número de acidentes e óbitos no trânsito da capital, e cita a implementação de mais de 200 quilômetros de Faixa Azul, o asfalto novo e reformulação do sistema semafórico.
“O número de mortes cresceu 22% de janeiro a novembro de 2023, com 350 óbitos, para 427 no mesmo período de 2024”, diz a gestão Nunes. A administração destaca ainda que 50 pessoas se encontram em hospitais municipais aguardando cirurgia ortopédica por conta de acidentes de moto.
André Nascimento, professor de Direito da Universidade São Judas, explica que essa preocupação com a segurança e com os riscos que o modal pode causar dão direito à Prefeitura de barrar o serviço. “A legislação federal autoriza a regulamentação pelos municípios. A justificativa da prefeitura tem fundamento prático? Sim, a relevante mortalidade relacionada pode justificar a limitação do serviço na cidade.”
No entanto, Nascimento pondera: “ (A suspensão do 99Moto) É o melhor caminho? Tenho convicção que não, pois a atividade precisa de maior regulamentação, e não proibição. O ideal seria aumentar a segurança do transporte e não impedi-lo”.
99 diz que o serviço pode gerar R$ 28 milhões em arrecadação
A 99 afirma que o serviço opera em mais de 3,3 mil municípios do Brasil, e diz haver mais de 20 decisões judiciais, incluindo do STF, que entendem as cidades não podem proibir o 99Moto, apenas regulamentar. Procurada para comentar as falas dos especialistas, a plataforma não respondeu até a publicação do texto. A reportagem aguarda retorno.
A empresa defende as operações ao alegar que o modal tem alta aceitação pela população, e pode trazer benefício econômico, “com R$28 milhões em arrecadação de impostos para a cidade e a geração de 13 mil empregos diretos e indiretos”.