A Prefeitura de São Paulo respondeu, à Justiça, que irregularidades na destinação de milhares de apartamentos construídos com benefícios para a baixa renda seriam “pontuais” e que uma suspensão da política de incentivos traria “risco sistêmico” à continuidade da produção do setor na cidade, com impacto até na PPP da Habitação e no programa municipal Pode Entrar. A defesa foi apresentada após o Ministério Público de São Paulo (MP-SP) entrar com pedido de liminar pela suspensão da política, ao apontar “negligência” na fiscalização e indícios de que parte dos imóveis foram para público de maior renda, especialmente em bairros de classe média, como Pinheiros, Moema e Itaim Bibi.
Nesta semana, duas das principais organizações do setor construtivo, o Secovi-SP e a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), entraram com um pedido de ingresso como “amicus curiae” na ação civil pública movida pelo MP-SP. As entidades defendem que os incentivos tributários, fiscais e urbanísticos municipais precisam continuar e, ainda, que uma suspensão poderia impactar até nos edifícios em fase de conclusão, com “prejuízos incalculáveis”.
O MP-SP não se pronunciou sobre a manifestação da Procuradoria Geral do Município (PGM) até o momento. Na ação, aponta ausência de indícios de que a política municipal conseguiu atender à população de menor renda da cidade, assim como fala em “enriquecimento ilícito de construtoras”. A Promotoria de Habitação investiga possíveis fraudes na política municipal de incentivos fiscais, tributários e urbanísticos desde 2022.

Na petição, a gestão Ricardo Nunes (MDB) argumenta que o MP-SP deveria individualizar ações contra os ao menos 122 empreendimentos com possíveis fraudes, em vez de voltar-se ao controle da Prefeitura. Também faz críticas à Promotoria, chegando a sugerir que o pedido de liminar seria uma forma de manter a “segregação socioespacial que historicamente expulsou a população de baixa renda para as periferias da cidade” e de “elitização dos eixos urbanos” da cidade.
A PGM reconhece que há casos de irregularidades. Admite, ainda, que o Município sofre “evidentemente, (com) limitações materiais e humanas, bem como limitações jurídico formais para a punição de infratores, o que envolve procedimento de notificação, oitiva, produção de provas, intimação, resposta, decisão, recursos e providências finais”.
Como o Estadão revelou, 11 empreendimentos na cidade receberam multas e aviso de sanção nas últimas semanas, somando cerca de 2 mil unidades, a maioria microapartamentos em bairros de classe média, como Pinheiros, Lapa, Vila Romana e Alto do Ipiranga. Por enquanto, dois tiveram a penalidade inicial publicada, de R$ 31 milhões ao todo. O Município está em processo de contratação de uma auditoria, por cinco anos, no valor de R$ 43,7 milhões.
Segundo a gestão Nunes, ao menos 200 processos de apuração sobre irregularidades foram abertos, o que corresponde a cerca de 24,6 mil apartamentos. Grande parte desses casos foi identificada a partir de notificações de cartórios, após um convênio recente com o poder público, e denúncias encaminhadas pelo MP-SP.
Essas penalidades envolvem empreendimentos ligados a diferentes incorporadoras, construtoras e grupos do mercado imobiliário, como Benx, Cyrela, Canopus, MF7, You,Inc, Tecnisa, Metrocasa, Presence Empreendimentos, Rev³ Incorporadora, Floor e Consthruir. Ao Estadão, a maioria das empresas afirmou ter seguido a legislação vigente à época do licenciamento dos edifícios.
As apurações do MP-SP e da Prefeitura apontaram indícios de venda e aluguel de parte das unidades para pessoas com maior renda ou em valores considerados incompatíveis para a moradia popular. Uma parcela das empresas tem argumentado que compradores com maiores rendimentos se comprometeram a alugar as unidades à baixa renda.
A ação do MP é vista com preocupação no setor imobiliário. Avalia-se que, se a Justiça conceder a liminar, há potencial de impacto na dinâmica de aquisição de terrenos, na aprovação de novos empreendimentos para HIS e até na obtenção de “habite-se” para obras em conclusão. Neste mês, as principais associações do setor se reuniram com a gestão Nunes para tratar do tema.
Além disso, escritórios de advocacia especializados em mercado imobiliário têm defendido que há margem para judicialização por parte das autuadas, com possibilidade de cancelamento ou redução das multas. Não há uma estimativa, até o momento, sobre o montante em taxas e impostos que a Prefeitura abdicou para incentivar HIS e HMP na cidade.
À Promotoria, alguns compradores relataram que não foram informados de que tinham adquirido uma habitação de baixa renda. Além disso, há indícios de pessoas físicas e jurídicas que adquiriram os imóveis cientes de ser uma habitação de interesse social e, mesmo assim, anunciaram a revenda ou aluguel (comum e via plataformas de hospedagem) por valores considerados incompatíveis para essa faixa.
Prefeitura diz que suspensão afetaria direitos das construtoras e que está aumentando instrumentos de fiscalização
À Justiça, a Prefeitura argumentou que o atendimento da liminar causaria “insegurança jurídica”. Também alegou que afetaria “diretamente os direitos das construtoras e incorporadoras, que teriam sua atividade econômica inviabilizada”.
A gestão defendeu que a revisão recente da legislação urbanística, entre 2023 e 2024, aprimorou o monitoramento dessa política de incentivo, como a exigência da averbação da destinação como HIS na matrícula. Chegou a mencionar, ainda, os impactos da pandemia no serviço público e que a fiscalização poderia ocorrer apenas após a conclusão das obras (embora uma parte das unidades seja vendida ainda na planta).

“O abuso de direito não ocorre por omissão do Município, mas sim pelo descumprimento das normas urbanísticas e habitacionais por parte das empresas que comercializam as unidades, muitas vezes burlando os mecanismos de controle e adotando práticas ilícitas para lucrar indevidamente com os incentivos urbanísticos concedidos”, reconheceu a Procuradoria.
Construtoras dizem que liminar do MP pode trazer ‘prejuízo incalculável’
No pedido de ingresso como amicus curiae (”amigo da corte”, que oferece subsídios sobre o tema da ação), a Abrainc e o Secovi-SP falaram que a política municipal é “exitosa” e que uma eventual suspensão traria “prejuízo incalculável às políticas de habitação popular”.
“Os casos sobre os quais há suspeita de irregularidade são excepcionais e, como tais, devem ser tratados no bojo de uma ação voltada a responsabilizar aqueles que infringiram a lei, não em uma ação voltada a suspender a exitosa política pública em questão”, argumentaram. Também apresentaram seis argumentos pela manutenção da política de incentivo. São eles:
- setor privado tem maior capacidade de investimento para produção de habitação para baixa renda do que setor público;
- descontinuação impactaria negativamente em programas de redução de déficit habitacional, como Minha Casa Minha Vida e Pode Entrar;
- existência de mecanismos para ‘coibir burlar e desvios’ na política municipal;
- ‘efetiva atuação’ do Município para coibir fraudes;
- petição inicial do MP-SP evocaria ‘valores jurídicos abstratos’ e faz ‘generalização’ que não refletiria realidade;
- ausência de avaliação das consequências de uma suspensão da política municipal.
MP fala de ‘fake HIS’ em São Paulo
Na ação judicial, o MP-SP menciona expressão do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (Labcidade) da USP sobre o tema: “fake HIS”. Os pesquisadores da Faculdade de Arquitetura de Urbanismo têm falado em “social housing washing”, isto é, uma possível maquiagem que daria indevida aparência de produção de moradia popular a uma política que incentivou imóveis em parte utilizados por outra parcela da população.
No ano passado, após solicitar notificação dos cartórios, a Promotoria recebeu, em menos de dois meses, mais de 560 casos de imóveis e empreendimentos suspeitos. Esse montante envolve exclusivamente casos de compradores que buscaram registrar imóveis HIS e HMP naquele período.
“Unidades colocadas à venda pelo mercado imobiliário como HIS e HMP têm metragem (em geral) entre 24 e 30 m², não raras vezes por valor que ultrapassa R$ 20 mil por metro quadrado. Essa tipologia e preço evidenciam-se claramente, em princípio, como sendo incompatíveis com famílias que recebem de três a seis salários mínimos”, aponta na ação.
No pedido de liminar, o Ministério Público defende que a política de incentivo precisaria ser suspensa temporariamente até o desenvolvimento de “sistema seguro e eficiente de fiscalização pública de adquirentes e locatários” e a definição de controle de preços de venda de unidades e locações. Fala-se até na possibilidade de que seja descontinuada.
“Condicionam (viabilizam) a construção a um custo de empreitada bastante inferior, trazendo maior rentabilidade ao incorporador, nem sempre alcançando, porém, o objetivo da norma, que é o de aumentar a oferta de moradias a preços condizentes aos destinatários do citado programa social”, diz o MP.
A petição é assinada por Marcus Vinicius Monteiro dos Santos, Camila Mansour Magalhães da Silveira, Roberto Luís de Oliveira Pimentel e Moacir Tonani Junior, promotores de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital.