‘Quando policiais ignoram protocolos, a pergunta é se a cadeia de comando está funcionando’

Para pesquisador, é preciso ter falas incisivas do Executivo paulista indicando ações para reverter alta da letalidade da PM; casos de morte de aluno de Medicina e homem atirado de ponte repercutiram

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Foto do author Ítalo Lo Re
Atualização:
Foto: Clarice Castro/MDHC
Entrevista comLeonardo Carvalhopesquisador sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Uma série de ocorrências têm colocado em xeque a atuação da Polícia Militar de São Paulo, como as mortes de uma criança de 4 anos em uma ação em Santos, no litoral paulista, e de um estudante de Medicina na Vila Mariana, zona sul paulistana. Nessa segunda-feira, 2, um agente da corporação arremessou um homem do alto de uma ponte na região de Cidade Ademar, também na zona sul.

Para Leonardo Carvalho, pesquisador sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mesmo diante do aumento da letalidade policial, faltam ao secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, e o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) anunciarem ações estruturais e efetivas para reduzir a letalidade policial, que atingiu este ano o maior número desde 2020.

Segundo o especialista, entre as saídas para reverter a alta de mortes pelas forças de segurança estão o uso de armas não letais, como tasers, e o monitoramento feito por meio de câmeras nos uniformes dos policiais.

Nesta semana, imagens de dois casos protagonizados por PMs repercutiram: a morte de um jovem de 26 anos em um mercado, alvejado de costas por um agente de folga. Depois, um homem arremessado de uma ponte. O que está acontecendo com a PM de São Paulo?

É preciso olhar um pouco mais para trás para entender, até de forma mais ampla, o contexto de segurança pública de São Paulo. Até 2020 e 2021, havia uma queda nos números de letalidade policial no Estado. E essa queda não foi à toa, mas resultado de esforço institucional da própria Polícia Militar e do governo estadual. Como a polícia fez isso? Entre outras ações, com a aquisição de armas de capacitação neuromuscular - os tasers -, com criação de procedimentos internos para melhor apurar os casos de letalidade policial - as comissões de mitigação - e com a criação do Programa Olho Vivo, que implementou as câmeras corporais. Como resultado de tudo isso, a letalidade caiu, sem nenhuma explosão de crimes por conta disso. Pelo contrário, houve redução de vários índices criminais, incluindo homicídios.

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Agora, há uma mudança grande com a nova gestão do Executivo paulista. O próprio governador, na época da campanha, uma hora falava que acabaria com o programa de câmeras; outra hora falava que ia manter. Não tinha posicionamento firme. Além desses posicionamentos dúbios do governador, o secretário da Segurança, sempre que indagado, sai com uma resposta quase padrão, sem negar o direito de defesa dos policiais, mas também em postura pouco indicativa de averiguação. A posição das lideranças e as mensagens, tudo que falam ou deixam de falar, vai chegando para os agentes que estão no policiamento cotidiano, nas atividades operacionais. Todos esses discursos, como de dúvida sobre a continuidade do Programa Olho Vivo (de câmeras nas fardas) ou as declarações dadas ao longo das operações Escudo e Verão, com número muito grande de vítimas de letalidade policial, passam uma mensagem para os agentes que estão nas atividades cotidianas. Os agentes vão entendendo e reagindo àquelas mensagens.

PM joga homem de ponte na Cidade Ademar, na zona sul de São Paulo. Foto: Reprodução/Redes sociais

Qual era a mensagem passada anteriormente?

Em 2020 e 2021, a mensagem passada pelo Comando da Polícia Militar, com a implementação das câmeras e todas as outras medidas, é: ‘estamos de olho em relação a eventuais desvios e a eventuais usos abusivos da força’. Essa é uma mensagem no sentido de que a PM do Estado de São Paulo é uma polícia profissional baseada em normas técnicas e procedimentos operacionais. E isso é entendido dessa forma pela tropa. Quando muda a mensagem dos líderes, obviamente terá também isso reverberando em toda a cadeia hierárquica e chegando até os agentes que atuam nas ruas. A alta da letalidade policial, mesmo comprovada pelas evidências, em momento algum aparece na fala do secretário e do governador a implementação de ações buscando reduzir esses números. Não teve fala incisiva do Executivo paulista reconhecendo a alta da letalidade policial como um problema e indicando ações para reverter essa situação.

Houve quatro casos emblemáticos recentemente: o do menino Ryan, assassinado por um tiro de pistola .40 disparado por um policial militar (segundo porta-voz da PM, é a hipótese mais provável), o do Marco Aurélio, (estudante de Medicina) assassinado por um policial militar durante abordagem, o do Gabriel, morto no mercado, e o de agora, do homem içado e jogado de uma ponte. Além do descontrole sobre o uso da força por parte da polícia, é preciso pensar sobre como esses casos estão vindo à tona. O caso do Ryan é o único dos casos em que a gente não tem imagem, e foi o único caso em que o governador e o secretário não se manifestaram no sentido de cobrar providências para apurar a dinâmica dos fatos. A única manifestação oficial que foi da Polícia Militar reconhecendo que ela era a provável autora do disparo. Já no caso do Marco Aurélio há uma primeira versão baseada no depoimento dos policiais, buscando justificar o uso legítimo da força ali.

Versão inicial apontou que ele teria tentado tomar a arma de um dos policiais.

Justamente. Que ele tentou tomar a arma, colocou a vida de um policial em risco e, por isso, o agente fez o uso da arma de fogo, tentando legitimar a ação. Essa versão seria sustentada, e provavelmente é que a iria constar nos autos da investigação, se não fossem as imagens. A mesma coisa no caso do Gabriel, que repercute porque há imagens muito fortes, de um policial disparando de uma distância muito curta e efetuando tiros pelas costas. E a mesma coisa no caso do homem jogado da ponte. Se não tivesse alguém que se predispôs e até se arriscou a captar aquelas imagens, a gente não saberia disso. E a pergunta é: quantas pessoas não passaram por situação de violência semelhante em que o caso só não veio à tona porque não tinha imagens?

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Fica a evidência da importância de ter ferramentas de transparência da atividade policial. Em meio a isso, é preciso lembrar que, agora, em dezembro, entra em operação o novo modelo de câmera, de bodycam. Diferentemente do modelo atual, não vai ter gravação ininterrupta. O policial passa a selecionar o que ele filma ou não. Se uma das principais características do Programa Olho Vivo, que era a principal inovação e serviu de inspiração para tantos outros programas de outras polícias no Brasil e no mundo, era justamente a gravação ininterrupta, por que acabar com isso? Qual o objetivo? É mais uma mensagem que vai sendo passada dos gestores do Executivo para a sua equipe. “Agora você escolhe o que vai gravar”, o que descaracteriza totalmente o objetivo da câmera, enquanto mecanismo para proporcionar transparência da atividade policial e proteger policiais que agem dentro dos procedimentos.

No caso do homem arremessado da ponte, o MP-SP classificou o episódio como “estarrecedor e inadmissível”. Na sua avaliação, o MP poderia ter acompanhamento mais próximo de casos assim? Como avalia a atuação da instituição mesmo em operações mais amplas, a Verão e a Escudo?

Cabe ao Ministério Público o controle da atividade policial. Cabe a ele se estruturar para, de fato, exercer o controle e investigar todos os casos de letalidade policial e todos os casos de denúncia de uso abusivo da força, de uso legítimo da força. E o Ministério Público, por meio do Gaesp, ele tem que estar estruturado. Não adianta ter uma condição que não se relaciona com a realidade. Tem que ter uma estrutura condizente capaz de promover essa investigação. É interessante ver que o Ministério Público soltou uma nota sobre esse caso, mas é preciso ver como tem sido a manifestação frente a outros casos noticiados. Foram mais de quatro casos de repercussão (do Marco Aurélio, do Ryan, do Gabriel e do homem arremessado da ponte) em um mês, e em três deles houve captura de imagens. Nos casos em que não se tem imagem, como no do Ryan, é ainda mais fundamental a atuação do Ministério Público, que precisa conduzir apuração que não seja norteada só pelo depoimento dos agentes envolvidos. Não podemos naturalizar, nem darmos como acaso, a morte de um menino de 4 anos que brincava perto de casa.

No caso do Marco Aurélio, o advogado da família disse que os dois policiais que atuaram na ação tinham equipamentos não letais (tasers) no carro, mas não os usaram na abordagem. Isso revela despreparo dos PMs para fazer uso progressivo da força?

A hierarquia preconiza muito a obediência aos protocolos, mas os policiais não estão cumprindo os protocolos. Esse é um exemplo claro. Ao que parece, os policiais tinham o equipamento para desdobrar aquela ocorrência de forma não letal, e o protocolo provavelmente dizia para carregar o taser, só que teve uma desobediência disso. O protocolo não foi desenvolvido a esmo: especialistas estudam aquela situação para normatizar as formas de abordagem e fazer mitigação de risco. Quando os policiais ignoram protocolos, a pergunta é se a cadeia de comando está funcionando. Se a cadeia de comando está funcionando, então é isso que ela está passando de mensagem para a tropa?

O senhor mencionou que o taser seria um ponto importante para reduzir a letalidade policial, mas não se ouve falar de muitos casos envolvendo o uso desse equipamento. Muitas vezes, a arma de fogo é recorrida como o primeiro recurso. O que explica isso?

Sim, é preciso questionar isso. Se não me engano, foram mil tasers comprados só em 2021. Onde está esse equipamento? Está com a manutenção em dia? Teve compra de mais? Como está o treinamento? Não adianta você só comprar o taser e dar para o policial, é preciso fazer uma familiarização do agente com o equipamento ao longo do processo de formação e aperfeiçoamento. Qual é o protocolo de formação dos policiais para desenvolver familiaridade com equipamentos não letais, no caso o taser? É preciso entender que não é questão pontual. Não adianta olhar unicamente para os dois policiais que estavam na ocorrência, é uma questão institucional. Quem capacitou aqueles dois policiais para estarem naquele ocorrência? Eles foram capacitados? Qual é o briefing que esses policiais recebem quando começam o turno de trabalho? A julgar pelos episódios recentes, há dois cenários: se a cadeia de comando está passando uma mensagem que chega, que mensagem é essa? Ou se está havendo uma quebra na cadeia de comando e os policiais estão agindo por sua livre vontade.

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Especialistas apontam que alguns dos casos recentes têm sido marcados por dinâmicas que, antes, não eram tão comuns de se ver por São Paulo.

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E não é para se acostumar - importante frisar isso. É estarrecedor uma criança de 4 anos ser vítima fatal da Polícia Militar. É estarrecedor um jovem tomar 11 tiros pelas costas ou tomar um tiro em uma abordagem policial em que ele estava vulnerável, sem necessidade. É estarrecedor uma pessoa ser jogada de uma ponte por um policial militar. Independentemente das circunstâncias. É preciso perguntar o que está acontecendo.

Em paralelo, no caso do delator do PCC morto no Aeroporto de Guarulhos, houve afastamento de PMs que trabalhavam na escolta de Antonio Vinicius Gritzbach, além do afastamento de policiais civis mencionados na delação. Como combater a infiltração do crime organizado no meio policial em São Paulo?

A questão da corrupção policial é séria, a cooptação por agentes públicos pelo crime organizado não acontece só no âmbito da polícia. O crime organizado coopta agentes públicos de vários órgãos, mas é necessário um trabalho de investigação das corregedorias e trabalho de controle externo do Ministério Público, para que de fato tenha uma estrutura pública a serviço da população. Não conseguiremos avançar se assistirmos dos gestores do Executivo uma postura passiva, de leniência. É preciso que a liderança do Executivo atue de maneira bem enfática, não só por mensagens, mas por ações, mostrando que não é leniente em relação a casos de corrupção.

Quais ações são necessárias para estimular mais transparência e investigação relacionada a casos de violência policial? E qual é a importância do programa de câmeras nas fardas para melhorar os indicadores?

O principal ponto para se destacar é uma postura firme e clara dos gestores do Executivo, como governador, secretário e o comandante-geral da PM quanto à adoção de medidas para coibir e diminuir excessos e ações não condizentes com os protocolos. É preciso que o governo se posicione e reafirme que não é tolerante com excessos, com esses assassinatos. E a partir daí, que retome e entenda um pouco onde se perdeu o controle. São ações muito específicas que precisam ser desenhadas, precisam ser operadas pelo próprio governo, além de contar com o controle externo da atividade policial, feito pelo Ministério Público. Quais os resultados das comissões de mitigação, por exemplo? A que conclusões estão chegando? Como está a interação do MP com as corregedorias e as delegacias que apuram os casos, como o DHPP? Como está a qualidade da investigação?

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