Os estudantes de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) filmados ofendendo com os termos “cotistas” e “pobres” os alunos da Universidade de São Paulo (USP) podem responder por injuria racial e ficar impedidos de tirar a carteirinha da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), necessária para atuar como advogado. Os insultos ocorreram durante os Jogos Jurídicos realizados no final de semana na cidade de Americana, interior de São Paulo.
A Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi) abriu um inquérito policial para apurar o ocorrido, após determinação do Ministério Público de São Paulo (MP-SP). “As vítimas estão sendo ouvidas, e os vídeos apresentados estão sob análise da equipe de investigação”, afirmou a Secretaria de Segurança Pública (SSP) do Estado em nota.
Leia também
Questionada, a OAB SP disse que o caso é passível de processo de inidoneidade no Tribunal de Ética e Disciplina da instituição, podendo ser decretado o cancelamento da inscrição dos jovens quando prestarem o exame da Comissão de Seleção e Inscrição da Ordem.
“Como instituição comprometida com a defesa do Estado Democrático de Direito e com os valores fundamentais da sociedade, a OAB SP espera que aqueles que representam a advocacia ajam com responsabilidade, integridade e respeito aos preceitos éticos que sustentam a profissão”, afirmou da OAB SP, em nota.
Pelo menos três estudantes da PUC-SP foram filmados fazendo gestos obscenos e chamando alunos da USP de “cotistas” e “pobres”. A universidade disse que repudia atos de preconceito e que abriu uma comissão de averiguação sobre o caso.
A Lei de Cotas foi sancionada em 2012 e instituiu a reserva de vagas de universidades e institutos federais de ensino superior a estudantes de escolas públicas. Nessa reserva, estão previstas regras para destinar vagas a alunos de baixa renda, além de pretos, pardos e indígenas. Em 2016, pessoas com deficiência foram incluídas. Em 2023, estudantes quilombolas também se tornaram público beneficiário da política de cotas.
A USP decidiu adotar o sistema de cotas para o ingresso na universidade em 2017, passando a ser implementado a partir do ano seguinte. Conforme os dados informados pela instituição em maio deste ano, a universidade possui 60 mil estudantes de graduação, sendo que 45,1% que cursaram o ensino médio exclusivamente em escolas públicas e 23,2% se autodeclaram pretos, pardos e indígenas.
Por que o caso dos alunos da PUC-SP pode ser criminalizado como injuria racial?
A advogada Pamela Villar, sócia do escritório Salomi Advogados, afirma que as ofensas podem se enquadrar como crime de racismo. A criminalista destaca que a utilização dos termos de forma pejorativa e discriminatória tem como finalidade obstruir o exercício de um direito em razão de uma distinção racial, como se as pessoas a quem se referiam não pudessem ocupar aquele espaço.
“Os requisitos para o enquadramento penal estão, inclusive, presentes. Resta, no entanto, o desafio de identificar a integralidade dos autores do delito, o que só se fará com uma investigação de qualidade, na qual sejam recolhidas e analisadas as imagens da data dos fatos e ouvidas as vítimas e testemunhas”, afirma a advogada.
“Na minha leitura, está tudo interligado, a questão das cotas e a questão racial. A gente sabe que quando se faz esse tipo de ofensa, está ligado a raça. Então, caberia uma condenação por injúria racial”, diz o advogado criminalista André Kehdi. Além disso, o fato das ofensas terem sido filmadas “é como ter o corpo de delito na mão”. “A gravação é péssima para os acusados e ótima para se concluir de uma forma segura que houve crime.”
Segundo o especialista, que é sócio e fundador do escritório Khedi Vieira Advogados, o Juiz que ficará responsável pelo caso pode pedir um levantamento da quantidade de alunos negros da USP presente no evento para decretar se os termos “cotistas” e “pobres” foram utilizados atrelados à raça dos ofendidos.
Se enquadrado como injuria racial, a pena prevista pelo código penal é de dois a cinco anos de reclusão, além de multa. O crime é imprescritível e não permite pagamento de fiança, nem proposta de acordo para não judicialização do caso.
Já se o entendimento final for de que os termos não foram atrelados à raça dos ofendidos, a tipificação do crime seria de injúria, sem cunho racial, o que implicaria em pena menor. “Injúria normal é quando são usadas palavras para ofender a dignidade das pessoas que estavam ali. Tem penas menores, de detenção de 1 a 6 meses ou multa. Não permite regime fechado, já a injúria racial permite”, diz Kehdi.
Estudantes foram demitidos e universidade abriu comissão de averiguação
Pelo menos três dos estudantes da PUC que cometeram as ofensas e foram identificados por meio de vídeos que circulam nas redes sociais foram demitidos nesta segunda-feira, 18, pelos escritórios de advocacia em que estagiavam.
Arthur Martins Henry, que foi filmado gritando palavrões, foi demitido do Castro Barros Advogados, que tem escritórios em São Paulo, Rio e Distrito Federal. “Informamos que o estagiário envolvido no lamentável ato discriminatório praticado neste fim de semana, tendo como vítimas estudantes da USP, não integra mais o Castro Barros Advogados. O escritório repudia quaisquer práticas discriminatórias”, afirmou, em nota.
Tatiane Joseph Khoury, que foi filmada gritando “ainda por cima é cotista”, também foi demitida do Escritório Pinheiro Neto. “O escritório lamenta o episódio ocorrido no último sábado e reitera que não tolera e repudia racismo ou qualquer outro tipo de preconceito. Informamos que a estagiária envolvida nesse episódio não integra mais o escritório”, informou.
Marina Lessi de Moraes, outra aluna da PUC identificada nos vídeos, teve sua demissão confirmada pelo Escritório Machado Mayer. “O Machado Meyer Advogados comunica que, alinhado com os seus valores institucionais e o seu compromisso inegociável com a promoção de um ambiente inclusivo e respeitoso, decidiu pelo desligamento da estagiária envolvida no episódio do último final de semana nos Jogos Jurídicos.”
A Faculdade de Direito da PUC-SP abriu uma comissão para avaliar a continuidade dos estudantes na instituição. O prazo para a comissão apresentar o resultado das apurações é de 40 dias.
A universidade disse que irá apurar os fatos e que “repudia com veemência toda e qualquer forma de violência, racismo e aporofobia (hostilidade com pessoas pobres), e lamenta profundamente o episódio ocorrido em 16/11, envolvendo um grupo de estudantes do curso de Direito da nossa Universidade nos Jogos Jurídicos de 2024″.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.