Como foi a revolução que bombardeou SP há cem anos? Veja mapa com locais de conflitos

Movimento esquecido na história do Brasil queria tomar a cidade para depois atingir a Presidência da República; conflitos fizeram com que cerca de 300 mil paulistanos fugissem

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Caos. Destruição.

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Prédios desfigurados. Medo. Sangue. Mortes.

Bombas disparadas por canhões. Tiros a esmo.

Trincheiras improvisadas com paralelepípedos e postes de luz. Colchões queimados. Arames farpados retorcidos. Quem podia fugiu para o interior. Jornais deixaram de ser publicados ou circularam sob censura, como foi o caso do Estadão. Trens foram descarrilhados, estradas bloqueadas, a cidade cercada por tropas federais.

Não havia distinção entre os alvos: civis eram atingidos sem critérios. No episódio mais sangrento, o exército bombardeou o Teatro Olympia, no Brás, onde dezenas de paulistanos se refugiavam — morreram ao menos 30 e uma centena ficou ferida.

Revolução de 1924 espalhou terror e bombardeio pela cidade Foto: Acervo Estadão

A Revolução de 1924 é um episódio muitas vezes esquecido da história do Brasil. Mais do que destruição e mortes, porém, deixou um legado mais visível do que as marcas de tiros e bombas que ainda resistem na malha urbana paulistana.

Fotos da época não deixam dúvidas do estrago. Não é exagero algum comparar as cenas com tragédias de guerras ao redor do mundo, principalmente aquelas em que alvos civis não são poupados.

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A Revolta de 1924 está dentro do movimento conhecido como tenentismo, em que uma classe média militar brasileira, intelectualizada, passou a se contrapor, no início daquela década, à maneira como o País estava institucionalmente organizado.

Entre suas bandeiras, estavam pautas como o voto secreto e a luta contra o analfabetismo. Também queriam acabar com a política conhecida como “café com leite”, que privilegiava nomes das oligarquias paulista e mineira, em revezamento, no comando do País.

“Era uma revolta dos jovens oficiais do Exército, os chamados tenentes, descontentes com a desrepublicanização da República pelas oligarquias regionais”, sintetiza o sociólogo José de Souza Martins, professor da USP, no livro São Paulo no Século XX - Primeira Metade.

“O objetivo era o de implantar uma ditadura, como consta de seus documentos, até que o povo tivesse maturidade política para a cidadania e para a escolha eleitoral, livre dos constrangimentos do chamado voto de cabresto, da política de curral e da dominação pessoal, que negavam o republicanismo e alicerçavam o atraso político do País”, prossegue.

O plano era tomar a capital paulista

Depois da malsucedida Revolta dos 18 do Forte, ocorrida no Rio em 1922, os tenentistas seguiram conspirando em todo o País. E acreditaram que tomar São Paulo seria a melhor estratégia.

“O intuito era o mesmo (do que a do movimento de dois anos antes): sublevar os quartéis e organizar uma marcha revolucionária em direção ao Rio de Janeiro para depor o presidente”, escreve a historiadora Ilka Stern Cohen no livro História do Estado de São Paulo - A Formação da Unidade Paulista. Ela é autora de Bombas Sobre São Paulo: A Revolução de 1924.

“Achavam que todos iriam aderir e depois marchariam juntos para o Rio”, diz o pesquisador Paulo Rezzutti, que mantém um canal de história no YouTube.

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Vestígios dos confrontos podem ser vistos nas paredes de imóveis antigos, como a Igreja Santa Ifigênia, na região central Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Professor na Unesp, o historiador Paulo Henrique Martinez explica que a rebelião não foi ato isolado. “Todo o período da vida republicana, até então, transcorreu sob estado de alerta e de tensão política e social permanentes”, acrescenta ele, lembrando movimentos como as revoltas da Armada, de Canudos, da Vacina, do Contestado e da Chibata. E, claro, o levante do Forte de Copacabana, em 1922.

“Inegavelmente, a maior contradição política da revolta dos militares de 1924 foi a de romper os limites constitucionais em nome da efetivação dos artigos da própria Constituição”, analisa.

Havia motivos para a escolha da capital paulista. Em primeiro lugar, o fato de que a cidade havia crescido de tal forma nas décadas anteriores — saltando de 65 mil habitantes em 1890 para 700 mil em 1924 — que era fácil para os tenentistas se misturarem na massa urbana sem serem tachados de forasteiros ou suscitarem suspeitas.

De fato, líderes como militar cearense Joaquim Távora (1881-1924) viviam em São Paulo já antes da eclosão da revolta. Considerado o “marechal da Revolução de 1924″, o militar gaúcho Isidoro Dias Lopes (1865-1949) chegou à cidade poucos dias antes daquele 5 de julho.

Além disso, por causa da efervescente industrialização, São Paulo era a cidade brasileira com melhor integração ferroviária. E isso, no entendimento dos idealistas do movimento, facilitaria não só que tudo ocorresse de modo rápido e praticamente indefensável, como também o plano de que a revolta se espalhasse por outros lugares e, claro, terminasse com a ocupação do Palácio do Catete, sede da Presidência da República, no Rio.

Sim, o auge do ato seria a deposição do presidente Artur Bernardes (1875-1955).

Por fim, havia a figura da Força Pública. Predecessora da Polícia Militar de São Paulo, era praticamente um exército. E gozava naquele momento do prestígio de ser o segundo maior grupamento militar da América do Sul — perdendo somente para o Exército brasileiro.

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“São Paulo tinha armamento e uma Força Pública capaz de rivalizar com o Exército nacional”, ressalta ao Estadão o jornalista, historiador e professor universitário Moacir Assunção, autor de São Paulo Deve Ser Destruída: A História do Bombardeio à Capital na Revolta de 1924.

A operação e o revide

Os tenentistas foram hábeis em costurar apoio com boa parte da cúpula da Força Pública. O mais ilustre desses apoiadores foi o major Miguel Costa (1885-1959), argentino que imigrou para São Paulo ainda na infância e se tornou comandante do regimento de cavalaria da Força.

Costa foi o braço tático da operação. Ele providenciou aos revoltosos plantas dos quartéis e dos edifícios públicos. O plano era ocupá-los de supetão, não permitindo que houvesse revide.

Naquele início de julho havia informações, contrainformações e muita boataria nas cúpulas do poder. Tanto que, no dia 2, um major do exército foi mandado do Rio a São Paulo para averiguar a situação.

Na noite do dia 4, o governador paulista, na época chamado de presidente do Estado, Carlos de Campos (1866-1927), reuniu-se com oficiais tanto do Exército quanto da Força Pública porque queria se inteirar das informações desencontradas que corriam.

Na madrugada de 5 de julho, a operação começou. A ideia dos revoltosos era tomar os quartéis e o Palácio dos Campos Elíseos — sede do governo paulista. De lá, marchar até o Rio, na expectativa de que ganhassem apoio de policiais e civis de outros Estados também.

Em quatro dias a cidade parecia nas mãos dos tenentistas e seus apoiadores. O governador abandonou o palácio, quando o prédio foi alvejado, e se refugiou em uma casa na Penha, na zona leste.

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Mas as coisas não correram conforme planejado. Segundo as pesquisas de Assunção, os revoltosos tinham a expectativa de tomar toda a cidade de modo muito mais rápido, para então partirem ao Rio.

Houve contratempos, alguns até prosaicos. Um dos líderes, por exemplo, desceu em estação de trem errada e, com isso, atrasou a ocupação de um quartel. Outro se feriu porque um canhão passou por cima de seus pés. “Tudo isso complicou a vida e eles acabaram atrasando a operação”, comenta o jornalista e historiador.

O dia 9 de julho — que só se tornaria data magna para os paulistas oito anos mais tarde — foi quando os líderes da revolta ocuparam o Palácio dos Campos Elíseos. Ao encontrar a sede do poder completamente abandonada, entenderam que haviam vencido.

Reuniram-se com representantes da Associação Comercial de São Paulo e começaram a articular o que seria um governo revolucionário. A ilusão durou pouco. A partir do dia 11, tropas legalistas federais passaram a contra-atacar.

A estratégia do exército não foi direcionada. A ideia era bombardear para todos os lados, instaurando o terror. Em última instância, colocariam a população contra os revoltosos e, assim, venceriam.

Mortos, feridos e fugitivos

Números oficiais falam em 503 mortos. “Mas a Prefeitura parou de contar os mortos, não tinha mais nem onde enterrar”, conta Assunção. Diversos pesquisadores estimam que tenham sido ao menos 800. O jornalista e historiador acredita que o mais correto seja calcular algo em torno de 1 mil a 1,5 mil.

De qualquer forma, é o mais letal acontecimento bélico da cidade de São Paulo. O movimento constitucionalista de 1932, também chamado de Revolução de 32, deixou oficialmente 934 mortos — extraoficialmente, cerca de 2 mil — em 87 dias de combates ocorridos em todo o Estado. A Revolta de 1924 durou apenas 23 dias e teve bombardeios e conflitos somente na cidade.

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Foram 5 mil feridos e 2 mil prédios destruídos. “Quase todos os mortos foram civis. Dois terços dos feridos e dos prédios também”, ressalta Assunção.

A guerra foi desigual. Do lado legalista, o Exército contava com 18 mil homens e uma artilharia que era a mais tecnológica da época. Até aviões foram utilizados para bombardear a cidade, conforme pesquisa de Assunção. Já os revoltosos eram cerca de 6 mil e mesmo utilizando a estrutura da Força Pública paulista não contavam com o suprassumo da tecnologia dos anos 1920.

Dentre os civis, quem conseguiu foi para longe. “Houve grande êxodo da população civil e, principalmente, de autoridades governamentais”, conta Martinez, da Unesp.

“O esvaziamento da cidade tornou-se uma necessidade crescente. De um lado, a cidade ficou isolada e cercada pelas tropas leais ao governo federal. A circulação ficou restrita, o abastecimento irregular de alimentos, medicamentos e combustíveis, o risco de tiroteios e bombardeios em direção aos bairros e posições estratégicas no centro da cidade eram ameaças constantes”, descreve o professor.

“De outro lado, a intenção do movimento, liderado pelo general Isidoro Dias Lopes, não era isolada. Fazia parte de um plano maior de insurreição militar. Nunca teve a intenção de ocupar e controlar a cidade, mas sim a de reunir forças e apoio político e militar para alcançar a capital federal e assegurar a deposição do então presidente da República. Aconteceu o contrário, comprometendo o plano estratégico inicial”, acrescenta.

Segundo Rezzutti, as estimativas são de que cerca de 300 mil pessoas deixaram a cidade por causa do conflito. “Quem não fugiu era porque não tinha para onde escapar ou não conseguiu sair por conta dos trens descarrilhados.”

Calcula-se que só para Campinas tenham ido 50 mil paulistanos. “Teve gente que saiu a pé em busca de abrigo. Quem ficou sofreu muito. Houve quem buscasse abrigos em fábricas e teatros, principalmente nos porões. Mas não adiantava, porque havia bombardeios e essas pessoas morreram soterradas”, completa Rezzutti.

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“A cidade foi entregue à própria sorte, sem condução e controle político-administrativo coordenado. Os militares rebeldes assumiram a direção de serviços públicos, evitando, assim, maior caos social, depredações, roubos, saques às residências, comércio e patrimônio público”, afirma Martinez.

Em pelo menos seis ocasiões, entidades da sociedade civil clamaram pelo fim dos bombardeios. Essas iniciativas foram capitaneadas por nomes influentes da sociedade paulista da época, como o primeiro arcebispo de São Paulo, d. Duarte Leopoldo e Silva (1867-1938); o jornalista e diretor do Estadão, Julio Mesquita (1862-1927); o jurista e historiador José Carlos de Macedo Soares (1883-1968), então presidente da Associação Comercial de São Paulo; entre outros.

Mesmo não tendo apoiado os rebeldes, em 29 de julho de 1924, Mesquita foi preso por ordem do governo federal e enviado ao Rio. O Estadão teve sua circulação suspensa por 3 semanas, só voltou às ruas em 17 de agosto daquele ano, sob severa censura. Em suas linhas nada tratou sobre a prisão e nem sobre os eventos políticos que se seguiram.

“Durante a revolta, houve difusas manifestações de hostilidade a São Paulo”, lembra Martins. “Quando o arcebispo d. Duarte Leopoldo e Silva e outros membros da comissão tentaram propor ao governo federal clemência para o povo de São Paulo, vitimado por uma guerra que, no fundo, não era sua, obteve do presidente Artur Bernardes e do ministro da Guerra, Setembrino de Carvalho, a resposta de que São Paulo era um Estado rico, que teria condições de reconstruir a sua bela e formosa capital.”

Martinez acrescenta que a cidade ficou “arruinada”. “Houve colapso urbano generalizado, o que obrigou que os militares tentassem manter a rotina social e econômica em funcionamento na cidade”, diz o professor.

“Foram acionadas lideranças políticas e da sociedade interessados em minimizar prejuízos materiais e riscos à população. Abandonada e ameaçada, não houve saída, a não ser preservar as posições até a decisão pela retirada estratégica da capital paulista, após algumas semanas.”

Algumas marcas dessa destruição ainda podem ser vistas, por exemplo na chaminé anexa ao quartel da Polícia Militar na Luz, e em templos religiosos como o Mosteiro de São Bento, no centro, a Igreja Nossa Senhora da Glória, no Cambuci.

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Mas não houve preocupação em preservar a memória. “A malha urbana foi sem dúvida a principal vítima na infraestrutura da cidade, dificultando, retardando e paralisando o funcionamento e a circulação na cidade”, lembra Martinez.

“A memória da rebelião em São Paulo foi apagada sistematicamente. As celas e dependências de delegacias e de presídios que guardavam registros de prisioneiros em suas paredes, por exemplo, foram alteradas com planos de reforma e restauração para fins culturais. Contudo, sem nenhuma atenção para a preservação destes testemunhos dos rebeldes e vítimas da repressão ao movimento de 1924 e seguintes”, destaca.

Depois, a criação de um ‘Estado policial’

Os revolucionários deixaram a cidade rumo ao interior na noite de 27 de julho. No dia seguinte, quando o palácio foi retomado pelo governador, a guerra havia terminado.

Ficaram os destroços. E a semente de capítulos seguintes da história do Brasil — a Coluna Prestes, o varguismo e a ditadura do Estado Novo e, de certa forma, até o golpe cívico-militar de 1964.

Para especialistas, ali nascia a consolidação de um Estado policial no Brasil. E, ao mesmo tempo, começava a morrer a República Velha, com as tradicionais oligarquias minadas.

Pesquisador na Unesp e professor no Colégio Presbiteriano Mackenzie Tamboré, o historiador Victor Missiato lembra que o tenentismo fez com que o Brasil vivesse em estado de sítio durante boa parte da década de 1920 e consolidou “a repressão policial, com a criação, por exemplo do Departamento de Ordem Política e Social”. O DOPS foi institucionalizado em dezembro de 1924 e se tornou um dos símbolos da linha-dura no Estado Novo e no regime militar.

“(A Revolta de 1924) acentuou o estado de segurança do Brasil, com a formação de um aparato repressivo”, afirma o historiador.

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Os impactos foram “muitos e diversos”, avalia Martinez. “O mais emblemático foi a cisão crescente da própria oligarquia paulista, diante da postura política do governo federal e dos prejuízos causados aos comerciantes e industriais. Houve o efeito cascata da paralisação das rotinas econômicas e financeiras, uma vez que a capital articulava redes de interesses e de abastecimento pelo interior paulista e os demais Estados, ferrovias e o Porto de Santos”, descreve.

“O mandato presidencial de Artur Bernardes transcorreu sob a vigência do Estado de Sítio, censura e ameaças contínuas de rebeliões. Vale lembrar que a Coluna Prestes que agregou a maioria dos militares de 1924, seguiu invicta até 1927, desafiando e assombrando o poder oligárquico nos vários Estados por onde passou. A organização de um serviço especializado de repressão e de polícia política tomou forte impulso e atrocidades foram cometidas com prisões, espancamentos, deportações, perseguições e violências de todo tipo”, conclui.

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