São Paulo passa a ter no fim de junho seu primeiro espaço cultural com apoio do governo do Estado, mas gerido e pensado pelos povos originários. A dois quarteirões do Parque Água Branca, no Complexo Baby Barione, o Museu de Culturas Indígenas foi inaugurado com pompa e reverência aos primeiros ocupantes da terra onde hoje vive a maior metrópole do País.
O projeto do museu começou a ser desenvolvido há um ano, sob a gestão do então governador João Doria, que atendeu os pedidos de tribos e etnias do Estado por um espaço que fosse pensado para mostrar a produção contemporânea dos povos indígenas e preservasse também a sua memória.
“Lembro muito bem que eles quiseram um museu indígena e não etnográfico. Eles disseram que todos os aparelhos do tipo eram dos brancos sobre os indígenas”, conta Sérgio Sá Leitão, secretário de Cultura e Economia Criativa do Estado. “O protagonismo é todo deles. Nosso papel foi de encontrar o lugar, as condições financeiras e o caminho para a gestão.”
A verba destinada ao projeto foi de R$ 14 milhões e, à frente do Museu de Culturas Indígenas, está o Conselho Indígena Aty Mirim, formado por representantes dos povos originários que decidem a programação e as linhas curatoriais do espaço em conjunto com a Associação Cultural de Apoio ao Museu Casa de Portinari. Durante a cerimônia de inauguração, o atual governador Rodrigo Garcia (PSDB) destacou a importância desse modelo de gestão como um reflexo da diversidade cultural e étnica de São Paulo.
“Somos um Estado que sabe respeitar sua história e conviver com as suas diferenças. Isso é fruto da luta permanente na vida dos indígenas. E mostra a vontade de índios e brancos conviverem em harmonia”, disse o governador.
Apesar da boa vontade, uma das lutas citadas em seu discurso foi cobrada dele próprio, quando Cristine Takuá, diretora do Instituto Maracá, cobrou melhorias na formação de professores indígenas e nas escolas das aldeias. Em outro momento, Maria Ara Poty, cacique da aldeia Ita Vera, na Terra Indígena Jaraguá, disse que São Paulo “estava com os olhos fechados e vendados para os povos indígenas do Brasil” e foi aplaudida ao declarar que “o guarani é a primeira língua brasileira”.
Garcia anunciou uma reunião para tratar do assunto na próxima semana com Sérgio Sá Leitão. Durante a cerimônia de inauguração, outras lideranças indígenas, como Carlos Papá e Manuel Werá, também celebraram a criação do espaço e cobraram melhorias na educação indígena. A pauta principal, entretanto, foi a demarcação de terras, que se fez presente nos discursos e nos lambe-lambes colados nas paredes.
O evento reuniu dezenas de indígenas de todas as idades e de várias etnias, entre elas: Guarani Mbya, Tupi Guarani, Yanomani, Huni Kuin, Terena, Kaingang, Krenak, Pankaruru, Tupinambá, Kadiwéu, Pataxó, Pankará, Pankararé, Kaimbé, Wassu Cocal e Fulni-ô.
Arte e memória
O Museu das Culturas Indígenas conta com sete andares e começa com três exposições, uma delas coletiva ocupando o espaço externo do local com pinturas e cartazes. O artista gaúcho Xadalu Tupã Jekupé, de Alegrete, ocupa dois pisos com a “Invasão Colonial Yvy Opata - A terra vai acabar”, que reflete sobre o choque cultural entre as tradições indígenas e a sociedade urbana contemporânea.
Em uma das obras, “Freefire”, ele posiciona uma televisão exibindo o jogo de mesmo nome dentro de uma arapuca feita de bambu. “Escambo” é um conjunto de três quadros em que o terceiro mostra um espelho quebrado e sangue escorrendo entre os cacos.
“É um olhar de como a cultura indígena foi impactada por problemas contemporâneos, como tecnologia e especulação imobiliária. Os costumes ocidentais entraram de forma muito bruta nas aldeias, mas a verdade é que as cidades são antigas terras indígenas”, explica ao Estadão. “Ainda dá tempo de preservar o que resiste.”
Já amostra “Ygapó: Terra Firme”, do artista e curador Denilson Baniwa, ocupa os 5º e 6º andares do museu com uma reflexão acerca do papel do homem branco sobre a cultura indígena. Uma das salas é escura com um espelho d’água em frente a um telão que repete videoclipes de músicos indígenas. Nas paredes, onças, papagaios e macacos foram desenhados com giz de cera para aludir aos corpos celestiais.
“A ideia é que os visitantes escutem as histórias e conheçam a nossa cultura para saber como funcionam os espíritos da floresta”, explica Sérgio Yanomani, um dos responsáveis pelos desenhos. No andar de baixo, a sala de exposição teve as paredes completamente cobertas por barro, o chão por folhas secas e, no centro, um tronco estirado, representando a morte desses seres considerados divinos em meio às queimadas e o desmatamento.
Além das obras de artes, o museu também terá a presença indígena entre os guias contratados para auxiliar os visitantes do espaço. “Eu sou muita nova, ainda não tinha encontrado com todas as etnias que estão aqui hoje”, conta Parayvoty Guarani, de 24 anos, uma das “mestres do saber”.
O casal Deyse e Ybirassu Vassu, de 39 e 41 anos, comemora a criação do espaço. “É o que a gente estava esperando. Isso é muito importante para divulgar nossas artes e as pessoas terem o conhecimento das etnias. Temos uma diversidade muito grande, são várias línguas, culturas e povos”, diz ele. “Nossa luta e resistência não é só para a venda de artesanato”, acrescenta a esposa.
Mesmo entre as novas gerações de indígenas, que mesclavam o cocar na cabeça e o colar de miçangas com camisetas do Palmeiras e do Manchester, a importância do espaço não passou despercebida. “É um dia histórico para nós. Temos agora a oportunidade da visibilidade em um espaço nosso e em São Paulo, que é um território indígena também”, comemora Rebeca da Silva, de 21 anos, moradora da capital e membro da tribo Kunaruara.
O Museu de Cultura Indígenas fica na Rua Dona Germaine Burchard, 451, na Água Branca. Confira mais informações no site http://museudasculturasindigenas.org.br/
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