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Sítio arqueológico em SP revela casa que pode ter sido dividida por indígenas e família rica

Local foi descoberto durante processo de instalação de torres de energia elétrica. Cerca de 4 mil peças foram coletadas e serão estudadas

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Foto do author José Maria Tomazela

Fragmentos de louças portuguesas e cerâmicas indígenas de mais de 400 anos encontrados durante escavações em meio à mata, em Cubatão, podem lançar luzes sobre o início da colonização do Estado de São Paulo. O sítio arqueológico foi descoberto durante as prospecções para a instalação de torres que vão sustentar um linhão de energia na Baixada Santista.

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Cerca de 4 mil peças foram coletadas no local. O acervo surpreende por indicar que uma família portuguesa de posses residiu durante décadas na área, possivelmente compartilhando o imóvel com índios. A fazenda pode também ter sido entreposto comercial ou pouso de tropeiros.

Denominado Vale Verde, o sítio arqueológico já foi demarcado em uma área de quase 800 metros quadrados, na encosta da Serra do Mar, na zona sul do município de Cubatão. A empresa Preservar Arqueologia e Meio Ambiente foi contratada para realizar a prospecção arqueológica do terreno a ser cortado pelo linhão, uma das etapas do licenciamento ambiental do empreendimento, da Empresa Litorânea de Transmissão de Energia (Elte).

Denominado Vale Verde, o sítio arqueológico já foi demarcado em uma área de quase 800 metros quadrados, na encosta da Serra do Mar, na zona sul do município de Cubatão Foto: Patrícia Marinho/Acervo pessoal

Assim que os primeiros fragmentos foram encontrados, o local foi demarcado como sítio arqueológico, tendo início as escavações. A coleta do material foi realizada entre junho e julho.

De acordo com a arqueóloga Tatiana Costa Fernandes, diretora da Preservar e coordenadora da pesquisa, os achados indicam que havia uma ampla casa de fazenda no local e que seus proprietários portugueses ou descendentes eram abastados.

“São conjuntos de louças finas que só as famílias de mais posse podiam ter. Era faiança produzida no século 17, o que indica que é um sítio arqueológico desse período. Nos séculos 18 e 19, a gente encontra mais faiança inglesa”, explicou.

De acordo com a pesquisadora, as escavações revelaram que a construção é de uma casa de estilo bandeirista, da qual existem poucos exemplares em São Paulo.

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Tinha alicerces de pedra e, no lugar do assoalho, os cômodos internos eram calçados com pedra trabalhada. “As paredes foram erguidas com tijolo de adobe, feito com terra, água e argila, que eram cozidos. O telhado, com telhas de barro queimadas, também indicam a abastança da família, pois as casas comuns da época eram de pau-a-pique, cobertas com palha”, disse.

Nas mesmas camadas de solo em que foram encontradas as louças indicam que a família pode ter convivido com índios, provavelmente tupiniquins Foto: Patrícia Marinho/Acervo pessoal

Europeus e tupiniquins

Nas mesmas camadas de solo em que foram encontradas as louças indicam que a família pode ter convivido com índios, provavelmente tupiniquins. “Localizamos enterrado na soleira da sala um vasilhame cerâmico indígena emborcado, que pode ter relação com algum ritual. Isso indicaria a presença de indígenas na casa, mas não na condição de escravos. Nossa hipótese é de que o morador português ou descendente se casou com uma indígena”, explicou.

Nossa hipótese é de que o morador português ou descendente se casou com uma indígena.

Tatiana Costa Fernandes, arqueóloga

Por outro lado, segundo ela, não foram encontrados resquícios de senzala ou outros indicativos da presença de escravos africanos, o que leva a crer que fazenda é provavelmente do período anterior à escravidão negra.

De acordo com a pesquisadora, as escavações revelaram que a construção é de uma casa de estilo bandeirista, da qual existem poucos exemplares em São Paulo.  Foto: Fabio Guaraldo/Acervo pessoal

No entorno, foram localizadas duas estradas coloniais, uma delas no sentido de São Vicente, calçada com pedras, a outra, sem calçamento, no sentido do planalto. “A localização, com nascente próxima, nos faz pensar em um possível pouso de tropeiros, onde os homens descansavam a tropa, se alimentavam, dormiam e seguiam viagem”, disse.

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Essa hipótese é reforçada pelo fato do fogo de chão e os locais possivelmente usados para a confecção de cerâmica de cozinha e panelas estarem do lado de fora da casa. Entre as centenas de peças, a que mais impressionou a arqueóloga foi uma frigideira de cerâmica muito bem conservada e com cabo. “Lembra muito as frigideiras modernas, de cerâmica, usadas hoje”, disse.

Saída às pressas

A pesquisadora estima que a família permaneceu no local de 40 a 50 anos e saiu de forma repentina. “Esse sítio é inédito devido a essa característica do abandono. Parece que tudo ficou no mesmo lugar. A gente imagina que algo, um ataque, talvez, levou a família a sair às pressas. As louças de mesa parecem terem se quebrado ao mesmo tempo. Não encontramos, porém, vestígios de ossos ou restos humanos. A gente supõe que pode ter havido uma fuga.”

A pesquisadora estima que a família permaneceu no local de 40 a 50 anos e saiu de forma repentina Foto: Patrícia Marinho/Acervo pessoal

O arqueólogo Fabio Guaraldo, que realizou as escavações, considera o sítio um dos mais significativos em que já trabalhou, por ser do século 17 e pelo bom estado de conservação. “Conforme avançamos com a escavação, demos com uma casa inteira ali, como se fosse hoje. Os alicerces de pedra, a varanda, os fundos onde se queimava o lixo, a área de produção de alimentos, um muro de pedra. Ali morou alguém que tinha certa condição na época.”

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Conforme avançamos com a escavação, demos com uma casa inteira ali, como se fosse hoje. Os alicerces de pedra, a varanda, os fundos onde se queimava o lixo.

Fabio Guaraldo, arqueólogo

Ele contou que, além da faiança portuguesa, encontrou peças de porcelana chinesa, que na época era usada como moeda. “Pela quantidade de coisas encontradas, pode ter sido um entreposto comercial, um lugar de comércio de produtos que chegavam pelo porto. Havia uma estrada com calçamento de pedra, inclusive pedras chanfradas.”

A grande quantidade de material indígena, segundo ele, indica que os moradores transitavam entre os costumes europeus e o conhecimento indígena.

Naquele período, contou, só os indígenas produziam cerâmica. “Achamos peças cerâmicas com formato europeu, como cabos e alças, que os índios não faziam. Isso pode ser até influência dos padres jesuítas que orientavam os indígenas para fazer naquele formato. A gente percebe esse intercâmbio de conhecimento que acabou sendo a identidade de São Paulo até a chegada do café. A maior parte do material é indígena, inclusive um material cerâmico queimado a céu aberto, muito resistente.”

Guaraldo trabalhou no local nos meses de junho e julho com uma equipe que chegou a ter oito pessoas, entre arqueólogos e técnicos de campo. O material foi encontrado em profundidades que variam de 20 a 60 centímetros.

Agora, estão sendo preparados os relatórios que serão enviados ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). “Ainda há áreas a serem exploradas, mas o Iphan é que decide se já libera ou não”, disse.

Recontar a história

Todo o material coletado foi levado para um laboratório de São Paulo e está em processo de limpeza, catalogação e análise.

“A gente vai buscar informações sobre quais famílias se estabeleceram na região e que estradas eram usadas naquela época. O problema é que todo material para pesquisa histórica do Estado no século 17 está em Portugal”, disse Tatiana.

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Após a pesquisa histórica, o material será exposto ao público, possivelmente em Cubatão – a prefeitura já fez contato manifestando interesse.

Conforme a coordenadora, faz parte do trabalho a extroversão desse conhecimento à população. “No fundo, a gente sabe muito pouco sobre nossa colonização. O que temos são generalizações. Acredito que esse material, no contexto em que foi encontrado, ajuda a recontar um pouco a história da colonização do Estado, que começou ali pela atual Baixada Santista”, disse.

Esse material, no contexto em que foi encontrado, ajuda a recontar um pouco a história da colonização do Estado.

Tatiana Costa Fernandes, arqueóloga

Em seguida, o conjunto de achados será enviado à Fundação Cultural Cassiano Ricardo, em São José dos Campos, onde ficará à disposição de pesquisadores.

Conforme a fundação, vinculada à prefeitura, o acervo será recebido por meio do núcleo de arqueologia e salvaguarda da cultura material do município. A exposição do material ao público ainda será definida. “A fundação é gestora do Museu Municipal, que também pode expor o material”, informou a prefeitura.

A Preservar atua em todo o território nacional e já realizou projetos que envolvem estudos arqueológicos e ambientais em 16 estados. Em 2020, sua equipe localizou e cadastrou um sítio arqueológico pré-colonial na cidade e Crato, no Ceará, identificando uma aldeia indígena de tribo tupi-guarani que possuía o domínio da agricultura e conhecimento da tecnologia para produção de vasilhames cerâmicos usados para cozinhar, produzir bebidas e armazenar água e alimentos.

Onde São Paulo começou

O novo sítio arqueológico pode ajudar a entender o processo de colonização das terras paulistas a partir da fundação de São Vicente, em 1532, considerada a primeira vila permanente estabelecida na América Portuguesa. O povoado foi instalado por Martim Afonso de Sousa, conforme ordens do rei de Portugal, do, João III. Na época a vila englobava o município atual de Cubatão.

A primeira atividade econômica foi a cultura de cana-de-açúcar que resultou na construção de engenhos. Como suporte a essa atividade, foram trazidas cabeças de gado do arquipélago de Cabo Verde e iniciada a pecuária, além da agricultura de subsistência.

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Mais tarde, a intensa atividade humana fez surgir outro sítio arqueológico entre Cubatão e São Bernardo do Campo: a Calçada do Lorena.

Considerado um dos remanescentes históricos mais importantes de São Paulo, a calçada foi construída em 1792 para ligar o Planalto de Piratininga ao Porto de Santos, no final do século 18.

Durante décadas foi o caminho usado para o transporte de mercadorias em tropas de muares. Pedro I passou por ela em direção à atual São Paulo para proclamar a Independência em 1822.

O município de Cubatão possui ainda outros sítios arqueológicos mais antigos, conhecidos como sambaquis da Cosipa, formados a partir da deposição de conchas de moluscos consumidos pelos habitantes pré-históricos da região.

As milhares de conchas de mariscos ajudaram a conservar também pontas de flechas, utensílios rudimentares e partes do esqueleto desses ancestrais que viveram há cinco mil anos na região. Os sambaquis de Cubatão são pesquisados por grupos do Museu de Arqueologia e Etnografia da Universidade de São Paulo (Mae-Usp).

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