Existem assuntos que, de tão delicados, preferimos manter nas sombras e distantes das nossas conversas cotidianas. O crime é um desses temas mal resolvidos, com ares de tabu. Há, de um lado, aqueles que falam excessivamente sobre o assunto para extravasar uma raiva e indignação profundas. São conversas emocionais, que cobram punições e as defendem como meio de solucionar as coisas. No limite, bastaria exterminar os criminosos que o problema se resolveria em um passe de mágica. Esses discursos podem surgir nas redes de televisões, invadir os blogs, circular pelos táxis e pelos comércios. Perpassou gerações e acabou criando uma massa de ressentidos que se tornaram escravos de seu próprio ódio. Há pelo menos 50 anos, esses estereótipos se repetem e reproduzem, servindo apenas para reforçar a estrutura violenta da nossa sociedade.
De outro lado, porém, quando o objetivo é tentar refletir de forma crítica sobre o crime e sua popularidade nos dias de hoje, parece pairar um profundo silêncio. Afinal, por que as ações criminosas são atualmente consideradas uma opção real para tanta gente? Por que se rouba tanto em São Paulo e no Brasil? Nas redes sociais, hoje, são mostradas fotos do dinheiro roubado, relógios e bens que foram levados covardemente pelos autores desses crimes. O cara rouba e ostenta. "Profissão Perigo" é um dos eufemismos para identificar a atividade, mas também há aqueles que se dizem "patrão na empresa ladrão de diamantes", com "irmãos metralhas" como foto de fundo, entre outras falas. Os Proibidões celebrando o crime já vêm de longa data. O sucesso da página do Primeiro Comando da Capital no Facebook, com quase 400 mil likes, também dá a ideia e a dimensão do significado do crime na atualidade.
Não digo que a página seja do PCC porque foi criada por seus integrantes ou filiados. Isso é o que menos importa. O interessante é justamente o debate em torno de valores e das ideias propagadas por aqueles que fazem parte da facção. "Paz, Justiça e Liberdade" é o lema do PCC, apesar da óbvia contradição com as ações violentas que praticam. Sem falar no yin e yang do taoísmo que é usado como o símbolo da facção. Talvez por indicar que estão todos "juntos e misturados". Na página da facção aparece de tudo. Até supostos policiais colocando fotos de suspeitos mortos e baleados pela PM. É incrível como os inimigos se assemelham.
O fato é que, na última década, o PCC se popularizou e ganhou legitimidade nas prisões e nos bairros violentos ao propagar o chamado "proceder" no mundo do crime. Em vez de se matarem, os criminosos passariam a respeitar os concorrentes caso não quisessem ser duramente repreendidos nos tribunais informais da facção. A ideia da mediação tornou-se popular em prisões ultra lotadas e em bairros onde diversos corpos costumavam amanhecer com tiros no meio da rua. Nos debates, há espaço para defesa, acusação e os envolvidos precisam "esticar o chiclete", que significa na gíria "argumentar".
Ao mesmo tempo que mediava os conflitos no crime, o PCC manteve-se fortemente liberal ao incentivar ações criminosas de filiados ou não, evitando qualquer centralização de ganhos ao estilo máfia. A estratégia foi entrar com força no atacado de drogas para abastecer o varejo. Os aliados são parceiros e não empregados. Essa nova relação mais profissional apaziguou as disputas territoriais que existiam nos anos 1990. Os traficantes passaram a vender mais drogas e a gerar mais dinheiro aos fornecedores que atuavam na facção. Em comunidades que nos anos 1990 havia duas biqueiras importantes, hoje existem mais de 50 pequenas revendas, que buscam a criatividade e a diversidade de pontos para adquirir consumidores. Assim o tráfico tornou-se uma importante fonte de recursos para jovens com dificuldade de obter a qualificação necessária para uma vida digna no mercado formal. Vende-se mais e arrisca-se menos.
A popularidade do PCC cresce, assim, porque a facção se apresenta como mediadora desse universo criminal antes visto como ingovernável. É valorizado por isso, mas também porque passa a representar a celebração de uma certa inconsequência juvenil, que aposta no consumo ostensivo, no uso excessivo das drogas, nos prazeres imediatos, no sexo por diversão, na misoginia, valores vulgares, como se a vida se resumisse à busca de saciar os instintos. Um retrocesso no processo civilizatório, já que dominamos nossos instintos para agir em nome de valores mais altruístas e universais, em defesa de um futuro para nossos filhos e netos. É justamente o avesso do crime, voltado para o imediato, para os 10 anos a mil, valores que ao mesmo tempo se parecem caricaturas do estilo de vida vulgar e altamente consumista de certa classe alta brasileira.
Eu não deveria, mas me assustei ao ver as mais de 372 mil curtidas no PCC. Ela curiosamente me foi mostradas na quinta feira pelo cientista político canadense Graham Denyer Willis, pós-doutor que estuda os homicídios em São Paulo na Universidade de Toronto. Ele a conhecia e eu não. A celebração da vida no crime não é de hoje e já vem se revelando de diversas formas. Mas até hoje derrapamos não demos conta de explicar como essas ideias se popularizam. Não acho que seja um drama, mas acho que devemos falar a respeito e buscar respostas que se contraponham a esses ideais tortos.
É importante compreender o mundo que estamos construindo porque estamos todos no mesmo barco, aparentemente a deriva e a caminho do fundo do rio. Em vez de troca de tapas permanentes entre os passageiros da embarcação, chega um momento em que é mais produtivo buscar encontrar o buraco por onde a água está entrando. Conseguir fechar o furo, quem sabe, é o que vai salvar a todos.
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