Quinhentas e catorze pessoas foram mortas em ações da polícia de São Paulo no 1.º semestre deste ano, de acordo com dados divulgados nesta sexta-feira, 24, pela Secretaria da Segurança Pública do Estado. É o maior patamar semestral de letalidade policial já registrado desde 2001, início da série histórica. O recorde acontece em um contexto atípico, já que vigora desde o fim de março medidas de isolamento social que reduziram o fluxo de pessoas nas ruas.
O número deste ano é 20,6% maior do que o registrado no primeiro semestre do ano passado e representa a primeira vez em que a quantidade de mortes em ações policiais fica acima de 500 nos seis primeiros meses de um ano. O semestre anterior em que o número chegou mais perto dessa marca foi o de 2003, quando aconteceram 487 mortes. São contabilizados nesse indicador ações com pressuposto de legalidade, como nos casos em que os agentes reagem durante o atendimento de uma ocorrência.
Cabe à Polícia Civil, ao Ministério Público e à própria PM apurar se a morte de fato decorreu de intervenção legítima. Das 514 mortes deste ano, 442 tiveram autoria de um policial em serviço, enquanto nos outros 72 casos o policial estava de folga, mas ainda assim atendeu a um caso ou reagiu a um assalto, por exemplo. Em 97% dos casos, a morte é atribuída à Polícia Militar, cuja característica da atuação tem ligação com o patrulhamento nas ruas. Nos outros 3%, o autor foi um policial civil.
Especialistas chamam atenção para o fato de que a alta na letalidade policial acontece quando havia menos pessoas circulando nas ruas, em razão da pandemia, e menos crimes patrimoniais sendo cometidos, como roubos e furtos. Os roubos contra residências, comércios e pedestres, por exemplo, caíram 8% no Estado no 1.º semestre, redução que no caso dos roubos de veículos é ainda mais acentuada: 31%.
“A alta na letalidade policial causa muito estranhamento, principalmente se considerarmos a queda nos crimes contra o patrimônio, já que uma parte da letalidade é atribuída a casos de roubo. É muito difícil achar uma explicação que não passe pela falta de controle da Polícia Militar”, disse a diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno. “No mesmo período do ano passado, aconteceu uma morte para cada 170 prisões em flagrante. Neste ano, o número é de uma morte a cada 113, indicando uma interação policial muito mais violenta.”
Samira lembra que a alta acontece em meio a um crescimento na visibilidade de denúncias de ações policiais truculentas, como a do Jaçanã, que chegou a resultar na prisão de policiais, e no caso de um agente que pisou no pescoço de uma mulher já rendida. A gestão do governador João Doria (PSDB) reagiu às denúncias dizendo não compactuar com desvios, anunciando novos treinamentos e até prometendo a instalação de câmeras corporais nos policiais.
“Reconhecer que isso é um problema é um primeiro passo e talvez a única notícia minimamente positiva, já que na campanha (de Doria) isso não era visto como tal. Por outro lado, vimos a própria polícia criar empecilhos para investigação dos casos”, disse, em referência a um parecer da PM para interromper apurações de letalidade. “A câmera pode ajudar, mas não é a panaceia. E retreinar não vai resolver o problema. Os policiais sabem que não podem torturar, não pode pisar no pescoço. Por que fazem mesmo assim? Entendem que podem se exceder e fica por isso mesmo.”
O secretário executivo da Polícia Militar, coronel Alvaro Batista Camilo, disse que a alta da letalidade encontra coerência “com o ambiente que estamos vivendo”. Camilo atribuiu o crescimento ao deslocamento mais ágil dos policiais até a ocorrência, o que elevaria a possibilidade de confronto. “A polícia está chegando muito rápido e pegando o infrator ainda durante a sua ação, no cometimento do delito, o que tem levado ao confronto. Mas o porcentual dos que saem vivos do conflito é hoje de 72%. Esses não perdem a vida”, disse.
Questionado sobre o dado de que as prisões em flagrante estão em queda e, portanto, há menos situações em que o policial chega no momento do delito, o coronel passou a citar a “audácia da criminalidade” e lembrou que foram apreendidos 43 fuzis no Estado neste ano, como sinal de que os criminosos estão fortemente armados. “Nenhum policial sai de manhã querendo matar alguém. Ele chega no local e é agredido. É uma situação que nos preocupa porque é morte e morte não é incentivada em nenhum momento”, acrescentou, lembrando que 26 policiais foram mortos em serviço no primeiro semestre.
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