Passageiros vão usar gratuitamente os ônibus municipais da cidade de São Paulo neste domingo, 17, em uma espécie de teste para implementar a tarifa zero na cidade. A gratuidade também será estendida para os dias do Natal, Ano-Novo e do aniversário da capital (25 de janeiro).
Com a medida, a gestão municipal deixará de arrecadar R$ 283 milhões por ano – há cerca de 2,2 milhões de usuários no transporte público municipal aos domingos. O custo total da operação não é detalhado, mas a Prefeitura espera que a medida contribua com a economia da cidade.
A gratuidade é uma das bandeiras do prefeito Ricardo Nunes (MDB), que pretende se candidatar à reeleição em 2024 e quer dar uma marca para sua gestão. A ideia, porém, não tem adesão do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), que não vai liberar as catracas do Metrô e da CPTM.
Parte dos especialistas ouvidos pelo Estadão afirma que a tarifa zero promove o direito à mobilidade e de mais inclusão social. Outra corrente vê na medida um uso ineficiente de dinheiro público, uma vez que gasta montante expressivo em uma política que não beneficia só os que mais precisam. Mesmo entre os favoráveis à medida, há ressalvas sobre o modelo adotado na capital paulista.
“A tarifa zero é uma demanda da sociedade civil há bastante tempo”, diz o coordenador do programa de Mobilidade Urbana do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Rafael Calabria. Ele afirma que a medida é mais comum em cidades de pequeno ou médio porte, mas destaca que outras capitais já testam iniciativas desse tipo, como Florianópolis e Palmas.
Como mostrou o Estadão, o passe livre municipal tem crescido nos últimos anos no País, chegando ao interior e à Grande São Paulo – São Caetano do Sul adotou o modelo em novembro. Caucaia, o segundo município mais populoso do Ceará, com 355 mil habitantes, também implementou o formato.
Há ao menos 89 cidades no Brasil com tarifa gratuita, diz levantamento do pesquisador Daniel Santini, mestre em Planejamento Urbano e Regional da Universidade de São Paulo (USP). Mas a adoção em grandes metrópoles é bem mais complexa, com frotas maiores, milhões de passageiros e alto custo.
Por conta disso, Calabria afirma ser prudente começar com testes. Pouco antes de a tarifa zero ser anunciada, o prefeito Ricardo Nunes afirmou que a gestão cogitava adotar a medida no domingo ou durante as madrugadas. Para o especialista, a segunda opção, que acabou sendo preterida, teria mais potencial no caso de São Paulo.
“A madrugada já tem um pagamento (das concessionárias) por quilômetro, o que é muito mais adequado para qualquer sistema, ainda mais para o tarifa zero. E de madrugada não tem o metrô funcionando, o que não cria disputa de passageiros com o metrô”, afirma Calabria. “Seria muito mais controlado começar pela madrugada”, diz.
‘Não há fundamento econômico’
Ao criticar a proposta de Nunes, Tarcísio disse que o modelo “não se sustenta” e questionou de que outras áreas sai o dinheiro para a gratuidade universal. Segundo Murillo Torelli, professor de Ciências Contábeis da Universidade Presbiteriana Mackenzie, uma iniciativa desse tipo vai demandar a busca por um reequilíbrio econômico. “É preciso arrecadar tributos ou cobrar de outras pessoas”, diz.
“Uma medida focada na população que realmente precisa pegar o ônibus e não tem condição financeira talvez faça mais sentido do que ter ônus tão alto, de ter tarifa zero para todos”, acrescenta.
Para ele, mesmo que haja inclusão social, uma vez que o transporte público costuma atender às camadas mais baixas, alternativas mais focalizadas em grupos específicos têm mais resultado. “Da forma como é, a tarifa zero beneficia parte da população em detrimento de outros”, afirma o professor.
A operação é deficitária e a maior parte da tarifa já é paga pela Prefeitura, em forma de subsídios às empresas de ônibus. Até novembro, foram pagos R$ 5,3 bilhões em subsídios às companhias de transporte coletivo em São Paulo, o recorde da série histórica, segundo a SPTrans. “Não há um fundamento econômico para o prefeito garantir que essa operação será viável e tão boa”, diz Torelli.
Em novembro, a Câmara Municipal aprovou, em 1º votação, uma verba de R$ 500 milhões para a implementação do projeto no ano que vem.
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Modelo adotado em São Paulo é alvo de questionamentos
A adoção da tarifa zero em São Paulo passa ainda por uma discussão de modelo, que pode tornar a medida mais custosa. Doutor em arquitetura e urbanismo pela Universidade de São Paulo (USP), Roberto Andrés relembra que a capital paulista adotou uma “fórmula de transição” para o transporte público.
“Essa fórmula de transição coloca no cálculo o número de passageiros. Isso pode gerar ‘sobregasto’ para a Prefeitura. Se o número de passageiros dobrar, pode acontecer de a Prefeitura ter gasto muito maior do que o previsto”, diz o pesquisador.
Outro problema, afirma, é que esse modelo, em que o número de passageiros interfere na conta, pode desestimular o aumento dos ônibus em circulação pelas empresas.
“Cidades que têm o transporte coletivo gratuito mostram melhorias significativas para a população mais pobre, que têm mais possibilidades de lazer e de circular pela cidade”, ressalta Andrés, também professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Mas não seria uma boa experiência para a tarifa zero se os ônibus estivessem lotados e a Prefeitura gastando mais do que deveria.”
Ele afirma que, para driblar o alto custo, grande parte das cidades que adotou a tarifa zero no País recorreu ao modelo de cobrança por quilômetro rodado. É o caso de São Caetano, que implementou a gratuidade nas passagens de ônibus há um mês e meio em todos os dias da semana.
“Achamos mais seguro e producente”, disse ao Estadão o prefeito José Auricchio Júnior (PSDB). “Como a remuneração é por quilômetro, e não por passageiro transportado, há necessidade de o concessionário expor o maior número possível de carros na frota.”
Lá, a medida tem custo mensal de cerca de R$ 3 milhões – a cidade conta com apenas oito linhas de ônibus municipais. Desde que a medida foi implementada, no começo de novembro, o número de passageiros dobrou: de uma média diária de 25 mil para cerca de 51 mil, com pico de 54 mil.
Entre as maiores cidades com a tarifa zero, estão a capital da Estônia, Tallinn, com 426 mil habitantes, que implementou o passe livre há quase uma década, e Kansas City (EUA), com 508 mil pessoas. No Brasil, a maior é Caucaia, com população de cerca de 355 mil pessoas.
“A principal referência de tarifa zero são cidades pequenas, com sistemas de transporte muito mais simplificados, com operação de poucos ônibus e poucas linhas”, diz o economista Wesley Ferro Nogueira, secretário executivo do Instituto Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte (MDT).
Por conta disso, afirma, é mais difícil ter uma dimensão de qual é o tamanho da demanda reprimida que existe em São Paulo. Isso requer, cobra Nogueira, ainda mais atenção no período inicial de implementação, uma vez que os passageiros costumam aumentar de forma gradativa. “Nós tivemos cidades que aumentaram até em 600% a demanda depois de implementar a tarifa zero.”
O que diz a Prefeitura de São Paulo
Hoje, cerca de 2,2 milhões de passageiros usam o sistema de ônibus da capital paulista aos domingos, segundo a Prefeitura. Com a tarifa zero, mesmo se dobrar essa quantidade (para 4,4 milhões), a estimativa da gestão Nunes é que os 4.830 ônibus que circulam nesse dia deem conta.
“Essa frota circula com 40% da sua capacidade, portanto, temos 60% dos ônibus ociosos. Não será necessário ampliar o número de ônibus”, disse o prefeito no anúncio da medida, feito na segunda-feira, 11. A gratuidade será de 0h às 23h59. Se houver demanda maior em algumas regiões, o plano é fazer ajustes nas próximas semanas.
Sobre a remuneração atual das concessionárias, a Prefeitura diz, em nota, que a fórmula final considera fatores como frota programada, horas de operação e quilometragem. “Se a quantidade de veículos aumentar, a remuneração também aumenta. Se a frota diminui, a remuneração faz o mesmo movimento”, afirma. “Já a variação de demanda, para mais ou para menos, não reajusta a remuneração da mesma forma.”
Segundo a pasta, ainda que a gratuidade nas passagens aos domingos cause grande variação na demanda, haverá pouco impacto no cálculo do pagamento da remuneração considerando a frota atual. “As concessionárias, portanto, não irão arrecadar a mais com a gratuidade aos domingos, já que os pagamentos seguem o contrato de concessão.”
A Prefeitura já adotou experiências mais curtas de tarifa zero, como no 2º turno das eleições de 2022, na votação do Conselho Tutelar, em outubro, e na aplicação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), em novembro.
Mas, nessas ocasiões, foi adotado sistema de livre acesso, ou seja, sem o registro do Bilhete Único no validador. “Dessa forma, não houve levantamentos de passageiros transportados”, afirmou. Agora, a ideia é manter as catracas em funcionamento par acompanhar a evolução de passageiros.
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