Há um ano, a vida da criadora de conteúdo Amanda Valente mudou por completo. Ela estava aguardando para atravessar em uma esquina próxima ao Museu de Arte de São Paulo (Masp), na Avenida Paulista, quando foi abordada por um grupo de três adolescentes. Assustada com a possibilidade de um assalto, a jovem deu alguns passos em direção à rua e foi atropelada por um ônibus. Após o acidente, ficou dois meses na UTI, período em que teve de amputar a perna esquerda. Hoje, aos 25 anos, caminha com ajuda de uma prótese que obteve por meio de uma “vaquinha” online.
Levantamento feito pelo Estadão com base em dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP) obtidos via Lei de Acesso à Informação aponta que, em 2022, a Paulista teve o maior número de roubos em 10 anos, com 1.106 registros. Já os furtos (6.343) atingiram o segundo maior patamar da série histórica, atrás apenas de 2019. Mas há ainda casos como o de Amanda, registrado como atropelamento, que ficam à margem dessas estatísticas e também retratam a alta da violência.
“Eu precisei aprender tudo de novo”, diz a jovem, em entrevista ao Estadão. Moradora de Pirituba, na zona norte da cidade, ela relembra que o acidente completou um ano no último dia 20. Com a vida totalmente reconfigurada desde então, a criadora de conteúdo hoje prefere ver o lado bom disso tudo, ao mesmo tempo em que tenta superar o medo de sair pelas ruas de São Paulo. “Eu falo que é uma nova vida, é um renascimento, olho dessa forma. Foi uma segunda chance que ganhei.”
No dia do acidente, uma quarta-feira, Amanda estava indo para um café com uma colega quando as duas pararam em um semáforo próximo ao Masp por volta de 18h. “Nisso que eu estava parada, bem perto da faixa, três meninos vieram para cima de mim para me assaltar. Deviam ter uns 14, 15 anos”, conta. “Como eu estava muito perto da rua, eu meio que esquivei deles. Não cheguei a correr, mas fui para trás, e o ônibus passou e me atropelou.”
Ela diz que não estava com o celular em mãos ou com algum objeto de valor aparente. “No máximo eu estava de brinco, alguma coisa assim, mas nada muito chamativo”, diz. Também não sabe se o grupo a acompanhava há um tempo, mas preserva algumas lembranças. “Eles só não conseguiram assaltar porque eu fui atropelada, senão teriam conseguido”, afirma. Foi registrado boletim de ocorrência por atropelamento.
‘Eu estava muito mal, quase morri’
Amanda diz ter ficado lúcida após o acidente. “Tive o choque da pancada, caí no chão, mas não cheguei a desmaiar”, conta. Sem sentir a perna esquerda, ela foi levada às pressas para o Hospital das Clínicas, a poucas quadras da Avenida Paulista. As intercorrências após o acidente foram várias. “Nas primeiras 48 horas eu estava muito mal, quase morri.”
A jovem passou dois meses internada em uma unidade de terapia intensiva (UTI) do hospital. “Eu não estava visivelmente muito machucada, mas como eu não conseguia me mexer, eles não sabiam exatamente o que tinha acontecido”, relembra. Ela também quebrou a mão esquerda no acidente.
Quando ela chegou ao hospital, a equipe médica a levou para uma bateria de exames e constatou que havia uma mancha de sangue em sua perna esquerda. “Tive uma trombose por conta do acidente e todas as minhas veias da perna foram dilaceradas, estava tudo destruído”, diz. Ela então foi submetida para uma cirurgia, que durou 18 horas. “Também tive que receber 10 bolsas de sangue, porque tive hemorragia.”
Depois, os médicos ainda testaram alternativas de tratamento. “Tentavam ver se minha perna reagia de alguma forma”, diz. Infelizmente, porém, o quadro não evoluiu e Amanda teve de ter a perna esquerda amputada duas semanas após o acidente. “Decidiram amputar antes de começar a afetar o resto do meu corpo de alguma forma.”
Amanda fez ‘vaquinha’ para comprar prótese
Após dois meses no Hospital das Clínicas, Amanda foi encaminhada para uma unidade do Centro de Reabilitação Lucy Montoro, referência na área. “Fiquei um mês lá para aprender a me virar em casa sozinha. Eu precisei aprender tudo de novo”, diz. Nesse período, ela conta que ainda tomava muitas medicações. “Como também tive infecção, fiquei quase dois meses e meio tomando antibiótico, fora outras medicações, como remédio para ansiedade.”
A volta para casa marcou o início de uma nova fase na vida criadora de conteúdo. “Até hoje faço fisioterapia, faço acompanhamento e tive que fazer uma vaquinha para comprar minha prótese”, diz. O valor dos modelos mais básicos, conta, é de cerca de R$ 50 mil. “Agora estou nesse processo de aprender a andar direito, fazendo todo o acompanhamento necessário.”
O momento atual tem sido de reaprendizado. “Eu não deixei de fazer minhas coisas, porque falo que a limitação está na nossa cabeça”, diz. “Então levei por esse lado, de que, se eu estava viva, se consegui passar por isso, pelo acidente, pela UTI, por todo esse processo, eu era capaz de lidar com isso. Hoje em dia eu faço tudo. Ainda não estou 100% em equilíbrio, força, essas coisas que exigem muito do corpo, mas faço tudo.”
‘Tenho um trauma muito grande da Avenida Paulista’
Um ano após o acidente, Amanda ainda tenta lidar com tudo que passou naquele dia. “Tenho um trauma muito grande da Avenida Paulista. Eu amava ir lá, ia sempre. Hoje em dia, não tenho coragem de passar lá nem de carro”, diz. “Precisei passar por acompanhamento psicológico, porque todas as vezes que ia sair de casa tinha crise de ansiedade, tinha medo de acontecer alguma coisa.”
Esse sentimento, explica, também se estende para outros locais da cidade. “São Paulo, em si, hoje em dia é um ambiente muito assustador para mim. Todo lugar que vou fico com medo, não me sinto bem. O que mais me pegou foi o mental”, afirma. Mas ela não pretende parar de tentar por conta disso.
Nos perfis que mantém nas redes sociais, Amanda busca falar sobre o assunto ativamente. “Eu me tornei uma pessoa com deficiência e antes eu não tinha convivência nenhuma (com PCDs). Hoje em dia eu tenho acesso a esse mundo, e vejo o quanto é importante o nosso lugar de fala. Acho que a minha profissão ajuda muito para que a gente tenha essa visibilidade.”
Para seguir em frente, ela se apega ao lado positivo de todo esse processo. “Eu vi o lado bom de muita gente que eu nunca tinha visto. A empatia das pessoas, muitas indo doar sangue, se preocupando em me ajudar, em me deixar confortável nos lugares. Nesse um ano eu vi que tinha muita gente boa, mais gente boa do que gente ruim”, diz. “Eu sou capaz de tudo, esse rótulo não me limita.”
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